O hábito da
canonização
psíquica
Na idolatria encontra-se o mecanismo defensivo da
mente,
pelo
qual é projetado no outro aquilo que gostaríamos de ser.
“Desde os mais recuados tempos, até o presente, a
idolatria continua a oferecer – fartamente – as ‘muletas
psicológicas’ às criaturas de fé simples e quase
ingênua.”
- François C. Liran
Nada menos que 392 personalidades de antanho estão na
“alça de mira” da alta hierarquia da Igreja Católica
para a investidura da canonização. Tal proliferação de
candidatos a santo está causando desconforto até mesmo
entre os partidários dessa grei.
Vem de longa data a idolatria!... Antes do advento do
Cristo todos os povos, exceto os hebreus, eram
idólatras e politeístas.
Na Idade Média, Lutero lhe deu ferrenho combate, mas não
teve sucesso com relação à “idolatria da letra”,
pois se seus seguidores não mais adoravam as imagens, os
fetiches, por outro lado, enroscaram-se na “letra
que mata” distanciando-se do “espírito que
vivifica”. E os ídolos de pés de barro continuam em
seus pedestais sus-tentados pela ignorância humana e
pela sagacidade dos “atravessadores da fé”, dos
ecônomos infiéis de todos os tempos e em especial dos
tempos hodiernos.
Os judeus há muito abandonaram a idolatria, mas a
substituíram pelos cerimoniais dos cultos exteriores,
sendo nisso – hodiernamente - imitados pelos cristãos
das mais variadas vertentes.
Como desde Lutero as rentáveis vendas das indulgências
se apresentam como um mercado em baixa, descobriu-se
que os “santuários” podem ser formidáveis
sucedâneos daquele ancestral comércio, uma vez que não
faltarão fiéis de fé simples e ingênua para
frequentá-los religiosamente, fomentando, dessa forma,
um enorme mercado paralelo para os setores de turismo e
para a indústria e comércio de quinqui-lharias, com
farto aporte monetário, em que pese o pagamento de gorda
fatia aos cofres do Vaticano.
Engana-se, porém, quem pensa que só existe idolatria no
seio das vetustas religiões. Ela também –
infelizmente – existe no meio espírita!
Analisando a triste questão da idolatria no meio
espírita, Ermance Dufaux afirma(1): “(...)
idolatria é o
excessivo entusiasmo e admiração por uma pessoa
com a qual
partilhamos ou não a convivência... São oradores,
médiuns e
trabalhadores que costumam destacar-se pelas virtudes ou
pelas
experiências, e que são tomados à conta de ícones, com
os quais delineamos a noção pessoal de "limite máximo" ou "modelo"
para os novos
passos assumidos na caminhada espiritual.
Sem considerar os naturais sentimentos de admiração e
entusiasmo dirigidos
a quem fez por merecê-los, quase sempre nas
causas dessa
idolatria encontra-se o mecanismo defensivo da mente,
pelo qual é
projetado no outro aquilo que gostaríamos de ser.
Dois graves problemas, entre os muitos, decorrem dessa
relação
idólatra: as exageradas expectativas e a prisão dos
estereótipos.
As expectativas transferidas ao ícone carreiam desejos
e anseios
que se tornam âncoras de segurança para os problemas
individuais.
Caso a criatura se habitue ao conforto de
"escorar-se" psicologicamente
no outro e fugir do seu esforço autoeducativo, passará
ao terreno das
ilusões, sentindo-se e acreditando-se tão virtuosa ou
capaz quanto
ele. Ocorre então uma absorção da "identidade alheia"
como se fosse
sua... É como "ser alguém" através dos valores do
outro.
Quanto aos estereótipos, vamos verificar outra questão
que tem trazido muitos desajustes: o hábito do
dogmatismo, uma
velha tendência humana de ouvir a palavra dos
"homens santificados"
pela hierarquia
religiosa. Pessoas que se tornam carismáticas pela sua
natural forma de ser ou pelo valoroso desempenho
doutrinário
são, comumente, colocadas como "astros" ou "missionários"
de grande
envergadura.
Quaisquer dessas vivências, expectativas elevadas ou
criação de modelos podem nos trazer muita decepção e
revolta. Somos todos aprendizes, uns com mais, outros
com menos experiência; todos, no entanto, sem exceção,
como aprendizes do progresso e gestores do bem. Podemos
sempre aprender algo com alguém, desde que
tenhamos visão e
predisposição à alteridade. O que hoje entendemos
como sendo
excepcional em alguém, amanhã poderá não ser tão útil
para nossa percepção mutável e ascensional.
Por mais bem-sucedida a reencarnação na melhoria
espiritual,
isso será apenas o primeiro passo de uma longa jornada.
Então, por que
glórias fictícias com ídolos com pés de barro?
Missionários e virtuosos? São muito raros na Terra!
Para conhecêlos é
muito fácil, nenhum deles aceita uma relação de
idolatria,
enquanto se verifica outro gênero de conduta com muitos
que se julgam ou são julgados como tais.
Quando refletimos sobre esta questão é no intuito de
chamar a atenção de todos nós para os prejuízos de
continuarmos cultivando semelhantes expressões de
infantilidade emocional. Existe, de fato, uma velha
tendência que nos acompanha, a qual podemos declinar
como "hábito da canonização psíquica".
Muitos ídolos adoram as bajulações e burburinhos em
torno de seu nome. São folgas que não deveríamos buscar
para nossa vida, quando deveriam educar-se e educar os
outros para assumirem a condição de condutores, aqueles
que lideram promovendo, libertando, e não fazendo
"coleção de admiradores" para alimentar seu
personalismo.
Como bons espíritas, apenas começamos os serviços de
transformar a autoimagem de orgulho, profundamente
cristalizada nos recessos da mente. Quando nos adornamos
com qualidade e virtudes que imaginamos possuir,
perdemos a oportunidade de sermos nós mesmos, de eleger
a autenticidade como nossa conduta, de construir quanto
antes a “nova identidade" que almejamos.
Inspiremo-nos em nossas referências, todavia não
façamos deles ídolos. Ouçamo-los, tiremos proveito de
suas conquistas, mas façamos tudo isso com equilíbrio,
nem mais nem menos!