Desencarnação e socorro imediato: um caso
singular
O tema da morte é um assunto evitado pela maioria das
pessoas. Afinal de contas, é algo que traz inquietação,
dúvida e intranquilidade – como um companheiro
indesejável que nos acompanha por toda a vida – diante
do desconhecido, do que nos aguarda do lado de lá,
enfim. Entretanto, a morte chega para todos nós –
gostemos ou não – implacavelmente. Dito de maneira mais
simples, a morte encerra o cumprimento de um ciclo para
o qual devemos estar preparados. Para uns, esse ciclo é
longo, mas, para outros, é extremamente curto. Seja como
for, todos os dias somos lembrados da presença da morte,
seja de uma forma ou de outra.
Como será, então, a nossa transição para a dimensão
espiritual? A única certeza que podemos ter é que vai
depender exclusivamente de nós. Como sensatamente
alertou-nos Jesus, “a cada um segundo as suas obras”.
Com efeito, tal advertência aplica-se imediatamente no
momento da nossa morte. Ou seja, já nos primeiros
instantes seguintes à desencarnação iniciamos a justa
colheita das “nossas obras”. A qualidade destas, aliás,
determinam a nossa condição espiritual e, por extensão,
a merecida ajuda ou punição do lado de lá. O caso que
relatarei a seguir envolveu uma pessoa da minha relação
de amizades – referir-me-ei a ela como Dona M, uma
extraordinária médium – e a sua participação no
desencarne de um amigo e vizinho seu de longa data, o
Senhor P.
Há alguns dias atrás, o Senhor P desencarnou
inesperadamente em sua residência, vítima de um ataque
cardíaco fulminante. Segundo Dona M, ele estava, ao que
tudo indica, padecendo dos primeiros estágios de um
câncer de garganta (o diagnóstico fora dado
recentemente). No entanto, o seu estado geral de saúde
parecia saudável dada a sua aparência, e a sua morte
súbita surpreendeu a todos. A filha mais nova e o neto
estavam morando com ele, e, pelo que a Dona M apurou, o
Senhor P estava muito preocupado com a situação deles.
A notícia sobre o passamento do Senhor P havia lhe
chegado pouco antes da hora do almoço daquele dia,
deixando-a extremamente chateada, considerando a amizade
que mantinham. Ela sentiu um choque muito grande, mas
decidiu nada fazer até que lhe chegassem mais
informações sobre o féretro. Fez, no entanto, uma prece
sentida pelo amigo recém-desencarnado. Recordou muitos
momentos agradáveis da convivência que tiveram ao longo
dos anos.
Assim sendo, continuou os seus afazeres domésticos,
embora sem conseguir tirar a imagem do Senhor P da
mente. Em dado momento foi ao quintal da sua casa
recolher algumas roupas do varal, até que um “pensamento
abrupto” lhe invadiu a mente com a seguinte
recomendação: “Troque de roupa, arrume o cabelo e vá à
casa do Senhor P”. Médium experimentada, ela decidiu
cumprir incontinenti a tarefa delineada.
Alguns minutos depois, Dona M estava na residência dele.
Os familiares a receberam com muito respeito – ela já é
uma septuagenária e as cãs lhe adornam a cabeça. Com
muita determinação, ela solicitou permissão aos
familiares – crentes, cumpre salientar – para ver o
corpo e fazer uma oração junto dele, antes que a viatura
do Instituto Médico Legal o levasse. Disse-lhes ainda,
com sinceridade, “Sou espírita, mas o evangelho de Jesus
é igual para todos”. Eles educadamente concordaram e
pediram a uma moça, amiga da família, que acompanhasse
Dona M.
As duas adentraram a residência, passaram por vários
cômodos, até chegarem ao banheiro onde jazia o corpo
inerme de bruços coberto por um lençol alvo. O banheiro
estava muito limpo e a pintura era clara. Dona M pediu à
sua jovem acompanhante para descobrir a cabeça do Senhor
P e fizesse uma oração.
Em seguida, ela mentalizou os seus mentores espirituais,
e rogou fervorosamente, em voz alta, ajuda para o amigo
desencarnado. Sentindo-se já mediunizada, iniciou um
diálogo singular com o falecido. Ela revelou-me que
ouvia perfeitamente a sua voz (rouca, a propósito, como
de costume) indignada, as suas palavras de desespero
diante da morte súbita e dos problemas familiares
pendentes. Diante do quadro doloroso, ela falou-lhe o
que segue:
– “Senhor
P, o senhor está me ouvindo? Eu vim aqui para
falhar-lhe. Eu sinto que o senhor está desesperado por
tudo ter terminado assim... O senhor não quer, mas é a
vontade de Deus! O senhor estava com uma doença grave e
iria sofrer muito, mas Jesus lhe abreviou a passagem.
