Deus na Natureza
Camille
Flammarion
(Parte 23)
Continuamos o
estudo metódico
e sequencial do
livro Deus na
Natureza,
de autoria de Camille
Flammarion,
escrito na
segunda metade
do século 19, no
ano de
1867.
Questões preliminares
A. A ideia de que o ovo, e não a galinha, é que surgiu
primeiro prevaleceu ou não?
Segundo Flammarion, a prioridade do ovo parecia bem
estabelecida quando um tal Senésio se intrometeu a
contraditar: “É natural – diz ele – que o perfeito
anteceda ao imperfeito, o completo ao incompleto e o
todo à parte. Insensato é supor que a existência de uma
parte preceda à do seu todo. Assim é que ninguém diz: –
o homem do germe, a galinha do ovo, mas o ovo da
galinha, o germe do homem, por isso que aqueles são
posteriores a estes; devem-lhes o nascimento e pagam,
posteriormente, sua dívida à Natureza, pela geração”. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
B. Que argumentos apresentou Senésio para contestar o
que é, aparentemente, tão óbvio?
Foram vários os argumentos. Segundo ele, perguntar como
poderia haver galinhas antes que houvesse ovos formados
equivale a perguntar como existiram homens e mulheres,
antes dos órgãos destinados à sua reprodução. Eis o
núcleo de sua argumentação: “Acrescento eu que o germe,
a certos respeitos, é um princípio; ao passo que o ovo
não tem essa propriedade, visto não ser o primeiro a
existir. E tão pouco é um todo, pois não possui toda a
perfeição. Eis por que não dizemos que o animal não
tivesse princípio, mas que tem um princípio de sua
produção, que imprime à matéria a sua primeira
transformação e lhe comunica uma faculdade generativa. O
ovo, ao invés, é uma superfectação, que, qual o leite e
o sangue, sobrevém ao animal depois que ele faz a cocção
dos alimentos. Nunca se viu ovo saído do lodo, pois só
se forma no animal. [...] Dessarte, podemos crer que a
primeira produção vem da terra, consequente à
propriedade que tem ela, a terra, de gerar por si mesma,
sem necessidade de órgãos e vasos que a Natureza
imaginou mais tarde, a fim de prover a fraqueza dos
seres geradores”.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
C. É verdade que a teoria da geração espontânea foi
compartilhada, ao longo dos séculos, pelos diferentes
estudiosos que se debruçaram sobre a origem da vida?
Sim. Mas, segundo Milne-Edwards, na época da Renascença
houve uma grande reviravolta nos espíritos. Foi quando,
no século 17, se constituiu em Florença uma sociedade de
físicos, de naturalistas e médicos, com o fim de
solucionar a questão por meios experimentais. Essa
agremiação denominou-se del cimente, isto é – da
experiência. Um de seus membros, Redi, quis submeter a
investigações positivas a teoria da geração espontânea,
então bastante difundida. Ele quis saber se os seres
novos eram engendrados sem progenitura de corpos vivos,
ou se eram produto de organização espontânea da matéria
morta. A partir daí, portanto, o entendimento quanto à
ideia da geração espontânea tomou outro rumo.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
Texto para leitura
442. Ainda tratando da questão proposta por Pitágoras –
quem surgiu primeiro: o ovo ou a galinha –, diz
Flammarion que a prioridade do ovo parecia bem
estabelecida quando um tal Senésio se intrometeu a
contraditar: “É natural – diz ele – que o perfeito
anteceda ao imperfeito, o completo ao incompleto e o
todo à parte. Insensato é supor que a existência de uma
parte preceda à do seu todo. Assim é que ninguém diz: –
o homem do germe, a galinha do ovo, mas o ovo da
galinha, o germe do homem, por isso que aqueles são
posteriores a estes; devem-lhes o nascimento e pagam,
posteriormente, sua dívida à Natureza, pela geração. Até
então, não têm o que convém à sua natureza e que lhes dá
um desejo e um pendor de produzir um ser semelhante ao
que os originou. Eis por que também se define o germe
uma produção tendente a reproduzir-se. Ora, ninguém
deseja o que não existe, ou jamais tenha existido. Ao
demais, vemos que os ovos têm uma substância cuja
natureza e composição são quase as mesmas do animal e
que só lhes falta os mesmos vasos e órgãos. Daí, jamais
se haver dito, a qualquer tempo e em parte alguma, que
um ovo, seja qual for, tenha saído da terra. Os próprios
poetas inculcam o que originou os Tindaridas como
havendo caídos do céu. Hoje, a terra melhor produz
animais perfeitos, como sejam os ratos, no Egito, e as
serpentes, rãs, cigarras, noutras regiões. Um princípio
exterior fá-la mais apta para essa produção. Na Sicília,
durante a guerra dos escravos, que derramou tanto
sangue, a grande quantidade de corpos insepultos,
putrefazendo-se à flor do solo, produziu um número
prodigioso de gafanhotos, que, espalhando-se por toda a
ilha, devoraram os trigais. Esses insetos nascem da
terra e de terra se nutrem. A fartura do alimento lhes
dá a faculdade de produzir e, uma vez atraídos pelo gozo
de se acasalarem, eles produzem, conforme a sua
natureza, ovos ou animais vivos. Isso prova, claramente,
que os animais, a princípio nascidos da terra, tiveram
depois, no seu coito, uma outra via de geração”.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
443. A argumentação de Senésio prossegue: “Eis por que
perguntar como poderia haver galinhas antes que houvesse
ovos formados equivale a perguntar como existiram homens
e mulheres, antes dos órgãos destinados à sua
reprodução. Eles são o resultado de certas cocções que
alteram a natureza dos alimentos, não sendo possível
que, antes de nascido o animal, algo nele exista, capaz
de justificar uma superabundância de nutrição.
Acrescento eu que o germe, a certos respeitos, é um
princípio; ao passo que o ovo não tem essa propriedade,
visto não ser o primeiro a existir. E, tão pouco é um
todo, pois não possui toda a perfeição. Eis por que não
dizemos que o animal não tivesse princípio, mas que tem
um princípio de sua produção, que imprime à matéria a
sua primeira transformação e lhe comunica uma faculdade
generativa. O ovo, ao invés, é uma superfectação, que,
qual o leite e o sangue, sobrevém ao animal depois que
ele faz a cocção dos alimentos. Nunca se viu ovo saído
do lodo, pois só se forma no animal. Entretanto, no lodo
nasce uma infinidade de animais. De parte outros
exemplos, considere-se essa quantidade de enguias
apanhadas todos os dias e entre as quais nenhuma
apresentará um germe ou um ovo. Esgote-se um poço,
retire-se-lhe o lodo, e tanto que o encham novamente
d'água, lá se engendrarão de novo enguias. Portanto,
tudo o que depende de outro elemento para que possa
existir, deve ser posterior a esse elemento e, ao
contrário, tudo o que existe sem dependência de outrem,
tem prioridade de geração, pois é disto que se trata.
Dessarte, podemos crer que a primeira produção vem da
terra, consequente à propriedade que tem ela, a terra,
de gerar por si mesma, sem necessidade de órgãos e vasos
que a Natureza imaginou mais tarde, a fim de prover a
fraqueza dos seres geradores”.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
444. Estes raciocínios, que hoje nos causam pasmo, não
são exclusivos de Plutarco. Todos os autores antigos são
concordes neste ponto, e não raro encontramos os que
levam a sua ousadia a representar Minerva batendo o pé
para extrair do solo parelhas de cavalos e rebanhos. O
relato de Verguio nas Geórgicas, a respeito de Aristeu,
não é fantasia poética, é expressão geral da crença de
que as abelhas nasciam da carne putrefata. O pastor
Aristeu perdera as suas queridas abelhas, invoca sua
divina mãe e consegue criar novas colmeias, imolando
novilhos:
Hic verum (subitum ac dictum mirabile monstrum)
Auspícunt liquefacta boum per viscera totó
Stridere apes utero, etc.[i]
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
445. Esta velha pendência das gerações equívocas foi há
pouco resumida por Milne-Edwards sob aspecto assaz
interessante. Depois de mostrar que no reino mineral os
corpos se formam por simples aderência molecular, diz
ele: “Todos sabem[ii]
que, quando se trata da formação de uma árvore, de um
cavalo, a matéria que constitui essa árvore, esse
cavalo, seria impotente para integrar esse vegetal, esse
animal, desde que não fosse atuada por um corpo já
vivente – um animal da espécie do que vai nascer, ou um
vegetal da mesma natureza. Assim, na árvore como no
cavalo, esta propriedade particular, a que chamamos
vida, transmite-se, evidentemente. O novo ser é
engendrado por um parente, que produz um ser semelhante.
Há, portanto, uma espécie de sucessão, de transmissão de
força vital, ininterrupta, entre os indivíduos, que
formam, no espaço e no tempo, uma cadeia de que se
compõe cada espécie. Eis, por conseguinte, uma diferença
fundamental, essencial, entre os corpos brutos e os
corpos vivos. O que dizemos da árvore e do cavalo é
aplicável a todos os vegetais e animais conhecidos.
Todavia, em dadas circunstâncias, essa espécie de
filiação não é fácil de verificar e tem escapado a
observadores menos atentos e até, por vezes, aos mais
hábeis. Assim, quando o cadáver de qualquer animal é
entregue à influência atmosférica do ar, da umidade,
numa temperatura conveniente, – no Estio por exemplo –
esse cadáver sofre uma alteração particular, a que
chamamos putrefação. Em tal caso, vemos manifestarem-se
no âmago dessa substância corpos vermiformes, gozando de
todas as propriedades peculiares aos seres animados e,
portanto, animais. Milhões de seres vivos nascem desse
cadáver, ao passo que, enquanto vivo o animal, seu corpo
nunca apresentou algo de análogo”.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
446. A narrativa prossegue: “À primeira vista pelo
menos, o que parece interromper-se é a filiação
geradora. É comum ver-se nos campos poças d’água,
formadas pela chuva, logo se coalharem de insetos, de
alguns crustáceos. Outras vezes vemos, também, na
vizinhança de sítios pantanosos, povoar-se o solo de
pequenos répteis. Na maioria destes casos é difícil, à
primeira vista, explicar por via de geração normal o
surgimento desses novos seres. Tão grandes se afiguraram
essas dificuldades aos naturalistas de antanho, que
houveram de recorrer a uma hipótese particular para
explicar a origem desses animais. Assim, julgaram
indispensável admitir que a Natureza não segue o mesmo
processo, quando se trata de animais superiores, quais
os que emprega na constituição de espécies inferiores,
como os insetos, morcegos, ratos e mesmo alguns peixes.
Entre os filósofos antigos o papel da geração espontânea
era considerado importantíssimo. Os naturalistas e
filósofos da Idade Média seguiram de olhos fechados os
seus predecessores, e daí resultou que, durante catorze
séculos, uma tal opinião imperou inconteste nas escolas.
Admitia-se, como coisa bem comprovada, que os animais
nasciam de duas formas: ora, à maneira dos corpos
brutos, ora por transmissão da força vital, que sabemos
existente nos animais que se engendram sucessivamente,
devendo aos progenitores a existência, a forma, o tipo”.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
447. Concluindo, diz Milne-Edwards que na época da
Renascença houve uma grande reviravolta nos espíritos:
“No século 17 constituiu-se em Florença uma sociedade de
físicos, de naturalistas e médicos, com o fim de
solucionar algumas questões por meios experimentais.
