Deus na Natureza
Camille
Flammarion
(Parte 9)
Continuamos o
estudo metódico
e sequencial do
livro Deus na
Natureza,
de autoria de Camille
Flammarion,
escrito na
segunda metade
do século 19, no
ano de
1867.
Questões preliminares
A. É verdade que
um dos motivos
de crítica dos
que negam a
existência de
Deus é a
vastidão do
espaço
universal?
Por incrível que pareça, sim. Para eles não existe
lógica em que o espaço universal seja tão vasto. Pelo
menos é o que diz Büchner: “se houvéramos de atribuir a
uma força criadora individual a origem dos mundos para
habitação de homens e animais, importaria saber para que
serve esse espaço imenso, deserto, vazio, inútil, no
qual flutuam planetas e sóis? Por que os outros planetas
do sistema não se tornaram habitáveis para o homem?”
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
B. Que tolice dizem eles a respeito da Lua e da
velocidade da luz?
No tocante a esses assuntos, percebe-se que os negadores
do Criador não raro resvalam no plano raso das
puerilidades. Um dentre eles adverte que a luz caminha
com a velocidade de 75.000 léguas por segundo, achando
que é pouco e que é ridículo para um Criador o não poder
acelerá-la. Outro acha que a Lua também não gira
suficientemente célere. “A Lua – diz o americano Hudson
Tuttle – não gira senão uma vez sobre si mesma, enquanto
completa a sua revolução em torno da Terra, de sorte que
lhe apresenta sempre a mesma face. Assiste-nos legítimo
direito de perguntar por quê, pois se houvesse nisso um
intuito qualquer, a sua execução deveria ser
assinalada.”
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
C. O acaso tem guarida no mecanismo dos astros?
Claro que não. O acaso não entra nas cogitações do
verdadeiro cientista, como Képler, que viveu adorando a
harmonia do mundo e só como extravagância admitia
dúvidas a respeito. Os fundadores da Astronomia –
Copérnico, Galileu, Tieha-Brahé, Newton, todos se
acordam no mesmo culto de Képler.[i]
Não são, portanto, os astrônomos que increpam o céu de
falta de harmonia.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
Texto para leitura
185. Que seria preciso para satisfazer aos senhores
criticistas de Deus? Vamos dizê-lo: primeiro, que não
houvesse espaço ou que esse espaço fosse menos vasto,
visto haver, decididamente, muito espaço no infinito.
Pelo menos é o que diz Büchner: “se houvéramos de
atribuir a uma força criadora individual a origem dos
mundos para habitação de homens e animais, importaria
saber para que serve esse espaço imenso, deserto, vazio,
inútil, no qual flutuam planetas e sóis? Por que os
outros planetas do sistema não se tornaram habitáveis
para o homem?”
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
186. Aí está como esses senhores se dão à fantasia de
declarar inútil o espaço, a querer que todos os globos
se comuniquem entre si. O caricaturista Granville já
tivera a mesma ideia, quando representou num dos seus
encantadores desenhos os jupiterianos em excursão a
Saturno, atravessando uma ponte, de charuto à boca. E o
anel de Saturno lá está como um grande alpendre, onde os
saturninos vão à noite refrescar-se.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
187. Se esse é o desejado universo, cujo primeiro
resultado seria imobilizar o sistema planetário, mais
avisados andariam os inventores dirigindo-se seriamente
à Escola de Pontes e Calçadas, antes que à Filosofia.
Que esta, na verdade, nada tem com isso.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
188. Se houvesse um Deus – ajuntam –, para que serviriam
as irregularidades e desproporções enormes de volume e
distância entre os planetas e o nosso sistema solar? Por
que essa completa ausência de ordem, de simetria, de
beleza?
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
189. Havemos de convir que é preciso ser um tanto
pretensioso para admirar cenografias de bastidores
teatrais e recusar ao mesmo tempo a beleza e a simetria
às obras da Natureza. Parece-nos mesmo que é a primeira
increpação que se faz neste sentido.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
190. De resto, esses senhores não nos oferecem senão
negações. Negação de Deus, da alma, do raciocínio e seus
poderes, sempre, e em tudo, negação. Isso é o que
propriamente lhes concerne, e nada mais. Sua pretensa
consciência científica é simples burla. Nossos
espirituosos adversários não raro resvalam no plano raso
das puerilidades.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
191. Um dentre eles adverte que a luz caminha com a
velocidade de 75.000 léguas por segundo, achando que é
pouco e que é ridículo para um Criador o não poder
acelerá-la. Outro acha que a Lua também não gira
suficientemente célere. “A Lua – diz o americano Hudson
Tuttle – não gira senão uma vez sobre si mesma, enquanto
completa a sua revolução em torno da Terra, de sorte que
lhe apresenta sempre a mesma face. Assiste-nos legítimo
direito de perguntar por quê, pois se houvesse nisso um
intuito qualquer, a sua execução deveria ser
assinalada.”
