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por Rogério Coelho

O hábito da canonização psíquica

Na idolatria encontra-se o mecanismo defensivo da mente, pelo qual é projetado no outro aquilo que gostaríamos de ser

“Desde os mais recuados tempos, até o presente, a idolatria continua a oferecer – fartamente – as ‘muletas psicológicas’ às criaturas de fé simples e quase ingênua.” - François C. Liran

Nada menos que 392 personalidades de antanho estão na “alça de mira” da alta hierarquia da Igreja Católica para a investidura da canonização. Tal proliferação de candidatos a santo está causando desconforto até mesmo entre os partidários dessa grei.

Vem de longa data a idolatria!... Antes do advento do Cristo todos os povos, exceto os hebreus, eram idólatras e politeístas. 

Na Idade Média, Lutero lhe deu ferrenho combate, mas não teve sucesso com relação à “idolatria da letra”, pois se seus seguidores não mais adoravam as imagens, os fetiches, por outro lado, enroscaram-se na “letra que mata” distanciando-se do “espírito que vivifica”. E os ídolos de pés de barro continuam em seus pedestais sus-tentados pela ignorância humana e pela sagacidade dos “atravessadores da fé”, dos ecônomos infiéis de todos os tempos e em especial dos tempos hodiernos.

Os judeus há muito abandonaram a idolatria, mas a substituíram pelos cerimoniais dos cultos exteriores, sendo nisso – hodiernamente - imitados pelos cristãos das mais variadas vertentes.

Como desde Lutero as rentáveis vendas das indulgências se apresentam como um mercado em baixa, descobriu-se que os “santuários” podem ser formidáveis sucedâneos daquele ancestral comércio, uma vez que não faltarão fiéis de fé simples e ingênua para frequentá-los religiosamente, fomentando, dessa forma, um enorme mercado paralelo para os setores de turismo e para a indústria e comércio de quinqui-lharias, com farto aporte monetário, em que pese o pagamento de gorda fatia aos cofres do Vaticano.

Engana-se, porém, quem pensa que só existe idolatria no seio das vetustas religiões.  Ela também – infelizmente – existe no meio espírita!

Analisando a triste questão da idolatria no meio espírita, Ermance Dufaux afirma(1): “(...) idolatria é o excessivo entusiasmo e admiração por uma pessoa com a qual partilhamos ou não a convivência... São oradores, médiuns e trabalhadores que costumam destacar-se pelas virtudes ou pelas experiências, e que são tomados à conta de ícones, com os quais delineamos a noção pessoal de "limite máximo" ou "modelo" para os novos passos assumidos na caminhada espiritual.

Sem considerar os naturais sentimentos de admiração e entusiasmo dirigidos a quem fez por merecê-los, quase sempre nas causas dessa idolatria encontra-se o mecanismo defensivo da mente, pelo qual é projetado no outro aquilo que gostaríamos de ser.

Dois graves problemas, entre os muitos, decorrem dessa relação idólatra: as exageradas expectativas e a prisão dos estereótipos.

As expectativas transferidas ao ícone carreiam desejos e anseios que se tornam âncoras de segurança para os problemas individuais. Caso a criatura se habitue ao conforto de "escorar-se" psicologicamente no outro e fugir do seu esforço autoeducativo, passará ao terreno das ilusões, sentindo-se e acreditando-se tão virtuosa ou capaz quanto ele. Ocorre então uma absorção da "identidade alheia" como se fosse sua... É como "ser alguém" através dos valores do outro.

Quanto aos estereótipos, vamos verificar outra questão que tem trazido muitos desajustes: o hábito do dogmatismo, uma velha tendência humana de ouvir a palavra dos "homens santificados" pela hierarquia religiosa. Pessoas que se tornam carismáticas pela sua natural forma de ser ou pelo valoroso desempenho doutrinário são, comumente, colocadas como "astros" ou "missionários" de grande envergadura.

Quaisquer dessas vivências, expectativas elevadas ou criação de modelos podem nos trazer muita decepção e revolta. Somos todos aprendizes, uns com mais, outros com menos experiência; todos, no entanto, sem exceção, como aprendizes do progresso e gestores do bem. Podemos sempre aprender algo com alguém, desde que tenhamos visão e predisposição à alteridade. O que hoje entendemos como sendo excepcional em alguém, amanhã poderá não ser tão útil para nossa percepção mutável e ascensional.

Por mais bem-sucedida a reencarnação na melhoria espiritual, isso será apenas o primeiro passo de uma longa jornada. Então, por que glórias fictícias com ídolos com pés de barro? Missionários e virtuosos? São muito raros na Terra!  Para conhecêlos é muito fácil, nenhum deles aceita uma relação de idolatria, enquanto se verifica outro gênero de conduta com muitos que se julgam ou são julgados como tais.

Quando refletimos sobre esta questão é no intuito de chamar a atenção de todos nós para os prejuízos de continuarmos cultivando semelhantes expressões de infantilidade emocional. Existe, de fato, uma velha tendência que nos acompanha, a qual podemos declinar como "hábito da canonização psíquica".

Muitos ídolos adoram as bajulações e burburinhos em torno de seu nome. São folgas que não deveríamos buscar para nossa vida, quando deveriam educar-se e educar os outros para assumirem a condição de condutores, aqueles que lideram promovendo, libertando, e não fazendo "coleção de admiradores" para alimentar seu personalismo.

Como bons espíritas, apenas começamos os serviços de transformar a autoimagem de orgulho, profundamente cristalizada nos recessos da mente. Quando nos adornamos com qualidade e virtudes que imaginamos possuir, perdemos a oportunidade de sermos nós mesmos, de eleger a autenticidade como nossa conduta, de construir quanto antes a “nova identidade" que almejamos.

Inspiremo-nos em nossas referências, todavia não façamos deles ídolos. Ouçamo-los, tiremos proveito de suas conquistas, mas façamos tudo isso com equilíbrio, nem mais nem menos!

 


(1)
OLIVEIRA, W. Soares. Reforma íntima sem martírio. B. Hte: INEDE, 2003, cap. 24, p. 146-148.
 




 

 

     
     

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