Existe brinquedo de menina e de menino?
“Deixe os brinquedos serem brinquedos.” (Let Toys
Be Toys*)
Todos sabemos que as crianças imitam o mundo adulto em
suas brincadeiras. De uma maneira lúdica, simplificada,
elas reproduzem os hábitos e as atitudes que as cercam,
como que num experimento para o mundo real.
Como muitas pessoas ainda ignoram o fato de que gênero é
cultural (distinto do sexo, que é biológico), há alguns
dias uma amiga me contou decepcionada que havia dado um
jogo de panelinhas para o filho de aniversário e tinha
sido asperamente criticada pela sogra, avó do menino,
para quem aquilo era “brinquedo de menina”.
Bom. Se a brincadeira reflete o mundo adulto e prepara
as crianças para ele, restringir panelinhas às meninas
continua a replicar na sociedade a ideia de que
cozinhar/cuidar da casa é tarefa de mulher. E como
podemos esperar que os meninos assumam essas funções
quando eles forem adultos se eles passam a infância
inteira assimilando esse modelo cultural rígido
patriarcal?
Infelizmente a maioria das lojas de brinquedos (ainda)
apresenta no Brasil seus produtos em seções de menino e
menina. Na prática, brinquedos relacionados a tarefas
domésticas, como uma máquina de lavar ou um fogão, vêm
acompanhados nas caixas quase sempre de fotos de
meninas. Além disso, os pais que querem escapar à
estereotipagem nos brinquedos esbarram também,
principalmente no caso desses brinquedos, no uso
predominante da cor rosa, uma cor que muitos meninos
rejeitam por associarem às meninas. Ora. Por que quase
não há fogões de brinquedo brancos, vermelhos, verdes? O
fogão da minha cozinha não está pintado de cor de rosa.
E eu e meu marido cozinhamos na nossa casa e de acordo
com nossas preferências de cardápios e hábitos,
dividindo o preparar das refeições, alterando com
respeito os dias na cozinha e para que ambos consigamos
dar conta de outras funções e compromissos.
Quando eu era criança, brincávamos eu, minha irmã e meu
irmão de casinha. Ele, o meu irmão, insistia com a gente
para permanecer na cozinha, cuidando da comida. Cresceu,
casou e continuou a cozinhar, aplicando a si mesmo as
palavras de Mia Couto: “cozinhar não é um serviço,
cozinhar é um modo de amar os outros”.
Minha filha tem sete anos e gosta de brincar com
carrinho, caminhão, trator robusto para carregar o “feno
dos cavalos na fazenda”, imaginando em uma tarde de sol
que é uma policial ativa na segurança da nossa cidade;
outros dias, uma investigadora ocupada em decifrar um
caso de mistério difícil, e outros, uma química
“aperfeiçoadora de flores e plantas”.
Na realidade, quando abandonamos as crenças insensatas,
nutridas pela rigidez tão peculiar à ignorância,
observamos que meninas e meninos simplesmente gostam de
brinquedos variados. Por isso, não faz o menor sentido
impedir brincadeiras e brinquedos de tipos diferentes,
que ajudam no desenvolvimento de capacidades
específicas. Porque não é um mundo polarizado, tomado
por preconceitos, que desejamos que nossas crianças
encontrem…
Notinha
*Let Toys Be Toys (“Deixe os brinquedos serem
brinquedos”) – é uma campanha britânica que luta para
não excluir as crianças de certos tipos de brinquedos ou
brincadeiras, à medida que essa exclusão faz com que
elas percam experiências de formação importantes.
Em 2014, a Lego lançou uma linha de bonecas femininas
cientistas, com uma astrônoma, uma química e uma
paleontóloga.
Xalingo é um exemplo de empresa de brinquedos gaúcha que
vem apostando em cores menos identificadas com um gênero
específico. Seu brinquedo de blocos “Pequeno Engenheiro”
traz um menino e uma menina usando capacetes de obras na
capa. Sua cozinha “para meninos e meninas” teve um
“retorno muito positivo” por parte do consumidor,
declarou a fabricante à Folha de S. Paulo no ano
passado.