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
192. Na verdade, o Criador foi assaz negligente deixando
de admitir esses senhores na intimidade da sua técnica.
Já se viu uma coisa assim? Deixá-los em completa
ignorância dos fins que se propôs ao fazer rodar tão
lerdamente a nossa amável Luazinha! Mas, de fato: será
que Deus não poderia ter tido melhor conduta a benefício
de nossa instrução pessoal? Nós! “Por que,
perguntamo-nos ainda[ii],
a força criadora não gravou em linhas de fogo (certo em
alemão) o seu nome no céu? Por que não deu aos sistemas
siderais uma ordem que nos desse a conhecer, de maneira
evidente, sua intenção e desígnios?” Que estúpida
divindade!
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
193. Com efeito, senhores, sois admiráveis e a vossa
maneira de raciocinar iguala à vossa ciência, o que
aliás não é pouco. Que pena não terdes vós mesmos
construído o Universo! Sim, porque então teríeis
prevenido todos estes inconvenientes... Mas, dizei-me:
estais bem certos de conhecer integralmente a matéria
para afirmar que ela substitui Deus, com vantagem? Será
que ela vos explica completamente o estado do Universo?
Ó Ciência! senão estes os frutos da tua árvore?
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
194. Aqui, é bem o caso de confessar, com o próprio
Büchner, que a comumente invocada profundeza do espírito
alemão é antes perturbação que profundeza de espírito.
“O que os alemães chamam filosofia – acrescenta o mesmo
escritor – não é mais que mania de jogar com ideias e
palavras, e com o que se atribuem o direito de olhar
outros povos por cima dos ombros.”
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
195. Não há sabedoria, inteligência, ordem, harmonia no
Universo – eis o que eles afirmam. Semelhante acusação
será mesmo feita a sério? Por nós, temos que é lícito
duvidar.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
196. Em outubro de 1604, magnífica estrela surgiu de
improviso na constelação da Serpente. Os astrônomos
ficaram assaz surpresos, por isso que uma tal aparição
parecia contrária à harmonia dos céus. As estrelas
variáveis ainda não eram conhecidas. Como, pois, nascera
aquela? Fortuitamente? Engendrada ao acaso? Estas as
interrogações de Képler, quando sobreveio um pequeno
acidente...
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
197. “Ontem – disse-o ele –, no curso das minhas
elucubrações, fui chamado para o jantar. Minha mulher
trouxe à mesa uma salada. – Pensas, disse-lhe eu, que,
se desde os primórdios da Criação flutuassem no ar, sem
ordem nem direção, pratos de estanho, folhas de alface,
grãos de sal, azeite e vinagre e pedaços de ovo cozido,
o acaso os juntaria hoje para fazer uma salada? – Não
tão boa como esta, seguramente – respondeu-me a bela
esposa.”
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
198. Ninguém ousou considerar a nova estrela como
produto do acaso e hoje sabemos que o acaso não tem
guarida no mecanismo dos astros. Képler viveu adorando a
harmonia do mundo e só como extravagância admitia
dúvidas a respeito. Os fundadores da Astronomia –
Copérnico, Galileu, Tycho Brahe, Newton, todos se
acordam no mesmo culto de Képler.[iii]
Não são, portanto, os astrônomos que increpam o céu de
falta de harmonia.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
199. Ó mundos esplendorosos! sóis do infinito, e vós,
terras habitadas que gravitais em torno desses focos
brilhantes, cessai o vosso movimento harmonioso, sustai
vosso curso. A vida vos irradia da fronte, a
inteligência mora em vossas tendas e os vossos campos
recebem, dos multifários sóis que os iluminam, a seiva
fecunda das existências. Sois levados, no infinito, pela
mesma soberana mão que sustenta o nosso globo, mercê da
suprema lei que inclina o gênio à adoração da grande
causa. Daqui, seguimos os vossos movimentos, mau grado
às inomináveis distâncias que nos separam, e observamos
que esses movimentos são regulados, qual os nossos,
pelas três regras que a genialidade de Képler vingou
formular. Do fundo abismal dos céus, vós nos ensinais
que uma ordem soberana e universal rege os mundos. Vós
nos contais a glória de Deus em termos que deixam a
perder de vista os com que a proclamava o rei-profeta,
escreveis no céu o nome desse ente desconhecido, que
nenhuma criatura pode sequer pressentir.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
200. Astros de movimentação maravilhosa, gigantescos
focos da vida universal, esplendores do céu! – vós nos
fazeis genufletir, como crianças, à vontade divina e os
vossos berços balançam confiantes na imensidade, sob o
olhar do Onipotente. Percorreis humildemente a rota a
cada qual traçada, ó viajores celestes! E desde os mais
remotos séculos, desde as idades inacessíveis em que
saístes do primitivo caos, eis-vos manifestando a
previdente sabedoria da lei que vos conduz...