Desculpe-me por falar-lhe deste jeito, mas eu tenho
conhecimento e pedi aos meus protetores, que estão ao
seu lado, para lhe auxiliar levando-o, de modo que o
senhor possa receber a assistência apropriada em outro
lugar... Um dia o senhor vai entender e poderá também
ajudar aos seus entes queridos que aqui ficam... Vá com
esses mentores que querem apenas o seu bem”.
Nesse interregno, acorreu à mente de Dona M um
pensamento (sugestão) incisivo, e ela, por conseguinte,
apôs as suas mãos sobre o corpo inerme. Os seus braços e
mãos começaram a tremer. Ela recomendou ainda à sua
acompanhante que não temesse e continuasse rezando. Dona
M relatou-me que sentiu naquele momento significativo da
sua intervenção uma energia vinda do corpo sem vida
levando-a quase ao desfalecimento.
Foi amparada pela moça, e subitamente assomou-lhe o
pensamento de que os fluidos vitais remanescentes haviam
sido retirados. Em sua mente recebia o esclarecimento do
seu mentor que o corpo do Senhor P não estava totalmente
debilitado, isto é, havia nele ainda energia vital que
deveria ser retirada para que “os vampiros” não a
sugassem.
Já recuperada da tarefa, retirou-se juntamente com a
moça. Despediu-se da família reiterando que o amor de
Jesus está presente em todas as religiões. Ao sair da
casa do Senhor P encontrou com uma outra vizinha, Dona
C, que se ofereceu para acompanhá-la até a sua
residência. No curto caminho entre as duas residências,
Dona C contou-lhe que, poucas horas antes, a sua filha
(também portadora de vários tipos de mediunidade) viera
inesperadamente visitá-la junto com a netinha
recém-nascida. Informada sobre o passamento do vizinho
da mãe, a quem conhecia desde criança, sugeriu-lhe que
fizessem o culto do Evangelho no Lar a distância.
Mal começaram e a jovem médium, por meio da sua
vidência, identificou a presença do Senhor P no recinto,
absolutamente desesperado – exatamente como a Dona M
posteriormente também constatou – diante da sua súbita
desencarnação. As duas mulheres oraram e a imagem do
Espírito desencarnado desvaneceu-se. Dona C confessou à
Dona M que ela e a filha tiveram o desejo de ir à casa
do Senhor P, mas não se sentiram à vontade, já que a
família era de evangélicos e elas não queriam entrar em
conflito.
O caso em apreço merece algumas observações à luz da
doutrina espírita. Em primeiro lugar, ao desencarnar, o
Senhor P imediatamente se desligou do corpo consciente
do ocorrido (de alguma forma, Dona M captou a dor que o
Senhor P sentiu). Como era uma pessoa de boa índole e
íntegro, nada o prendeu aos despojos mortais, e a
assistência dos dois lados da vida foi notável.
Nesse sentido, cabe lembrar algumas observações de Allan
Kardec, na obra O Céu e o Inferno, capítulo 1, O
Passamento, a saber: “A extinção da vida orgânica
acarreta a separação da alma em consequência do
rompimento do laço fluídico que a une ao corpo, mas essa
separação nunca é brusca. O fluido perispiritual só
pouco a pouco se desprende de todos os órgãos, de sorte
que a separação só é completa e absoluta quando não mais
reste um átomo do perispírito ligado a uma molécula do
corpo. ‘A sensação dolorosa da alma, por ocasião da
morte, está na razão direta da soma dos pontos de
contato existentes entre o corpo e o perispírito, e, por
conseguinte, também da maior ou menor dificuldade que
apresenta o rompimento’. Não é preciso, portanto, dizer
que, conforme as circunstâncias, a morte pode ser mais
ou menos penosa. Estas circunstâncias é que nos cumpre
examinar”.
Conclui-se, portanto, que a coesão entre o perispírito e
o corpo do Senhor P já era inexistente, e, desta forma,
o seu Espírito se libertou espontaneamente. Entretanto,
Dona M foi intuída a dar um passe para a eliminação
total do fluido vital do corpo do falecido a fim de que
as entidades infelizes dele não se aproveitassem. A
propósito, na obra Missionários da Luz, de
autoria do Espírito André Luiz (psicografia de Francisco
Cândido Xavier), capítulo 11, Intercessão, o benfeitor é
esclarecido pelo mentor Alexandre que tais entidades
“abusam de recém-desencarnados sem qualquer defesa ...
nos primeiros dias que se sucedem à morte física,
subtraindo-lhes as forças vitais depois de lhes
explorarem o corpo grosseiro...”
Embora as venerandas entidades espirituais estivessem se
referindo ao suicida Raul, a experiência aqui relatada
demonstra que foi tomado exatamente o mesmo cuidado no
caso do Senhor P. Este, por sinal, será certamente
esclarecido – mercê do seu esforço e conduta no bem
quando encarnado – com relação às forças do amor que
foram mobilizadas em seu favor na sua despedida da vida
material.