Filhos que
aprontam e pais
que se desculpam
Imaginem a seguinte situação: um insensato adolescente
portador de uma insopitável curiosidade descobre que o
seu pai tem em seu quarto um revólver escondido numa
caixa. Num encontro tipicamente familiar, ele e um
colega se embriagam e vão para a rua carregando a arma.
Objetivando exibir a sua suposta masculinidade e coragem
para o novo amigo, ele atira num brinquedo da casa do
vizinho, que, para o seu azar, o identifica pelo nome
enquanto eles fogem em disparada. Felizmente, ninguém se
fere, mas o vizinho logo pela manhã do dia seguinte vai
tirar satisfações com o pai do estabanado adolescente.
Furioso com o filho pela vergonha passada, ele o leva a
um bairro extremamente violento da cidade. O filho,
acostumado à boa-vida, estranha as paisagens cinzentas e
carcomidas pelo desleixo urbano que os seus olhos
divisam. Por mais que se esforce, ele simplesmente não
consegue atinar a razão de ali estar – algo totalmente
fora dos seus padrões sociais. Em dado momento, eles
estacionam o carro e o pai lhe mostra um álbum com fotos
de vários jovens mortos. O filho tenta contra-argumentar
que ele não é assim, e o pai antevendo as dificuldades
de entendimento do filho toma uma atitude radical.
Retira a arma do porta-luvas do carro e dá para o seu
rebento rebelde.
Ordena-lhe que desça do carro e acelera o veículo. Nesse
ínterim, o filho atônito sem entender o propósito
daquela reação aparentemente intempestiva do seu genitor
olha para todos os lados. As calçadas estão apinhadas de
personagens sinistros e mal-encarados e um pânico
incontrolável lhe invade a alma. Por fim, compreende que
estar armado ali não significava muita coisa. O pai que
havia partido momentos antes breca abruptamente o
luxuoso veículo cerca de 500 metros à frente e abre a
porta do banco do passageiro.
O filho muito assustado corre em sua direção sob apupos
e xingamentos dos estranhos indivíduos que observavam a
cena. À noite daquele mesmo dia pai e filho travam um
ilustrativo diálogo. O filho reclama que o pai foi
austero, e este – depois de proporcionar uma lição
exemplar – paradoxalmente se desculpa. Essa descrição
resumida faz parte de uma cena da quarta temporada do
seriado Ray Donovan – uma espécie de
troubleshooter das celebridades e dos ricaços de Los
Angeles que usa métodos violentos e instrumentos nada
ortodoxos de persuasão - exibido em canais a cabo e pela
Netflix. Embora se trate de uma ficção encerra um
comportamento social contemporâneo preocupante.
Para ser mais preciso, algo muito estranho, para dizer o
mínimo, está em curso na relação entre pais e filhos na
atualidade. Ou seja, os pais estão agora se desculpando
por exercer o seu papel na educação da sua prole.
Explico melhor: há fortes indícios de que muitos pais se
sentem desconfortáveis em chamar a atenção dos seus
filhos quando estes se excedem ou cometem uma falta
grave. Em situações mais extremas, há pais que se
desculpam por não poder acompanhar os seus filhos em
certos eventos ou lhes atender certos desejos e
caprichos.
É evitado a todo o custo – como já presenciei inúmeras
vezes - o uso da palavra “não” na interação diária entre
eles, até mesmo em situações que concretamente a exigem.
É notório que os padrões educacionais – refiro-me
essencialmente aqui à orientação que parte do lar –
sofreram acentuadas mudanças nas últimas décadas. Por
conseguinte, o modelo austero do passado cedeu a um
enfoque e/ou tratamento contemporizador e, às vezes, até
mesmo excessivo. Por isso, é pertinente recuperar as
elucidações exaradas pela doutrina espírita,
considerando a delicadeza do assunto.
Desse modo, será que estabelecer certos limites e/ou
pronunciar a palavra não, quando esta for
necessária, podem ser iniciativas indesejadas nas
relações entre pais e filhos? A lógica nos sugere o
contrário. Afinal de contas, a educação do lar tende a
moldar importantes traços comportamentais e de
personalidade dos filhos. É nessa fonte sagrada que
normalmente bebemos durante uma parte relevante da nossa
formação, e que provavelmente determinará muito do que
haveremos de ser no futuro. Se bem aproveitada,
certamente nos lembraremos por toda a vida de certas
lições recebidas, conselhos formulados, explicações
fornecidas e exemplos dados pelos nossos pais.
Corroborando essa percepção, O Espírito Emmanuel, na
obra Pensamento e Vida (psicografia de Francisco
Cândido Xavier), recorda que “Nasce a criança, trazendo
consigo o patrimônio moral que lhe marca a
individualidade antes do renascimento no plano físico;
no entanto, receberá os reflexos dos pais e dos mestres
que lhe imprimirão à nova chapa cerebral as imagens que,
em muitas ocasiões, lhe influenciarão a existência
inteira”.
Emmanuel pondera igualmente que:
“Tratá-los à conta de enfeites do coração será
induzi-los a funestos enganos, porquanto, em se tornando
ineficientes para a luta redentora, quando se lhes
desenvolve o veículo orgânico facilmente se ajustam ao
reflexo dominante das inteligências aclimatadas na
sombra ou na rebeldia, gravitando para a influência do
pretérito que mais deveríamos evitar e temer.
É assim que toda criança, entregue à nossa guarda, é um
vaso vivo a arrecadar-nos as imagens da experiência
diária, competindo-nos, pois, o dever de traçar-lhe
noções de justiça e trabalho, fraternidade e ordem,
habituando-a, desde cedo, à disciplina e ao exercício do
bem, com a força de nossas demonstrações, sem, contudo,
furtar-lhe o clima de otimismo e esperança. Acolhendo-a,
com amor, cabe-nos recordar que o coração da infância é
urna preciosa a incorporar-nos os reflexos, troféu que
nos retratará no grande futuro, no qual passaremos todos
igualmente a viver, na função de herdeiros das nossas
próprias obras”.
Por sua vez, Allan Kardec, em O Livro dos Espíritos
(questão 208), sintetiza: “... os Espíritos dos pais
têm por missão desenvolver os de seus filhos pela
educação. Constitui-lhes isso uma tarefa.
Tornar-se-ão culpados, se vierem a falir no seu
desempenho” (ênfase minha). Dedicar-se a essa tarefa
com denodo, portanto, constitui uma obrigação
inalienável quando se assume a paternidade.
Desculpar-se por querer lhes fornecer as lições mais
valiosas ou por negar-lhes certos caprichos perigosos
não condiz com tal missão. Querer compensar a ausência
física – muito comum nos dias presentes por várias
razões que não cabem discorrer aqui - por meio da
complacência descabida com os defeitos, manias e
comportamentos inapropriados dos filhos não ajuda os que
abraçam a paternidade, assim como os seus filhos, além
de criar situações penosas e perfeitamente dispensáveis
para todos os envolvidos.