Cinco-marias

por Eugênia Pickina

 
A criança terceirizada: fenômeno do mundo contemporâneo


Certa vez, numa escola em que eu dava uma conferência fui interrompido por uma mulher que me disse: ‘mas veja só, essa escola é péssima. Meu filho tem três anos e eles ainda não ensinaram a usar os talheres para comer’. Veja, ela queria que a escola fizesse o que ela deveria estar fazendo. Limites, paciência, controle, alegria, respeito pelo outro têm que ser ensinados pela família. José Martins Filho, pediatra (trecho da entrevista concedida ao Jornal Extra Classe)

Hoje me acordei pensando na criança terceirizada. Quem repara nela?
Eu, da minha janela, observo o menino piquinininho no fundo dessa casa intitulada berçário, vizinho do meu edifício, ele chorando por conta e risco no tanque de areia, enquanto o adulto de uniforme branco o vigia do alto, mas sem fixar os olhos nos seus olhos, o pensamento longe.
“Não chore, meninozinho!“ – queria gritar.
Mas vem o vento refrescar o dia e com isso outro adulto de uniforme branco leva o menino piquinininho correndo para dentro da casa sem grama, sem árvore, sem jardim. Agora, meninozinho, eu não o vejo mais...
As mudanças no panorama social, as influências do capitalismo, a inserção da mulher no mercado de trabalho são fatos que certamente contribuíram para o afastamento dos pais cada vez mais cedo do lar, e, nas cidades médias e grandes, muitos desses pais encontrando os filhos apenas nos fins de semana – no sábado, há passeio no shopping; no domingo, expedição no supermercado.
Em A Criança Terceirizada, o pediatra José Martins Filho afirma que a sociedade atual, pautada no consumo, incentiva os pais a criarem metas e sonhos de grande crescimento econômico, de conhecimento e de estudos, consequentemente não dispondo de tempo para viver, cuidar e se dedicar aos filhos. E, mais preocupante, o fenômeno da criança terceirizada pode ser observado em todas as classes sociais, no cotidiano de ricos e pobres, que transferem as funções maternas e paternas para outras pessoas.
Sem querer averiguar os motivos dos pais que delegam os cuidados de uma criança a terceiros – creches, avós, babás, professores, tios... –, e sobretudo antes de a criança completar dois anos, à medida que terceirizam os filhos os pais cooperam com o empobrecimento dos vínculos parentais por falta de interação e troca de estímulos, favorecendo um mundo desolador como o contemporâneo, no qual a violência, por exemplo, continua subindo, subindo...
Antes de ter um filho seria maravilhoso se as pessoas refletissem o quanto trazer uma nova vida a este mundo é coisa séria. Porque os pais precisam estruturar vínculos fortes junto às crianças, semeando no dia a dia amor, alegria, paz, respeito, controle, tolerância, os valores que sustentam natureza, sociedade e cidadania... Faz todo sentido então a questão levantada pelo médico José Martins Filho:
“Alerto para um problema que está me angustiando como pediatra, avô e ser humano: Cada vez que percebo a angústia da mãe que precisa sair de casa, todos os dias, em busca de recursos para manter o lar, para ajudar o marido ou até porque não suporta ficar em casa o dia inteiro e acha fundamental estar fora para se sentir útil, fico pensando: será que as pessoas não se dão conta de que o tempo está passando e nunca mais vai voltar?“


Notinha


Na prática, José Martins Filho afirma que a transferência das funções maternas e paternas para outras pessoas gera inúmeras consequências negativas para a criança terceirizada: baixa autoestima, problemas comportamentais, quebra de vínculos afetivos, sentimento de falta de afeto, problemas com autoridades, falta de limites, desvalorização do outro etc.
A proposta do livro A Criança Terceirizada é fomentar a reflexão sobre a maternidade e a paternidade conscientes. Não dá, por exemplo, para pensar em trabalhar tempo integral, continuar na vida de solteiro e ter um filho! Essas coisas são muito difíceis de serem levadas a sério e com competência. Algo não será feito adequadamente.


Cf. Martins Filho, José. A criança terceirizada: os descaminhos das relações familiares no mundo contemporâneo. 6 ed. Campinas, SP: Papirus, 2012.

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita