Vez por outra surge no meio espírita questionamento
sobre certas práticas espíritas que, segundo alguns, não
teriam embasamento nas obras de Allan Kardec, mas fariam
parte do Espiritismo à moda brasileira. O uso da
água magnetizada, a desobsessão e os passes seriam
algumas dessas práticas.
É evidente que tal pensamento é uma tolice e revela tão
somente que o crítico desconhece a obra kardequiana,
como mostra o confrade João Donha, um companheiro de
longa data, em um importante texto publicado no
Jornal Ciência Espírita, que, com a devida vênia,
reproduzimos nas linhas abaixo. Para acessar a
publicação citada,
clique aqui
Eis o artigo a que nos reportamos:
“Tenho lido, repetidas vezes, afirmações de que as
práticas terapêuticas disseminadas pelos nossos centros
(água fluidificada, passe e desobsessão) seriam criações
do espiritismo brasileiro. Não. Como muitas outras
coisas cujas origens são questionadas, essas práticas
são também de responsabilidade de Kardec. Senão,
vejamo-las em citações do mestre lionês.
Justificativa da terapia espírita
“As doenças fazem parte das provas e das vicissitudes da
vida terrena; são inerentes à grosseria da nossa
natureza material e à inferioridade do mundo que
habitamos. As paixões e os excessos de toda ordem
semeiam em nós germens malsãos, às vezes hereditários.
Nos mundos mais adiantados, física ou moralmente, o
organismo humano, mais depurado e menos material, não
está sujeito às mesmas enfermidades e o corpo não é
minado surdamente pelo corrosivo das paixões. (Cap. III,
n° 9.) Temos, assim, de nos resignar às consequências do
meio onde nos coloca a nossa inferioridade, até que
mereçamos passar a outro. Isso, no entanto, não é de
molde a impedir que, esperando tal se dê, façamos o que
de nós depende para melhorar as nossas condições atuais.
Se, porém, mau grado aos nossos esforços, não o
conseguirmos, o Espiritismo nos ensina a suportar com
resignação os nossos passageiros males. Se Deus não
houvesse querido que os sofrimentos corporais se
dissipassem ou abrandassem em certos casos, não houvera
posto ao nosso alcance meios de cura. A esse respeito, a
sua solicitude, em conformidade com o instinto de
conservação, indica que é dever nosso procurar esses
meios e aplicá-los. A par da medicação ordinária,
elaborada pela Ciência, o magnetismo nos dá a conhecer o
poder da ação fluídica e o Espiritismo nos revela outra
força poderosa na mediunidade curadora e a influência da
prece. (Ver, no Cap. XXVI, a notícia sobre a mediunidade
curadora.)”(1)
Fluidoterapia: água fluidificada e passe
“Pode (o Espírito), pela ação da sua vontade, operar na
matéria elementar uma transformação íntima, que lhe
confira determinadas propriedades. Esta faculdade é
inerente à natureza do Espírito, que muitas vezes a
exerce de modo instintivo, quando necessário, sem disso
se aperceber. A existência de uma matéria elementar
única está hoje quase geralmente admitida pela Ciência,
e os Espíritos, como se acaba de ver, a confirmam. Todos
os corpos da Natureza nascem dessa matéria que, pelas
transformações por que passa, também produz as diversas
propriedades desses mesmos corpos. Daí vem que uma
substância salutar pode, por efeito de simples
modificação, tornar-se venenosa, fato de que a Química
nos oferece numerosos exemplos. Toda gente sabe que,
combinadas em certas proporções, duas substâncias
inocentes podem dar origem a uma que seja deletéria. Uma
parte de oxigênio e duas de hidrogênio, ambos
inofensivos, formam a água. Juntai um átomo de oxigênio
e tereis um liquido corrosivo. Sem mudança nenhuma das
proporções, às vezes, a simples alteração no modo de
agregação molecular basta para mudar as propriedades.
Assim é que um corpo opaco pode tornar-se transparente e
vice-versa. Pois que ao Espírito é possível tão grande
ação sobre a matéria elementar, concebe-se que lhe seja
dado não só formar substâncias, mas também
modificar-lhes as propriedades, fazendo para isto a sua
vontade o efeito de reativo. Esta teoria nos fornece a
solução de um fato bem conhecido em magnetismo, mas
inexplicado até hoje: o da mudança das propriedades da
água, por obra da vontade. O Espírito atuante é o do
magnetizador, quase sempre assistido por outro Espírito.
Ele opera uma transmutação por meio do fluido magnético
que, como atrás dissemos, é a substância que mais se
aproxima da matéria cósmica, ou elemento universal. Ora,
desde que ele pode operar uma modificação nas
propriedades da água, pode também produzir um fenômeno
análogo com os fluidos do organismo, donde o efeito
curativo da ação magnética, convenientemente dirigida.
Sabe-se que papel capital desempenha a vontade em todos
os fenômenos do magnetismo. Porém, como se há de
explicar a ação material de tão sutil agente? A vontade
não é um ser, uma substância qualquer; não é, sequer,
uma propriedade da matéria mais etérea que exista. A
vontade é atributo essencial do Espírito, isto é, do ser
pensante. Com o auxílio dessa alavanca, ele atua sobre a
matéria elementar e, por uma ação consecutiva, reage
sobre seus compostos, cujas propriedades íntimas vêm
assim a ficar transformadas. Tanto quanto do Espírito
errante, a vontade é igualmente atributo do Espírito
encarnado; daí o poder do magnetizador, poder que se
sabe estar na razão direta da força de vontade. Podendo
o Espírito encarnado atuar sobre a matéria elementar,
pode do mesmo modo mudar-lhe as propriedades, dentro de
certos limites. Assim se explica a faculdade de cura
pelo contacto e pela imposição das mãos, faculdade que
algumas pessoas possuem em grau mais ou menos elevado.
(Veja-se, no capítulo dos Médiuns, o parágrafo referente
aos Médiuns curadores. Veja-se também a Revue Spirite,
de julho de 1859, págs. 184 e 189: O zuavo de Magenta;
Um oficial do exército da Itália.)” (2)
Costumam argumentar que tais citações referem-se aos
magnetizadores e, não, aos espíritas comuns,
trabalhadores de nossos centros. De novo, não. Além
dessa profissão de “magnetizador”, existente no tempo de
Kardec, ter desaparecido, e sua prática ter sido
historicamente absorvida pelos espíritas, temos
afirmações dele próprio que justificam tal
acontecimento:
“Médiuns curadores. Os que têm o poder de curar ou
aliviar pela imposição das mãos ou pela prece. ‘Esta
faculdade não é essencialmente mediúnica: pertence a
todos os verdadeiros crentes, sejam médiuns ou não;
muitas vezes não passa de uma exaltação da força
magnética fortificada, caso necessário, pelo concurso
dos bons Espíritos.’ (n.175).” (3)
Desobsessão
Pelas citações abaixo, vemos que Kardec, ao contrário do
que se acredita, não preconiza o tratamento da obsessão
apenas em relação aos médiuns, mas, sim, para todo e
qualquer indivíduo que o necessite. E os passos são
aqueles conhecidos dos espíritas da atualidade:
esclarecimento do obsidiado, fluidoterapia (“mediante
ação idêntica à do médium curador”) e, esclarecimento e
convencimento do espírito obsessor, “em evocações
particulares”.
“A obsessão é a ação persistente que um Espírito mau
exerce sobre um indivíduo. Apresenta caracteres muito
diversos, desde a simples influência moral, sem
perceptíveis sinais exteriores, até a perturbação
completa do organismo e das faculdades mentais. Oblitera
todas as faculdades mediúnicas; traduz-se, na
mediunidade escrevente, pela obstinação de um Espírito
em se manifestar, com exclusão de todos os outros. Os
Espíritos maus pululam em torno da Terra, em virtude da
inferioridade moral de seus habitantes. A ação malfazeja
que eles desenvolvem faz parte dos flagelos com que a
Humanidade se vê a braços neste mundo. A obsessão, como
as enfermidades e todas as tribulações da vida, deve ser
considerada prova ou expiação e como tal aceita. Do
mesmo modo que as doenças resultam das imperfeições
físicas, que tornam o corpo acessível às influências
perniciosas exteriores, a obsessão é sempre o resultado
de uma imperfeição moral, que dá acesso a um Espírito
mau. A causas físicas se opõem forças físicas; a uma
causa moral, tem-se de opor uma força moral. Para
preservá-lo das enfermidades, fortifica-se o corpo; para
isentá-lo da obsessão, é preciso fortificar a alma, pelo
que necessário se torna que o obsidiado trabalhe pela
sua própria melhoria, o que as mais das vezes basta para
o livrar do obsessor, sem recorrer a terceiros. O
auxílio destes se faz indispensável, quando a obsessão
degenera em subjugação e em possessão, porque aí não
raro o paciente perde a vontade e o livre-arbítrio.
Quase sempre, a obsessão exprime a vingança que um
Espírito tira e que com frequência se radica nas
relações que o obsidiado manteve com ele em precedente
existência. (Veja-se: Cap. X, n° 6; cap. XII, n° 5 e n°
6.) Nos casos de obsessão grave, o obsidiado se acha
como que envolvido e impregnado de um fluido pernicioso,
que neutraliza a ação dos fluidos salutares e os repele.
É desse fluido que importa desembaraçá-lo. Ora, um
fluido mau não pode ser eliminado por outro fluido mau.
Mediante ação idêntica à do médium curador nos casos de
enfermidade, cumpre se elimine o fluido mau com o
auxílio de um fluido melhor, que produz, de certo modo,
o efeito de um reativo. Esta a ação mecânica, mas que
não basta; necessário, sobretudo, é que se atue sobre o
ser inteligente, ao qual importa se possa falar com
autoridade, que só existe onde há superioridade moral.
Quanto maior for esta, tanto maior será igualmente a
autoridade. E não é tudo: para garantir-se a libertação,
cumpre induzir o Espírito perverso a renunciar aos seus
maus desígnios; fazer que nele despontem o
arrependimento e o desejo do bem, por meio de instruções
habilmente ministradas, em evocações particulares,
objetivando a sua educação moral. Pode-se então lograr a
dupla satisfação de libertar um encarnado e de converter
um Espírito imperfeito. A tarefa se apresenta mais fácil
quando o obsidiado, compreendendo a sua situação, presta
o concurso da sua vontade e da sua prece. O mesmo não se
dá, quando, seduzido pelo Espírito embusteiro, ele se
ilude no tocante às qualidades daquele que o domina e se
compraz no erro em que este último o lança, visto que,
então, longe de secundar, repele toda assistência, É o
caso da fascinação, infinitamente mais rebelde do que a
mais violenta subjugação. (O Livro aos Médiuns, 2ª
Parte, cap. XXIII.)Em todos os casos de obsessão, a
prece é o mais poderoso auxiliar de quem haja de atuar
sobre o Espírito obsessor.”
“Observação. – A cura das obsessões graves requer muita
paciência, perseverança e devotamento. Exige também tato
e habilidade, a fim de encaminhar para o bem Espíritos
muitas vezes perversos, endurecidos e astuciosos,
porquanto há-os rebeldes ao extremo. Na maioria dos
casos, temos de nos guiar pelas circunstâncias. Qualquer
que seja, porém, o caráter do Espírito, nada se obtém, é
isto um fato incontestável pelo constrangimento ou pela
ameaça. Toda influência reside no ascendente moral.
Outra verdade igualmente comprovada pela experiência
tanto quanto pela lógica, é a completa ineficácia dos
exorcismos, fórmulas, palavras sacramentais, amuletos,
talismãs, práticas exteriores, ou quaisquer sinais
materiais. A obsessão muito prolongada pode ocasionar
desordens patológicas e reclama, por vezes, tratamento
simultâneo ou consecutivo, quer magnético, quer médico,
para restabelecer a saúde do organismo. Destruída a
causa, resta combater os efeitos. (Veja-se: O Livro dos
Médiuns, 2ª Parte, cap. XXIII – “Da obsessão”. – Revue
Spirite, fevereiro e março de 1864; abril de 1865:
exemplos de curas de obsessões.)” (4)
Notas:
(1) ESE, XXVIII, 77.
(2) LM, 129, 130, 131.
(3) LM, 189.
(4) ESE, XXVIII, 81.
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A propósito do tema acima e do tratamento indicado por
Kardec nos casos de obsessão, lembramos ao leitor que o
assunto já foi tratado nesta mesma seção, na edição 236
desta revista. Para acessar o texto ali contido,
clique neste link