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
201. Insensatos! massas inertes, globos cegos, brutos
notívagos, que fazeis? Parai, cessai com esse eterno
testemunho... Detende o turbilhão colossal dos vossos
cursos múltiplos. Protestai contra a força que vos
avassala. Que significa essa obediência servil? Então,
filhos da matéria, não será ela a soberana do espaço?
Dar-se-á que haja leis inteligentes? Forças diretoras?
Nunca, jamais. Laborais num erro insigne, ó estrelas do
infinito! sois vítimas do mais ridículo ilusionismo...
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
202. Escutai, pois: no fundo dos vastos desertos
siderais, dormita obscuro um pequenino globo
desconhecido. Não tendes acaso percebido, uma que outra
vez, entre as miríades de estrelas que branqueiam a
Via-Láctea, uma estrelinha de ínfima grandeza? Pois bem,
essa estrelinha, como vós, é também um sol e em torno
dele rolam algumas miniaturas de mundos tão pequeninos
que rolariam quais grãos de areia, na superfície de um
de vós. Ora, sobre um dos mais microscópicos planos
desses microscópicos mundículos, há uma raça de
racionalistas e, no seio da raça, um núcleo de filósofos
que acabam de declarar positivamente, ó magnificências!
– que o vosso Deus não existe.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
203. Soberbos pigmeus levantaram-se na ponta dos pés,
pensando ver-vos assim de mais perto. Eles vos acenaram
para que vos detivésseis e proclamaram, em seguida, que
os ouvísseis e que toda a Natureza estava com eles. Em
alto e bom som, proclamam-se os intérpretes únicos dessa
Natureza imensa. A lhes darmos crédito, pertence-lhes,
doravante, o cetro da razão e o futuro do pensamento
humano está em suas mãos.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
204. Firmemente convencidos estão eles, não só da
verdade, mas, sobretudo, da utilidade de sua descoberta
e da benéfica influência resultante para o progresso
desta pequena humanidade. Ao demais fizeram constar que
todos quantos lhes não compartilhassem a opinião estavam
em contradita com a ciência natural e que a melhor
qualificação cabível a esses dissidentes retardatários é
de ignorantes obcecados. Não vos exponhais, portanto, a
serdes tão desfavoravelmente julgadas por esses
senhores, ó portentosas estrelas!
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
205. Procedei de maneira a distinguir o nosso
imperceptível sol, o nosso átomo terrestre, a nossa
vermínea racionalidade e, aderindo a esta declaração
capital, paralisai o mecanismo do Universo e com ele a
dimensão e harmonia; substituí o movimento pelo repouso,
a luz pela treva, a vida pela morte e, depois, quando
toda a capacidade intelectual for aniquilada, todo o
idealismo banido da Natureza, suprimida toda a lei,
atrofiada toda a força, o Universo se pulverizará, vós
vos dispersareis em pó no bojo da noite infinita, e se o
átomo terrestre ainda subsistir, os senhores filósofos,
últimos viventes, estarão satisfeitos. Não mais se
poderá dizer que haja inteligência na Natureza.
(Deus na Natureza – Primeira Parte. O Céu.)
(Continua no próximo
número.)
[i]
Quanto mais profunda o homem os segredos da
Natureza, mais se lhe desvenda a universalidade
do plano eternal. “Si stelles, fixae – diz
Newton (Phil. nat Principia math, Scholgen)
–, sint centra similium systematum, hoec omnia
simili consilio constructa suberunt uniuns
dominio”. – Cf. também Képler, Harmonices
Mundi.
[ii]
Kraft und Steft; 8º.
[iii]
Quanto mais profunda o homem os segredos da
Natureza, mais se lhe desvenda a universalidade
do plano eternal. “Si stelles, fixae – diz
Newton (Phil. nat Principia math, Scholgen)
–, sint centra similium systematum, hoec omnia
simili consilio constructa suberunt uniuns
dominio”. – Cf. também Képler, Harmonices
Mundi.