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por Anselmo Ferreira Vasconcelos

  
Filhos que aprontam e pais que se desculpam


Imaginem a seguinte situação: um insensato adolescente portador de uma insopitável curiosidade descobre que o seu pai tem em seu quarto um revólver escondido numa caixa. Num encontro tipicamente familiar, ele e um colega se embriagam e vão para a rua carregando a arma. Objetivando exibir a sua suposta masculinidade e coragem para o novo amigo, ele atira num brinquedo da casa do vizinho, que, para o seu azar, o identifica pelo nome enquanto eles fogem em disparada. Felizmente, ninguém se fere, mas o vizinho logo pela manhã do dia seguinte vai tirar satisfações com o pai do estabanado adolescente.

Furioso com o filho pela vergonha passada, ele o leva a um bairro extremamente violento da cidade. O filho, acostumado à boa-vida, estranha as paisagens cinzentas e carcomidas pelo desleixo urbano que os seus olhos divisam. Por mais que se esforce, ele simplesmente não consegue atinar a razão de ali estar – algo totalmente fora dos seus padrões sociais. Em dado momento, eles estacionam o carro e o pai lhe mostra um álbum com fotos de vários jovens mortos. O filho tenta contra-argumentar que ele não é assim, e o pai antevendo as dificuldades de entendimento do filho toma uma atitude radical. Retira a arma do porta-luvas do carro e dá para o seu rebento rebelde.

Ordena-lhe que desça do carro e acelera o veículo. Nesse ínterim, o filho atônito sem entender o propósito daquela reação aparentemente intempestiva do seu genitor olha para todos os lados. As calçadas estão apinhadas de personagens sinistros e mal-encarados e um pânico incontrolável lhe invade a alma. Por fim, compreende que estar armado ali não significava muita coisa. O pai que havia partido momentos antes breca abruptamente o luxuoso veículo cerca de 500 metros à frente e abre a porta do banco do passageiro.

O filho muito assustado corre em sua direção sob apupos e xingamentos dos estranhos indivíduos que observavam a cena. À noite daquele mesmo dia pai e filho travam um ilustrativo diálogo. O filho reclama que o pai foi austero, e este – depois de proporcionar uma lição exemplar – paradoxalmente se desculpa. Essa descrição resumida faz parte de uma cena da quarta temporada do seriado Ray Donovan – uma espécie de troubleshooter das celebridades e dos ricaços de Los Angeles que usa métodos violentos e instrumentos nada ortodoxos de persuasão - exibido em canais a cabo e pela Netflix. Embora se trate de uma ficção encerra um comportamento social contemporâneo preocupante.

Para ser mais preciso, algo muito estranho, para dizer o mínimo, está em curso na relação entre pais e filhos na atualidade. Ou seja, os pais estão agora se desculpando por exercer o seu papel na educação da sua prole. Explico melhor: há fortes indícios de que muitos pais se sentem desconfortáveis em chamar a atenção dos seus filhos quando estes se excedem ou cometem uma falta grave. Em situações mais extremas, há pais que se desculpam por não poder acompanhar os seus filhos em certos eventos ou lhes atender certos desejos e caprichos.

É evitado a todo o custo – como já presenciei inúmeras vezes - o uso da palavra “não” na interação diária entre eles, até mesmo em situações que concretamente a exigem. É notório que os padrões educacionais – refiro-me essencialmente aqui à orientação que parte do lar – sofreram acentuadas mudanças nas últimas décadas. Por conseguinte, o modelo austero do passado cedeu a um enfoque e/ou tratamento contemporizador e, às vezes, até mesmo excessivo. Por isso, é pertinente recuperar as elucidações exaradas pela doutrina espírita, considerando a delicadeza do assunto. 

Desse modo, será que estabelecer certos limites e/ou pronunciar a palavra não, quando esta for necessária, podem ser iniciativas indesejadas nas relações entre pais e filhos? A lógica nos sugere o contrário. Afinal de contas, a educação do lar tende a moldar importantes traços comportamentais e de personalidade dos filhos. É nessa fonte sagrada que normalmente bebemos durante uma parte relevante da nossa formação, e que provavelmente determinará muito do que haveremos de ser no futuro. Se bem aproveitada, certamente nos lembraremos por toda a vida de certas lições recebidas, conselhos formulados, explicações fornecidas e exemplos dados pelos nossos pais.

Corroborando essa percepção, O Espírito Emmanuel, na obra Pensamento e Vida (psicografia de Francisco Cândido Xavier), recorda que “Nasce a criança, trazendo consigo o patrimônio moral que lhe marca a individualidade antes do renascimento no plano físico; no entanto, receberá os reflexos dos pais e dos mestres que lhe imprimirão à nova chapa cerebral as imagens que, em muitas ocasiões, lhe influenciarão a existência inteira”.  

Emmanuel pondera igualmente que:

“Tratá-los à conta de enfeites do coração será induzi-los a funestos enganos, porquanto, em se tornando ineficientes para a luta redentora, quando se lhes desenvolve o veículo orgânico facilmente se ajustam ao reflexo dominante das inteligências aclimatadas na sombra ou na rebeldia, gravitando para a influência do pretérito que mais deveríamos evitar e temer.

É assim que toda criança, entregue à nossa guarda, é um vaso vivo a arrecadar-nos as imagens da experiência diária, competindo-nos, pois, o dever de traçar-lhe noções de justiça e trabalho, fraternidade e ordem, habituando-a, desde cedo, à disciplina e ao exercício do bem, com a força de nossas demonstrações, sem, contudo, furtar-lhe o clima de otimismo e esperança. Acolhendo-a, com amor, cabe-nos recordar que o coração da infância é urna preciosa a incorporar-nos os reflexos, troféu que nos retratará no grande futuro, no qual passaremos todos igualmente a viver, na função de herdeiros das nossas próprias obras”.

Por sua vez, Allan Kardec, em O Livro dos Espíritos (questão 208), sintetiza: “... os Espíritos dos pais têm por missão desenvolver os de seus filhos pela educação. Constitui-lhes isso uma tarefa. Tornar-se-ão culpados, se vierem a falir no seu desempenho” (ênfase minha). Dedicar-se a essa tarefa com denodo, portanto, constitui uma obrigação inalienável quando se assume a paternidade.

Desculpar-se por querer lhes fornecer as lições mais valiosas ou por negar-lhes certos caprichos perigosos não condiz com tal missão. Querer compensar a ausência física – muito comum nos dias presentes por várias razões que não cabem discorrer aqui - por meio da complacência descabida com os defeitos, manias e comportamentos inapropriados dos filhos não ajuda os que abraçam a paternidade, assim como os seus filhos, além de criar situações penosas e perfeitamente dispensáveis para todos os envolvidos.

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita