Deus na Natureza
Camille
Flammarion
(Parte 4)
Continuamos o
estudo metódico
e sequencial do
livro Deus na
Natureza,
de autoria de Camille
Flammarion,
escrito na
segunda metade
do século 19, no
ano de
1867.
Questões preliminares
A. Crescia desmesuradamente na Europa o número de
estudiosos embaídos pelas ideias materialistas. Que
disse Flammarion a respeito desse fato?
Ele cita nesta obra esse fato, mas afirma – com toda a
sua autoridade de homem de ciência respeitado em sua
época – que, mestres ou discípulos, quantos se apoiam em
testemunhos da ciência experimental para concluir que
Deus não existe cometem a mais grave inconsequência. E
acrescenta: “Acusando-os dessa erronia, haveremos de
justificar-nos, ainda que os incriminados possam, sob
outro prisma, ser considerados homens eminentes e
respeitáveis. De resto, é mesmo em nome da ciência
experimental que vimos combatê-los”.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
B. A ideia que nossos antepassados tinham de Deus tem
variado ao longo do tempo?
Sim. Segundo Flammarion, a concepção humana acerca de
Deus, em todas as épocas, sempre esteve de acordo com o
grau de ciência sucessivamente adquirido pela
Humanidade. Ora, tal como o saber humano, essa ideia é
variável e deve, necessariamente, progredir, pois, seja
como for, cada uma das noções que constituem o
patrimônio da inteligência deve seguir a par com o
progresso geral, sob pena de ficar distanciada.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
C. A matéria existe de toda a eternidade?
Segundo os materialistas contemporâneos de Flammarion,
sim, a matéria existiria de toda a eternidade, revestida
de umas tantas propriedades, de certos atributos, e
essas propriedades qualificativas da matéria bastariam
para explicar a existência, estado e conservação do
mundo. Flammarion contesta, evidentemente, essa
concepção. Os materialistas, ao pensarem assim,
substituem um Deus-espírito por um Deus-matéria.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
Texto para leitura
69. O problema da existência de Deus é primacial a
todos. Nem por outro motivo é que, contra ele, se
assestam as principais, as mais possantes baterias do
Materialismo que nos propomos combater. Pretende-se
provar, com a ciência positiva, a inexistência de Deus e
que uma tal hipótese não passa de aberração da
inteligência humana. Um grande número de homens sérios,
convencidos do valor desses pretensos raciocínios
científicos, enfileiraram-se ao redor desses inovadores
recidivos, engrossando desmesuradamente as hostes
materialistas, primeiro na Alemanha e depois na França,
na Inglaterra, na Suíça e na própria Itália.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
70. Ora, nós não tememos dizer que, mestres ou
discípulos, quantos se apoiam em testemunhos da ciência
experimental para concluir que Deus não existe, cometem
a mais grave inconsequência. Acusando-os dessa erronia,
haveremos de justificar-nos, ainda que os incriminados
possam, sob outro prisma, ser considerados homens
eminentes e respeitáveis. De resto, é mesmo em nome da
ciência experimental que vimos combatê-los.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
71. Em vão se nos objetará não podermos afirmar a
existência de uma entidade que não conhecemos.
Precatemo-nos de presunções que tais. Certo, não
conhecemos Deus, mas, sem embargo, sabemos que existe.
Também não conhecemos a luz e sabemos que ela irradia
das alturas celestes. Tampouco, conhecemos a vida e
sabemos que ela se desdobra em esplendores na superfície
da Terra.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
72. “Longe estou de crer – dizia Goethe a Eckermann –
que tenha uma exata noção do Ser supremo. Minhas
opiniões, faladas ou escritas, resumem-se nisto: Deus é
incompreensível e o homem não tem a seu respeito mais
que uma noção vaga e aproximativa. De resto, toda a
Natureza, e nós com ela, somos de tal modo penetrados
pela Divindade que dela nos sustentamos, nela vivemos,
respiramos, existimos. Sofremos ou gozamos em
conformidade de leis eternas, perante as quais
representamos um papel ativo e passivo ao mesmo tempo,
quer o reconheçamos, quer não. A criança regala-se com o
bolo, sem cogitar de quem o fez, o pássaro belisca a
cereja, sem imaginar como a mesma se formou. Que sabemos
de Deus? E que significa, em suma, essa íntima intuição
que temos de um Ser supremo? Ainda mesmo que, a exemplo
dos turcos, eu lhe desse cem nomes, ficaria
infinitamente abaixo da verdade, tantos são os seus
inumeráveis atributos... Como o Ente supremo, a que
chamamos Deus, manifesta-se não só no homem como no
âmbito de uma Natureza rica e potente quanto nos grandes
acontecimentos mundiais, a ideia que dele se faz é,
evidentemente, exígua.”
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
73. A ideia que os antepassados formavam de Deus, em
todas as épocas, sempre esteve de acordo com o grau de
ciência sucessivamente adquirido pela Humanidade. Tal
como o saber humano, essa ideia é variável e deve,
necessariamente, progredir, pois, seja como for, cada
uma das noções que constituem o patrimônio da
inteligência deve seguir a par com o progresso geral,
sob pena de ficar distanciada.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
74. Digamo-lo francamente: em ciência experimental, Deus
não pode ser admitido a priori e muito menos a
destinação, ou finalidade, que presumimos apreender nas
obras da Natureza. As doutrinas apriorísticas caducaram,
já se não admitem.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
75. Confessemo-nos com os materialistas e perguntemos se
os que tomaram Deus e não a Natureza como ponto de
partida explicaram, algum dia, as propriedades da
matéria ou as leis que governam o mundo. Puderam eles
dizer-nos da mobilidade ou imobilidade do Sol? – se a
Terra era plana ou esférica? – quais os desígnios de
Deus, etc.? Absolutamente. Mesmo porque, seria
impossível.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
76. Partir de Deus para investigação e exame da Criação
é processo baldo de nexo e de sentido. Esse precário
método para estudar a Natureza e inferir consequências
filosóficas, no pressuposto de poder, com uma simples
teoria, construir o Universo e fixar as verdades
naturais, desacreditou-se, felizmente, há muito tempo.
Mas, pelo fato de havermos substituído a hipótese
precedente pelos resultados do exame a posteriori,
segue-se que devamos fechar os olhos e negar a
inteligência, a sabedoria, a harmonia reveladas pela
própria observação? Haverá motivo para repudiar toda e
qualquer conclusão filosófica e ficar a meio caminho,
temerosos de atingir o fim? E deveremos, por isso,
rendermo-nos aos cépticos contemporâneos que, sem
embargo de evidência, rejeitam toda luz e toda
conclusão? Pensamos que não. Muito ao contrário, pelo
método que preconizam, constatamos as suas recusas e
inconsequências.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
77. Antes de qualquer controvérsia, importa determinar
as posições recíprocas, por evitar mal-entendidos,
esperando nós que as declarações precedentes bastem para
esclarecer categoricamente a nossa atitude. Combateremos
francamente o materialismo, não com as armas da fé
religiosa, não com os argumentos da fraseologia
escolástica, não com as autoridades tradicionais, mas
pelos raciocínios que a contemplação científica do
Universo inspira e fecunda.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
78. Examinemos preliminarmente, num lanço-de-olhos, de
conjunto, o processo geral do ateísmo hodierno.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
79. Esse processo assemelha-se sensivelmente ao de que
se utilizou o barão de Holbach, nos fins do século 18,
para fundamentar o seu famoso Sistema da Natureza, obra
de um materialismo vulgar, para a qual achava Goethe não
haver suficiente desprezo e costumava averbar de –
“legítima quintessência da senectude, inepta e insulsa”.
O novo processo, mais exclusivamente científico,
todavia, consiste principalmente em declarar que as
forças que dirigem, não dirigem o mundo, isto é: que em
vez de governarem a matéria, antes se lhe escravizam e
que é a matéria (inerte, cega, desprovida de
inteligência) que, movendo-se de si mesma, se governa
mediante leis, cujo alcance ela não pode, todavia,
apreciar.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
80. Pretendem os nossos materialistas atuais que a
matéria existe de toda a eternidade, revestida de umas
tantas propriedades, de certos atributos e que essas
propriedades qualificativas da matéria bastam para
explicar a existência, estado e conservação do mundo.
Dessarte, substituem um Deus-espírito por um
Deus-matéria.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
81. Ensinam que a matéria governa o mundo e que as
forças químicas, físicas, mecânicas, não passam de
qualidades.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
82. Para refutar um tal sistema, há que tomar, por
conseguinte, o partido contrário e demonstrar um
Deus-espírito, antes que um Deus-matéria,
incompreensível, a reger a matéria; estabelecer que a
substância é escrava antes que proprietária da força;
provar que a direção do mundo não cabe às moléculas
cegas que o constituem, mas a forças sob cuja ação
transparecem as leis supremas.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
83. Fundamentalmente, o problema se resume nesta
demonstração e nós esperamos que ela ressaltará
brilhante dos estudos objetivados neste nosso trabalho.
E uma vez que os adversários se apoiam em legítimos
fatos científicos para estabelecer o erro, cumpre-nos
contrabatê-los com esses mesmos fatos.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
84. A bem dizer, ainda que se demonstrasse que o
Universo não é mais que um mecanismo material, cujas
forças não se conjugam a um motor, mas remontam a
matéria, subindo e descendo incessantes num sistema de
motilidade perpétua, nem por isso a causa divina estaria
perdida. Contudo, desde os primórdios da Filosofia, a
partir de Heráclito e Demócrito, o sistema mecânico do
mundo constituiu-se o refúgio e o argumento dos ateus,
enquanto o sistema dinâmico albergava e escorava os
espiritualistas.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
85. Nós, por princípio, filiamo-nos à concepção dinâmica
e combatemos o sistema incompleto de um mecanismo sem
construtor. Muito judiciosamente, diz Caro(1):
- Por um lado o mecanismo tudo explica, mediante
combinações e agrupamentos de átomos eternos. Todas as
variedades de fenômenos, o nascimento, a vida, a morte,
mais não são que o resultado mecânico de composições e
decomposições, a manifestação de sistemas atômicos que
se reúnem e se separam. O dinamismo, ao contrário,
subordina todos os fenômenos e todos os seres à ideia de
força. O mundo é a expressão, seja de forças opostas e
harmoniosas entre si, seja de uma força única, cuja
metamorfose perpétua engendra a universalidade dos
seres.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
86. Pode-se constatar que, não obstante ser a explicação
secundária das coisas, até certo ponto, independente da
primária, ou metafísica, a História atesta o fato
constante de uma afinidade natural: de um lado, entre a
explicação mecânica e a hipótese supressiva de Deus; e
de outro lado, entre a teoria dinâmica e a hipótese que
diviniza o mundo em seu princípio.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
87. A teoria mecânica, estabelecendo a pura necessidade
matemática nas ações e reações que formam a vida do
mundo, é incompleta, por isso que suprime a causa e
dissipa em névoa o mundo moral. A teoria de uma força
única, universal, sempre atual e formando a variedade
dos seres pelas suas metamorfoses, ajusta essa
misteriosa universalidade a uma força primordial.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
88. Poder-se-ia, portanto, acusar simplesmente o
processo geral dos nossos contraditores de um erro
gramatical, atribuindo à matéria um poder só cabível à
força e pretendendo não passar esta de mero adjetivo
qualificativo, quando lhe cabem os mesmos direitos
daquela, na classe dos substantivos.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. A Força e a
Matéria.)
(Continua no próximo número.)
(1)
La Philosophie de Goethe,
capítulo 6º.