Deus na Natureza
Camille
Flammarion
(Parte 22)
Continuamos o
estudo metódico
e sequencial do
livro Deus na
Natureza,
de autoria de
Camille
Flammarion,
escrito na
segunda metade
do século 19, no
ano de
1867.
Questões preliminares
A. Seres vivos podem nascer espontaneamente de elementos
químicos como o carbono ou o hidrogênio?
Segundo Flammarion, houve sim, ao longo dos séculos,
quem acreditasse nisso e mesmo em sua época, em pleno
século 19, existia uma escola positiva, empenhada em
demonstrar experimentalmente a veracidade da hipótese.
Flammarion pensava de modo diverso.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
B. Especulações a respeito da origem das espécies, sem
nenhuma base científica, foram comuns entre os
filósofos?
Sim. Comuns e tolas. Segundo um deles, os insetos nascem
das folhas verdes, assim como os piolhos da carne e os
peixes do lodo. A lagarta – diz o mesmo filósofo – sai
de uma gota de orvalho, caída nos primeiros dias da
Primavera; condensada pelo Sol, se reduz ao tamanho de
um grão de milho. Assim elaborada, essa gota,
estendendo-se, faz-se pequeno verme que, dentro de três
dias, transforma-se em lagarta.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
C. Que diz Flammarion acerca da velha questão aventada
por Pitágoras: qual nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?
Um amigo de Plutarco disse que era de presumir que
minúsculos elementos são os geradores de grandes corpos;
por isso, é bem provável que o ovo tenha precedido a
galinha, mesmo porque, tanto quanto podemos julgar pelos
sentidos, ele é o mais simples e ela o mais complexo. Em
regra, o princípio é anterior ao que dele procede. Dizem
que as veias e as artérias são as primeiras partes que
se formam no animal. É possível, também, que o ovo tenha
existido antes do animal, pela razão de que o continente
precede o conteúdo. As artes começam por esboços
grosseiros e informes, que se aperfeiçoam parcialmente,
na forma que mais lhes convém. Dizia o escultor
Policleto não haver nada mais difícil na sua arte do que
dar à sua obra o último toque de perfeição. É de crer,
assim, que a Natureza, ao imprimir à matéria o movimento
inicial, tendo-a encontrado menos dócil, só haja
produzido massas informes, sem linhas definidas, quais
são os ovos, e que o animal não viesse a existir senão
depois do aperfeiçoamento dos primeiros esboços.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
Texto para leitura
428. A origem dos seres – Referindo-se ao tema,
assim se exprimia o corifeu do velho materialismo:
“Aos primeiros calores da Primavera os voláteis de
qualquer espécie alaram-se no espaço, libertos do ovo
natal. Nos dias estivais, podemos surpreender a cigarra,
rompendo o frágil casulo, partir, cindir os ares ávida
de luz e de alimento. Não de outro modo a Terra produziu
a raça humana; a onda e o fogo, encerrados no solo,
fermentaram e fizeram crescer, nos lugares propícios,
germens fecundados, cujas raízes vivas mergulhavam na
terra. Chegado o tempo da maturidade e rompido o
invólucro que os enclausurava, cada embrião deixou o
âmago úmido da terra e apoderou-se do ar e da luz. Para
eles se dirigem os poros sinuosos da terra e, reunidos
em suas veias entreabertas, escorrem ondas de leite.
Assim, vemos ainda, depois da gestação, as mães se
repletarem de um leite saboroso, porque os alimentos,
convertidos em suco nutritivo, lhes intumesce o seio. A
terra, portanto, alimentou os seus primeiros filhos, que
tiveram no calor as primeiras vestes, e, por berço, a
relva abundante e macia.
“Assim como
a tenra avezinha, ao nascer, se reveste de plumas ou de
sedosa lanugem, assim a terra jovem se recobre de macia
ervagem e flébeis arbustos. E não tarda, também, a
conceber as espécies animadas, mediante combinações
inúmeras e variadas: a terra incuba os seus habitantes,
que não desceram dos céus nem emergiram dos abismos
tenebrosos. É pois, a justo título de reconhecimento,
que se lhe dá o nome de mãe. Tudo o que respira foi
concebido em seu ventre; e se ainda hoje vemos seres
vivos lhe brotarem do limo, quando, molhado da chuva,
ele fermenta à luz solar, porque nos admirarmos
maiormente que seres mais numerosos e mais robustos lhe
saíssem dos flancos, quando ela, a terra e a essência
etérica, ainda se incendeiam dos ardores da juventude?”[i]
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
429.
Expressando-se assim, ele é bem o intérprete fiel do seu
mestre, Epicuro, cujo sistema físico aqui resumimos em
poucas palavras[ii]:
- À força de percorrerem céleres e ao acaso a
imensidade, os átomos se reuniram e se combinaram; daí,
massas ainda informes e inorgânicas, mas já apreciáveis
por sua composição. Com o correr dos tempos, essas
massas, diferentes em peso, foram arrastadas a direções
diferentes, ou com velocidades diferentes, umas caindo e
subindo outras.
Uma vez existente a água, em virtude da sua fluidez,
encaminhou-se para os lugares mais baixos, para as
cavidades mais próprias a contê-la. Outras vezes, houve
ela mesma de preparar o seu leito. As pedras, os metais,
os minerais em geral, nasceram no âmago do globo,
segundo a espécie de átomos ou de germes nele
encerrados, quando a atmosfera se destacou do céu. Daí,
essas colinas, montanhas, acidentes numerosos, que
diversificam a superfície do solo: montes a prumo, ao
lado de vales profundos, de extensos altiplanos cobertos
de vegetação multifária, que lhe são indumenta garrida,
quanto para nós a seda, as penas, a lã, etc. Resta
explicar o nascimento dos animais. É verossímil que,
contendo a Terra germes fresquíssimos e adequados à
geração, produzisse em sua crosta uma espécie de bolhas
cavas, à maneira de úteros, e que essas bolhas, em
atingindo a maturidade, rebentassem e dessem à luz os
incipientes animaizinhos. Intumesceu-se, então, a Terra
de humores semelhantes e os recém-nascidos viveram a
expensas deste alimento.
Os homens, diz Epicuro, não nasceram de outro modo.
Pequenas vesículas à maneira de úteros, ligados à terra
pelas raízes, avolumaram-se batidos pelos raios ardentes
do Sol, produziram tenros rebentos e mantiveram sua vida
a expensas do líquido lácteo que a Natureza lhes
preparara. Os homens primários são o talo da espécie
humana, que, depois, se propagou por vias usuais, até
hoje.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
430. Eis,
creio, uma hipótese bem simplista. Ela explica,
simultaneamente, como o homem contemporâneo é menor e
menos robusto que o primitivo. A espécie humana nascia,
então, espontaneamente, do solo mesmo da terra e hoje os
homens procedem uns dos outros[iii].
O pensamento manifesta-se por entrosagem dos movimentos,
que, desenvolvidos primariamente numa substância
desprovida de racionalidade, acabam reproduzindo-se
artificial e não espontânea e cegamente. Os movimentos
atômicos foram, indubitavelmente, obra do acaso, sem
contingência de racionalidade e, nada obstante, desde os
primórdios do mundo, existiam animais que se diriam
protótipos raciais.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
431. Uma vez
formados esses animais pelos átomos errantes em todas as
direções, a engendrarem movimentos de aproximação, de
repulsão, de exclusão ou de junção, alguns, apenas,
vinham adaptar-se e conjugar-se aos átomos do animal
protótipo, isto é, os que com estes se identificavam em
natureza. Os outros, ao contrário, eram repelidos, por
dissímeis dos constitutivos do animal. Tudo se explica,
portanto, exceto a maneira como, nos primórdios do
mundo, se formaram os protótipos. Isto é o que Epicuro
não explica, ao menos com raciocínios claros. Pois é sob
os auspícios desta filosofia, que ousam colocar-se os
senhores materialistas do século XIX[iv].
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
432. Graças
à capciosa linguagem de Lucrécio e à doutrina
simultaneamente estoica e displicente de Epicuro, essa
gênese simplista conta sempre muitos partidários. E no
entanto, apesar de tudo, nada existe de menos
científico. Reparai, pela manhã, num bando de insetos
que voam de um torrão de argila esfarelado! o barão de
Munchausen põe a mão num montículo de terra, bem no
centro do campo arroteado, e logo uma ninhada de melros
brancos, seguida de aves outras, põe-se a correr pela
jeira em fora. Até hoje só sabemos de alguém que haja
testemunhado um tal nascimento, de um ser nosso irmão: é
Cyrano de Bergerac, quando, de sua viagem ao Sol,
realizada aos 30 de Fevereiro de 1649, no momento de lá
aportar, houve de parar para tomar fôlego em um dos
planetoides que gravitam em torno do astro-rei[v].
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
433. Notemos, todavia, que o materialismo de Lucrécio
não é tão grosseiro qual o interpretam. A alma do poeta
diviniza as forças da Natureza. D’Holbach, ao contrário,
não tem alma; desdenha a força, não vê senão a matéria.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
434. Podem seres vivos nascer espontaneamente de
elementos químicos como o hidrogênio, o carbono, o
amoníaco, a lama, a podridão? Houve quem o acreditasse
por muito tempo, e ainda hoje existe uma escola
positiva, empenhada em demonstrar experimentalmente a
veracidade da hipótese.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
435. Ouçamos alguns corifeus, antigos e modernos.
Colhamo-los ao acaso. Van Helmont diz: se espremermos
uma camisa suja (sic) no orifício de um vaso que
contenha grãos de trigo, este se transformará em ratos
adultos ao fim de 21 dias, mais ou menos. Perfurai um
buraco num tijolo, metei nele manjericão pilado e
justaponde ao tijolo outro tijolo, de maneira a vedar
completamente o buraco, exponde ao Sol os dois tijolos
e, no fim de alguns dias, o cheiro do manjericão,
operando como fermento, transformará a erva em legítimos
escorpiões. O mesmo alquimista pretendia que a água da
fonte mais pura, lançada em vaso impregnado do odor de
um fermento, corrompe-se e engendra vermes.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
436. Deem-me farinha e tutano de carneiro – dizia
Needham no seu Novas Descobertas Microscópicas –
e eu vos pagarei com enguias. Voltaire, a sorrir,
respondia-lhe que também esperava ver um dia a
fabricação de homens por esse mesmo processo. Sachs
ensina que os escorpiões são produto da decomposição da
lagosta. Na matéria dos corpos mortos e decompostos,
dizia o próprio Buffon, as moléculas orgânicas, sempre
ativas, trabalham para revolver a matéria putrecida e
formam uma chusma de corpúsculos organizados, dos quais
alguns, como as minhocas, os cogumelos, etc., são assaz
volumosos. Todos estes corpos só vivem por geração
espontânea.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
437. Presentemente, o Dr. Cohn, de Breslau, pretende que
a morte da mosca comum, no Outono, é ocasionada pela
formação de cogumelos no corpo do inseto. Há em tudo
isso, sem dúvida, como em tantas outras coisas, que
traçar um limite a essas faculdades dos elementos
organizados; e nós nos disporíamos melhor a crer na
formação dos cogumelos microscópicos sobre o órgão
atrofiado da mosca, tanto quanto do fúcus num pulmão
enfermo, ou de mofo num tronco de madeira, do que
acreditar com as boas velhas fiandeiras do cânhamo em
nossa infância, quando nos diziam que a crina arrancada
à cauda de cavalo branco e atirada a um regato se
transformava, dentro de três dias, numa enguia branca.
Este é também um absurdo bem cotado em algumas regiões
do Este da França. Lembra-nos de o haver tentado, ao
tempo de Luís Filipe, mas, como só contávamos seis anos
de idade, também é admissível que a nossa cândida
ignorância não nos permitisse um legítimo triunfo.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
438. Por não ter levado a termo final suas observações,
Arístoto manteve-se na erronia de que os insetos nascem
das folhas verdes, assim como os piolhos da carne e os
peixes do lodo. Muito curioso ver até que ponto Plínio,
traduzindo Arístoto, chega à descrição desse nascimento
imaginário. “A lagarta – diz – sai de uma gota de
orvalho, caída nos primeiros dias da Primavera e que,
condensada pelo Sol, se reduz ao tamanho de um grão de
milho. Assim elaborada, essa gota, estendendo-se, faz-se
pequeno verme (ros porrigitur vermiculus parvua)
que, dentro de três dias, transforma-se em lagarta.”
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
439. Nada, porém, ultrapassa a argumentação de Plutarco
nas Symposiacas, ou Colóquios à Mesa, no intuito de
resolver a velha questão aventada por Pitágoras, ou
seja: a prioridade do ovo ou da galinha. Esse discrime
dá uma ideia das opiniões suscitadas na antiguidade e
agora revividas, sem contudo levar em conta o ultraje
irreparável dos anos.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
440. Plutarco conta-nos, pois, que, tão logo propôs a
questão, seu amigo Sila o advertiu de que, por uma causa
tão simples, qual uma alavanca, haveriam de acionar a
pesada máquina da conformação do mundo e, por isso,
desistia de o acompanhar. Um amigo disse, irônico, que a
questão era ociosa e Fírmus, tomando a palavra,
exclamou: - Dai-me os átomos de Epicuro, visto que, se
importa presumir que minúsculos elementos são os
geradores de grandes corpos, é bem provável que o ovo
tenha precedido a galinha, mesmo porque, tanto quando
podemos julgar pelos sentidos, ele é o mais simples e
ela o mais complexo.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
441. Em regra, o princípio é anterior ao que dele
procede. Dizem que as veias e as artérias são as
primeiras partes que se formam no animal. É possível,
também, que o ovo tenha existido antes do animal, pela
razão de que o continente precede o conteúdo. As artes
começam por esboços grosseiros e informes, que se
aperfeiçoam parcialmente, na forma que mais lhes convém.
Dizia o escultor Policleto não haver nada mais difícil
na sua arte do que dar à sua obra o último toque de
perfeição. É de crer, assim, que a Natureza, ao imprimir
à matéria o movimento inicial, tendo-a encontrado menos
dócil, só haja produzido massas informes, sem linhas
definidas, quais são os ovos, e que o animal não viesse
a existir senão depois do aperfeiçoamento dos primeiros
esboços.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
[i]
Lucrèce – De Natura Rerum, parte 5ª,
Edição Pongerville.
[ii]
Resumo de A. Grandsagne, segundo os trabalhos de
Gassend acerca das descobertas de Herculanum.
[iii]
A origem do homem e dos animais muito preocupou
os antepassados. Plutarco conta que alguns
filósofos ensinavam que tudo nascia do seio da
terra umedecida, cuja superfície enxugada pelo
calor atmosférico formara uma crosta, que,
rachando-se afinal, franqueava passagem aos
germes. Segundo Diodoro da Sicília e Cêlius
Rhodiginus, assim pensavam os egípcios. Esta
velha nação pretendia ser a mais antiga do mundo
e presumia provar com os ratos e rãs, que diziam
ver sair do solo da Tebaída quando o Nilo
baixava, e que à primeira vista se lhes
afiguravam seres semi-organizados. Ovídio assim
descreve o fenômeno: – Logo que o Nilo de sete
bocas abandona os campos fertilizados com a
inundação e volta a encerrar-se no seu leito
normal, o lodo depositado e dissecado pelo astro
do dia produz numerosos animais, que o lavrador
vai encontrando em cada sulco. São seres
incompletos, que começam o desabrochar,
privados, em sua maioria, de vários órgãos
vitais e tendo uma parte do corpo animada e
outra formada de grosseira argila. Assim, dizia
ele, saíram os homens da própria terra. A
opinião mais abaixo exposta, (Parte 4ª) de
provir dos peixes o gênero humano, é hipótese
das mais antigas. Plutarco e Eusébio nos
transmitiram, a respeito, o pensamento de
Anaximandro.
[iv]
Ver particularmente La Libre Pensée e o
seu poema De Nature Rerum.
[v]
Esta aventura merece ser oferecida aos nossos
adversários. Cyrano encontra um homenzinho que
lhe fala mais ou menos nestes termos: “Reparai,
atento, neste solo que pisamos! Não há muito,
era ele uma informe e confusa massa, um caos de
matéria indefinível, uma pasta negra e viscosa,
da qual o Sol se expulgara. Ora, depois que,
pelo vigor dos seus raios, ele misturou e
condensou essas numerosas nuvens de átomos;
depois, digo, que mediante uma longa e poderosa
cocção separou, nesta bola, os corpos mais
díspares e reuniu os mais símeis, a massa
superaquecida transpirou de tal modo que
desencadeou um dilúvio de mais de quarenta dias.
“Da
mistura dessas torrentes humorais formou-se o
mar, como o atesta o sal nele contido, que deve
ser um amálgama de suor, de vez que todo o suor
é salgado. Retiradas as águas, ficou ao solo uma
borra graxenta e fecunda, na qual, incidindo os
raios solares, formou-se uma como ampola que,
devido ao frio, deixou de produzir os germes
latentes. Ela houve de receber, contudo, uma
nova coação, que, retificando-a mediante uma
mistura mais perfeita, engendrou a germinação.
Mas, o Sol, ainda dessa vez, lhe recusou o
crescimento e foi-lhe preciso uma terceira
digestão.
“Uma vez aquecida fortemente, de feição a vencer
o frio ambiente, a ampola rebentou e pariu um
homem que retém no fígado – sede da alma
vegetativa e região de incidência da primeira
cocção – a faculdade do crescimento. No coração,
sede da atividade e local da segunda cocção, a
inteligência e o raciocínio.”
Assim terminou – prossegue Cyrano – o seu
discurso, mas, depois de uma confidência sobre
segredos mais íntimos, dos quais retenho uma
parte e de outra não me lembro, disse-me ele que
ainda três semanas antes, num monte de terra
emprenhado pelo Sol, tinha ele mesmo nascido.
“Veja este tumor.” E mostrou-me sobre um
montículo algo de intumescido e semelhante a uma
pupila. “É um nascituro, ou, por melhor dizer,
uma matriz que engendra, há nove meses, um
conterrâneo, e eu aqui estou para lhe servir de
parteira.”
Nisso, calou-se, ao notar que o terreno em torno
estremecia, o que o fez julgar que era chegada a
hora do parto.