Essa agremiação denominou-se del cimente, isto é
– da experiência. Um de seus membros, Redi, quis
submeter a investigações positivas a teoria assaz
generalizada da geração espontânea. Quis saber se os
seres novos eram engendrados sem progenitura de corpos
vivos, ou se eram produto de organização espontânea da
matéria morta; verificar, em suma, se a hipótese dos
antigos tinha visos de verdade. Tentou, então, a
produção desses corpos vermiformes vulgarmente chamados
minhoca, que, de modo algum, pertencem à classe dos
vermes e são larvas de insetos. Sabe-se que, nas
matérias animais em putrefação, essas larvas logo se
revelam à temperatura mais elevada, e isso foi o que
observou o naturalista florentino. Notou que algumas
moscas eram atraídas de longe pelo cheiro da carne
corrompida, adejavam-lhe em torno, nela pousavam amiúde
e, contudo, não pareciam alimentar-se com essa matéria.
Conjeturou, então, que os vermes havidos como espontânea
e exclusivamente formados pela matéria poderiam ser a
prole das ditas moscas. E notou, ainda mais, que esses
presumidos vermes, desenvolvendo, transformavam-se em
moscas. São pois, na verdade, filhotes de mosca. Essa
verdade não podia satisfazer ao espírito do naturalista.
Colocou, então, a carniça em vasos diferentes, uns
abertos e outros cobertos de papel crivado de orifícios
impenetráveis às moscas, mas arejáveis. Assim viu que as
moscas acorriam procurando insinuar o ventre nos
orifícios do papel e que, neste caso, não se produziu um
só corpo vermiforme. Noutra experiência, utilizou um
pano com alguns buraquinhos acessíveis à operação das
moscas e viu desenvolver-se uma certa quantidade de
óvulos na carne apodrecida”.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
448. A presença de seres vivos no interior de um corpo
ou de uma fruta, tanto quanto nas regiões profundas do
cadáver animal, era igualmente atribuída à geração
espontânea. Supunha-se que matérias orgânicas em
putrefação nos intestinos eram a origem dos vermes. As
observações de Vallisniéri e outros fisiologistas da
época, com frutos e galhos, desmascararam essa crença.
Reconheceu-se que todos esses parasitas não passavam de
óvulos depositados por insetos. O mesmo se verificou com
os infusórios, animálculos que parece formarem-se de
elementos em dissolução n'água. Certa feita, Leuwenhoeck
examinou ao microscópio a água da chuva caída na sua
janela e exposta ao ar por algum tempo: a princípio, a
água lhe pareceu pura, mas examinando-a ao fim de alguns
dias, notou incalculável quantidade de pequeninos seres,
de uma tenuidade extrema, a moverem-se vivaces e com as
características de verdadeiros animais. Tal descoberta
teve grande repercussão e foi confirmada por outros
observadores. Leuwenhoeck constatou que todas as vezes
que expunha ao ar um pouco d'água contendo feno, papel e
matérias orgânicas quaisquer, surgia um turbilhão de
pequeníssimos seres de animalidade bem caracterizada.
Para explicar essa nova população, importava coligir que
esses animálculos, provindos de seres preexistentes,
eram carreados pelo ar atmosférico e depositados em
germe, a menos que admitissem a hipótese dos antigos, da
geração espontânea. A primeira teoria ressaltou, em
geral, das observações mais completas e rigorosas”.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
[i] Ela
diz: O pastor vai então em seus grandes
rebanhos, quatro touros viris imolar
prestamente; e outras tantas vitelas, soberbas,
que a relva, mansamente, no campo esmaltado,
pastavam. E tão logo no céu reponta a luz da
aurora, ao inditoso Orfeu oferta o seu tributo e
volta, esperançoso, à floresta profunda.
Prodígio! o sangue, então, com o seu calor,
fecunda Nos flancos animais, um numeroso enxame!
Alados turbilhões a jorrar das entranhas, Como
nuvens se espalham a zumbir pelos ares, E no
tronco vizinho em cachos se penduram.
[ii]
Curso da Faculdade de Ciências, V. A. Revista
dos Cursos Científicos, 5 de Dezembro de 1863.