Clássicos
do Espiritismo

por Angélica Reis

Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 17)


Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de 1867.


Questões preliminares


A. Há diferença entre um cadáver e um corpo vivo?

Quimicamente falando, não há diferença alguma entre um e outro. Em que diferem, então, o corpo vivo e o cadavérico? Pela teoria dos materialistas, eles não diferem, têm o mesmo peso, tamanho, forma. São os mesmos átomos, as mesmas moléculas, as mesmas propriedades físico-químicas. O que eles não veem é que tal conclusão vale por condenação formal do seu sistema. Porque a verdade é que um ser vivo difere, evidentemente, de um morto. Isso é coisa tão vulgarmente sabida, que não se pode contestar. Ora, a hipótese que ensina não ser a vida senão um conjunto de propriedades químico-atômicas cai pela base e pela cúpula, uma vez que nascimento e morte, alfa e ômega de toda a existência, protestam vitoriosamente contra as conclusões dessa hipótese. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

B. Em face da notória diferença que existe entre um cadáver e um corpo vivo, podemos concluir, com Buffon, que haja no mundo duas espécies de moléculas: orgânicas e inorgânicas, sendo células vivas as primeiras e dotadas de sensibilidade e irritabilidade?

Claro que não. A Química orgânica demonstrou, à saciedade, que os elementos da matéria vivificada são os mesmos que os do mundo mineral, ou aéreo, o que vale por dizer elementarmente oxigênio, hidrogênio, azoto, carbono, ferro, cal etc. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

C. Há na Natureza exemplos de fatos que a matéria, por si só, não poderia operar?

Sim. Flammarion menciona alguns deles. Arranquemos à lagosta uma pata e esta lhe renascerá com todos os seus caracteres. Esmaguemos a cauda de um lagarto, ela lhe renascerá. Seccionemos a minhoca em muitos pedaços e cada qual recuperará o que lhe falte. A flor de coral, destacada de sua matriz, vai, através das ondas, constituir nova árvore. E que pensar da metamorfose dos insetos, essas formas transitórias, nas quais só a força persiste, através das fases de letargia e ressurreição? A falena que adeja, no ar luminoso, não será o mesmo ser há pouco existente na larva ou na lagarta? Será a matéria, só por si, que opera tais coisas? Será que coisas tais não revelam a ação constante da força típica que modela os seres segundo a espécie, e que, sem dúvida, lhes é mais essencial do que as moléculas orgânicas com as suas propriedades químicas? (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)


Texto para leitura


346. Qual o homem culto, o observador de boa fé, que ousará negar seja o nosso organismo engendrado por uma força especial? Qual a diferença de um cadáver para um corpo vivo? Há duas horas que o coração de tal homem deixou de bater; ei-lo estendido no leito funerário, a vida escapou-se-lhe independente de qualquer lesão, sem que houvesse distúrbio orgânico. Seu estado desafia autópsia minuciosa. Quimicamente falando, não há diferença alguma entre este e o corpo que vivia esta manhã. Em que diferem, repito, o corpo vivo e o cadavérico? Pela teoria dos materialistas, eles não diferem, têm o mesmo peso, tamanho, forma. São os mesmos átomos, as mesmas moléculas, as mesmas propriedades físico-químicas. Chegam mesmo a ensinar que essas propriedades estão inviolavelmente ligadas aos átomos. Aí temos, portanto, o mesmo ser! (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

347. O que eles não veem é que tal conclusão vale por condenação formal do seu sistema. Porque a verdade é que um ser vivo difere, evidentemente, de um morto. Isso é coisa tão vulgarmente sabida, que não se pode contestar. Ora, a hipótese que ensina não ser a vida senão um conjunto de propriedades químico-atômicas cai pela base e pela cúpula, uma vez que nascimento e morte, alfa e ômega de toda a existência, protestam vitoriosamente contra as conclusões dessa hipótese. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

348. Chega a ser quase ultrajante para a inteligência humana a obrigação de sustentar que um corpo vivo difere de um morto e que neste já não existe força anímica. Afirmar que a vida é algo é assim como afirmar que há luz em pleno dia. Devemos, porém, ensejar a que os antagonistas de além-Reno venham pôr os pontos nos is. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

349. Preciso se faz que seja a força constitutiva da vida uma força muito especial, visto que, frente a ela, as moléculas corporais se distribuem harmônicas, numa unidade fecunda, ao passo que em sua ausência essas mesmas moléculas se separam, se desconhecem, se combatem e deixam logo cair em total dissolução esse organismo que se faz pó. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

350. Preciso, também, se faz que essa mesma força exista de uma forma particularíssima, pois que, de um lado, não sendo vivos todos os corpos da Natureza e, de outro lado, sendo os corpos vivos compostos com o mesmo material dos inorgânicos, diferem, contudo, dos primeiros, pelas especiais e admiráveis propriedades da vida. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

351. Preciso, ainda, seja a vida uma força soberana, visto não passar o corpo de um turbilhão de elementos transitórios, em mutação constante de todas as suas partes, persistindo ela enquanto que a matéria passa. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

352. Concluir-se-á daí, com Buffon, que haja no mundo duas espécies de moléculas, isto é: orgânicas e inorgânicas? Que as primeiras sejam células vivas, dotadas de sensibilidade e irritabilidade, a passarem de um a outro ser vivo sem se imiscuírem nos corpos inorgânicos, enquanto que as segundas não entram na constituição geral da vida? (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

353. Ora, a Química orgânica demonstrou, à saciedade, que os elementos da matéria vivificada são os mesmos que os do mundo mineral, ou aéreo, o que vale por dizer elementarmente oxigênio, hidrogênio, azoto, carbono, ferro, cal etc. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

354. Dir-se-á, então, com o botânico Dutrochet e com o anatomista Bichat, que a vida seja uma exceção temporária às leis gerais da matéria, uma suspensão acidental das leis físico-químicas, que acabam sempre imolando o ser ao governo da matéria? Mas essa é uma ideia que não vacilamos em proclamar errônea, de vez que a vida é o alvo mais elevado e mais fulgurante da Criação, a perpetuar-se através das espécies, desde os primórdios do mundo. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

355. Em resumo, digam e pensem como entenderem, a vida não deixará de ser uma força, superior às afinidades elementares da matéria. O que caracteriza os seres vivos é a força orgânica que aglutina essas moléculas, segundo a conformação específica dos indivíduos e conforme o seu tipo específico. “As verdadeiras molas de nosso organismo – dizia Buffon – não são estes músculos, artérias e veias, mas forças interiores, que não obedecem de modo algum às leis da grosseira mecânica por nós imaginada e às quais tudo desejaríamos subordinar[i].”  (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

356. Cuvier, mais explícito, o declara, de vez que observara diretamente não passar a matéria de simples “depositária da força, por esta constrangida, de antemão, a marchar no mesmo sentido que ela, bem como que a forma dos corpos lhe é mais essencial que a matéria, visto que esta transmuda, enquanto que aquela se conserva”. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

357. As experiências de Flourens, sobretudo, evidenciaram a mutabilidade da matéria, a contrastar com a permanência da força, que, a bem dizer, é o que tem de essencial o ser. Uma dessas experiências consiste em submeter um animal, durante trinta dias, ao regime da granza, que, sabemo-lo, é uma substância que tinge de vermelho os objetos dela impregnados. No fim de um mês o animal apresenta um esqueleto de cor vermelha. Em se lhe dando, a seguir, o alimento usual, os ossos entram a branquear, começando pelo centro, de vez que a renovação incessante, dos ossos como da carne, opera-se do interior para o exterior. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

358. Outra experiência consiste em descarnar um osso e rodeá-lo de um fio de platina. Pouco a pouco, o anel de platina se recobre de camadas sucessivamente formadas e acaba ficando no interior do osso. Eis que assim se renovam os ossos. A carne e os tecidos moles sofrem uma ação mais rápida. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

359. Com Quatrefages verificamos “duas correntes contrárias a circularem nas profundezas do ser: uma extraindo incessante, molécula por molécula, alguma coisa do organismo, e outra reparando, relativamente, todas as brechas que, por mais extensas, acarretariam a morte”. A força orgânica, que constitui o nosso ser, oculta-se sob a vestimenta variável da carne, mas nós sentimo-la palpitante em seu ardente vigor. Ela nos conforma, dirige, governa. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

360. Atentemos nesses representantes primitivos da escala zoológica, nesses crustáceos protegidos de uma couraça contra as subversões da crosta terrena; detenhamo-nos nesses anelídeos, nesses vermes que, seccionados, continuam a viver. Arranquemos à lagosta uma pata e esta lhe renascerá com todos os seus caracteres. Esmaguemos a cauda de um lagarto, ela lhe renascerá. Seccionemos a minhoca em muitos pedaços e cada qual recuperará o que lhe falte. A flor de coral, destacada de sua matriz, vai, através das ondas, constituir nova árvore. Será a matéria, só por si, que opera tais coisas? Será que coisas tais não revelam a ação constante da força típica que modela os seres segundo a espécie, e que, sem dúvida, lhes é mais essencial do que as moléculas orgânicas com as suas propriedades químicas? (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

361. E que haveremos de concluir da metamorfose dos insetos, essas formas transitórias, nas quais só a força persiste, através das fases de letargia e ressurreição? A falena que adeja, no ar luminoso, não será o mesmo ser há pouco existente na larva ou na lagarta? (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

362. Diante de fatos assim é claro, incontroverso, que uma força, seja qual for (o nome pouco importa), organiza a matéria, segundo a forma típica das espécies, animais vegetais. Contudo, nossos contraditores não vacilam em afirmar que nada existe, absolutamente, e que tudo se pode explicar com as propriedades químicas das moléculas. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

363. Pretende Moleschott que “o conjunto das circunstâncias, esse estado mediante o qual a afinidade material engendra as mesmas formas persistentes, recebeu de Henle, a exemplo de Scheiling, o nome de força típica. Esta força típica é um pequeno passo precedente à força vital, visto comportar tantos estados de matéria quantos sejam os órgãos e as espécies. Mas, a força padronizadora de plantas e animais é uma ideia tão oca, tão pueril quanto à da força vital a que se radica”. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

364. O Sr. Wirchow chama-lhe pura superstição, incapaz de negar parentesco com a crença demoníaca e com a pesquisa da pedra filosofal. Quanto ao autor do Estudo de Filosofia Positiva, esse fecha os olhos e clama: – “de real só há corpos”. Bois-Reymond, a seu turno, declara, em uma obra sobre a eletricidade animal, que a pretensa força vital não passa de quimera. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

365. Se os nossos antagonistas se obstinam em sustentar que os organismos estão submetidos a forças intrínsecas, não têm mais do que afirmar o seguinte: – “a molécula material, entrando no turbilhão da vida, recebe por algum tempo o dom de novas forças e torna a perdê-las quando o turbilhão da vida, agastado, a rejeite definitivamente nas plagas da Natureza inanimada”. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

366. É um raciocínio falso, o desses senhores, de vez que basta à molécula a só entrada no turbilhão da vida para que se comporte de conformidade com o tipo individual que momentaneamente a retém. Para conservar o cepticismo, são obrigados, qual já o vimos, a fazer vista grossa à diferença que distingue o corpo vivo do cadavérico. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

367. Não se pode haver mais por duvidosa, na opinião de Du Bois-Reymond, a questão de saber “se a diferença – única cuja possibilidade admitimos – entre os fenômenos da Natureza viva e morta, existe realmente. Uma diferença dessa espécie não existe. Nos organismos, forças novas não se agregam às moléculas materiais, nem força alguma que não esteja em atividade fora dos organismos. Portanto, não há forças que se possam chamar vitais. A separação entre supostas naturezas, orgânica e inorgânica, é absolutamente arbitrária. Os que teimam em mantê-la, os que pregam a heresia da força vital, seja com que rótulo for, fiquem certos de haver jamais atingido as lindes do próprio raciocínio”. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

368. Note-se, de passagem, esta firmeza e mais este leve tom de arrogância com que se referem aos que divergem das suas teorias. Veja-se como emitem as mais contestáveis proposições. “As propriedades do azoto, do carbono, do hidrogênio, do oxigênio, do enxofre, do fósforo – afirmam eles – existem de toda a eternidade. Provem-nos o contrário... Calam-se? É que não têm razão? E com isso, está ganha a partida. As propriedades da matéria não podem mudar, quando entra na composição de vegetais e animais. Logo, é evidente que a hipótese de uma força peculiar à vida é absolutamente quimérica!” (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)


 

[i]   Buffon, que nunca foi mecânico, enganou-se neste ponto, pois hoje sabemos que a Mecânica, tanto como a Química, representa um grande papel na construção do corpo. Esse erro, porém, não impede que as palavras do grande naturalista exprimam a verdade no condizente à preponderância da Força.

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita