Deus na Natureza
Camille
Flammarion
(Parte 27)
Continuamos o estudo
metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de
autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade
do século 19, no ano de1867.
Questões preliminares
A. Como definir espécie e o que Lamarck aditou a esse
tema?
Desde os tempos de Linneu até o começo do século XIX,
era assim que se entendia a respeito do tema: “A espécie
compõe-se de indivíduos semelhantes e reproduzindo-se de
seres a eles semelhantes”. Tendo
Lamarck reconhecido uma grande quantidade de espécies
fósseis, das quais umas eram idênticas a espécies vivas,
enquanto que outras não passavam de variedades, aditou
ele o fator tempo à definição de espécie, assim
formulando: “Compõe-se a espécie de indivíduos
inteiramente semelhantes entre si e reproduzindo-se por
seres semelhantes, desde que as condições de vida não
experimentem alterações capazes de lhes variar os
hábitos, caracteres e formas.” (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
B. A respeito do tema espécie, Lamarck aditou outra
importante observação. Que disse ele?
Lamarck concluiu, em face de suas pesquisas, que dos
animais e plantas contemporâneas nem um exemplar existia
da criação primordial, sendo todos derivados de formas
preexistentes, as quais, depois de haverem reproduzido,
por séculos sem conta, seres semelhantes, teriam,
finalmente, experimentado variações graduais e
consequentes a mudanças de clima e do reino animal,
adaptando-se às novas circunstâncias. Alguns, no
entanto, com o correr dos tempos se afastaram tanto do
tipo original, que mereciam ser agora considerados
espécie nova. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
C. A progressão na organização das formas viventes é um
fato comprovado pelos cientistas?
Sim. Um professor da Universidade de Cambridge[i] escreveu:
“Encontramos nos antigos depósitos da crosta terrestre o
traço de uma progressão na organização das formas
viventes, sucessivas. Podemos notar, por exemplo, a
ausência de mamíferos nos grupos mais antigos e as suas
raras aparições nos grupos secundários mais recentes.
Animais de sangue quente (em grande parte de gêneros
desconhecidos) encontram-se bastante espalhados em todas
as velhas camadas terciárias e abundam (frequentemente
com formas genéricas conhecidas) nas partes superiores
da mesma série; e, por fim, temos que a aparição do
homem na superfície do solo é um fato recente.” (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
Texto para leitura
497. Examinemos agora, com Charles Lyell, eminente
geólogo[ii],
quais os principais caracteres da teoria de Lanck e de
Geoffroy Saint Hilaire acerca da progressão e
transformação das espécies. Os homens superficiais
facilmente imaginam que a Ciência está organizada com
regras absolutas e nenhuma dificuldade encontra em sua
marcha ascendente. Nada menos exato. Nem mesmo as
grandes definições têm caráter absoluto. Os zoólogos,
por exemplo, não se entendem sobre os vocábulos espécie
e raça. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
498. Sucedeu o que Lamarck predissera – declara Lyell –:
quanto mais se multiplicam as novas formas, menos nos
capacitamos de precisar o que seja uma variedade, ou uma
espécie. De fato, zoologistas e botânicos se veem, não
só mais embaraçados que nunca por definir a espécie,
como também para certificar se ela realmente existe na
Natureza, ou se não passa de simples abstração da
inteligência humana. Pretendem uns que ela seja
constante dentro de certos limites de variabilidade,
restritos e intransponíveis; querem-na outros suscetível
de modificações indefinidas e ilimitadas. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
499. Desde os tempos de Linneu até o começo deste
século, acreditava-se definir suficientemente a espécie,
dizendo: “A espécie compõe-se de indivíduos semelhantes
e reproduzindo-se de seres a eles semelhantes”. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
500. Lamarck, tendo reconhecido uma grande quantidade de
espécies fósseis, das quais umas eram idênticas a
espécies vivas, enquanto que outras não passavam de
variedades, aditou o fator tempo à definição de espécie,
assim formulando: “Compõe-se a espécie de indivíduos
inteiramente semelhantes entre si e reproduzindo-se por
seres semelhantes, desde que as condições de vida não
experimentem alterações capazes de lhes variar os
hábitos, caracteres e formas.” Finalmente, chega ele a
concluir que, dos animais e plantas contemporâneas, nem
um exemplar existe da criação primordial, sendo todos
derivados de formas preexistentes, as quais, depois de
haverem reproduzido, por séculos sem conta, seres
semelhantes, teriam, finalmente, experimentado variações
graduais e consequentes a mudanças de clima e do reino
animal, adaptando-se às novas circunstâncias. Alguns,
entretanto, com o correr dos tempos se afastaram tanto
do tipo original, que mereciam ser agora considerados
espécie nova. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
501. Em apoio a essa opinião, apresenta o contraste das
plantas agrestes com as cultivadas, dos animais
selvagens com os domésticos, a lembrar como e quanto se
lhes modificam gradualmente a cor, a forma, a estrutura,
os caracteres fisiológicos e até os instintos, em
presença de novos inimigos e sob a influência de
alimentação e regime de vida diferentes. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
502. Lamarck sustenta, não somente que as espécies foram
constantemente submetidas a alterações, passando de um a
outro período, mas, também, que houvesse um progresso
constante do mundo orgânico, desde os primeiros aos
hodiernos tempos, dos seres mais simples aos mais
complexos, dos mais baixos aos mais altos instintos, e,
finalmente, da mais rudimentar inteligência às maiores
expressões do racionalismo humano. Para ele, o
aperfeiçoamento teria sido moroso e constante, a própria
raça humana ter-se-ia, enfim, desgalhado do grupo de
mamíferos organicamente mais evoluídos. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
503. Um professor da Universidade de Cambridge nos deu
um resumo conciso e racional desta teoria[iii]:
“Encontramos nos antigos depósitos da crosta terrestre –
diz ele – o traço de uma progressão na organização das
formas viventes, sucessivas. Podemos notar, por exemplo,
a ausência de mamíferos nos grupos mais antigos e as
suas raras aparições nos grupos secundários mais
recentes. Animais de sangue quente (em grande parte de
gêneros desconhecidos) encontram-se bastante espalhados
em todas as velhas camadas terciárias e abundam
(frequentemente com formas genéricas conhecidas) nas
partes superiores da mesma série; e, por fim, temos que
a aparição do homem na superfície do solo é um fato
recente.” (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
504. Esse desenvolvimento histórico, das formas e
funções da vida orgânica em períodos sucessivos,
parece-nos indicial de uma evolução gradativa da energia
criadora, a manifestar-se por uma tendência progressiva
para o tipo mais elevado da organização animal. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
505. Hugh Miller[iv] também
nota o fato extraordinário de ser a ordem adotada por
Cuvier, no seu Reino Animal – a que coloca as
quatro classes de vertebrados segundo as suas relações
mútuas e categóricas – a mesma ordem cronológica que
apresentavam. O cérebro, cujo volume em relação ao da
medula está na razão de dois para um, é o do peixe, que
foi o primeiro a aparecer. Sucedeu-lhe o que apresenta a
relação média de dois e meio por um, ou seja, o réptil.
Em seguida, vem a relação de três por um, que é a das
aves; a média de quatro por um, peculiar aos mamíferos.
Por fim, o último, um cérebro cuja relação média é de
vinte três por um, o cérebro do homem, que raciocina e
calcula. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
506. O cérebro poderia não ser mais que uma florescência
da medula espinal. Nas espécies inferiores (rãs por
exemplo) a faculdade de sentir pertence à medula, quanto
ao cérebro. Sem dúvida, pode-se fazer sérias objeções à
doutrina da progressividade, mostrando algumas plantas e
animais menos perfeitos e surgidos posteriormente a
espécies mais perfeitas, tais como o embrião
monocotiledôneo e os vegetais endógenos, depois do
embrião monocotiledôneo e dos vegetais exógenos (o das
coníferas de caule glanduloso), bem como a perfeição das
mais antigas criptogâmicas, o movimento retrogressivo
dos répteis, o aparecimento da jiboia-constritora (Boa
constrictor) depois do iguanodonte etc. Exemplos não
faltam, mas, persuadidos de que essa teoria não alcança
a nossa tese da presença de “Deus na Natureza”, e
simpatizando com ela, em si mesma, nós a sustentaremos.
Consideramo-la com Lyell, não apenas útil mas, no estado
atual da Ciência, como hipótese indispensável, que,
destinada embora a sofrer de futuro muitas e grandes
modificações, jamais poderá ser absolutamente
aniquilada. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
507. Sem dúvida, poderão julgar paradoxal que os mais
firmes sustentáculos da transmutação (Darwin e Hooker,
por exemplo) guardem singular reserva quanto à
progressão, e que os maiores apologistas desta combatam,
não raro com veemência, a transmutação. Não poderão ser
verdadeiras e conciliar-se essas duas teorias? Uma e
outra nos representam em definitivo os tipos de
vertebrados a elevarem-se gradualmente no curso das
idades, a partir do peixe, a mais simples forma, para os
mamíferos placentários, até chegar ao último elo da
série, aos mamíferos antropoides e, enfim, ao homem.
Este último grau afigura-se, portanto, nesta hipótese,
uma parte integrante da mesma série contínua de atos
desenvolvidos, anel da mesma cadeia, coroamento da obra,
por isso que entra na mesma e única série das
manifestações da potência criadora. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
508. Passemos agora à teoria da origem das espécies por
meio da seleção natural. Esta teoria nos apresenta
grosso modo a ação da Natureza, observada na criação e
educação dos animais domésticos. Sabem os criadores que
é possível, ao fim de algumas gerações, obter uma nova
classe de rebanhos, de chifre curto ou sem chifre, desde
que tenham escolhido reprodutores de cornos menos
desenvolvidos. Dizem, então, que é assim que opera a
Natureza, alterando no curso das eras as condições da
vida, os traços geográficos de um país, seu clima, a
associação de animais e plantas e, por consequência, a
alimentação e os inimigos de uma espécie e o seu “modus
vivendi”. E assim se vão elegendo certas variedades
mais bem adaptáveis à nova ordem de coisas. Dessarte,
podem as novas raças suplantar, muitas vezes, o tipo
original de sua ascendência. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
509. Lamarck opinou que o pescoço longo da girafa
procede de uma longa série de esforços para colher o
alimento de árvores cada vez mais altas. Darwin e
Wallace limitam-se a conjeturar que, na intercorrência
de alguma calamidade, sobreviveram os espécimes de
pescoço comprido, por lhes ser possível pastarem em
sítios inacessíveis aos outros. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
510. Graças a ligeiras modificações, multiplicadas em
curso de milhares de gerações e à transmissão, por
hereditariedade, das aquisições novas, supõe-se uma
divergência cada vez maior do tipo primitivo, até
resultar em uma nova espécie, ou em um novo gênero, se
mais longo o tempo decorrido. O moderno autor dessa
explicação fisiológica da origem das espécies, Charles
Darwin, expõe ele próprio[v],
como se segue, os fatos gerais em que se baseia. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
511. Na domesticidade, constata-se uma grande
variabilidade, que parece devida ao fato de ser o
sistema reprodutor muitíssimo sensível às mudanças de
condições de vida, deixando de reproduzir exatamente a
forma matriz. A variabilidade das formas específicas é
governada por um certo número de leis muito complexas,
tais como o uso ou a falta de exercício dos órgãos e a
ação direta das condições físicas da vida. Nossas
espécies domésticas sofreram modificações profundas, que
se transmitiram por hereditariedade, durante período
assaz longos. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
512. Assim, também, enquanto se mantiverem as mesmas
condições de vida por períodos longos, poderemos admitir
possa manter-se e transmitir-se uma modificação já
adquirida durante uma série quase infinita de graus
genealógicos. Por outro lado, está provado que a
variabilidade, uma vez começando a manifestar-se, não
cessa totalmente de operar, visto como novas variedades
ainda se verificam, de tempos a tempos, entre as nossas
espécies domésticas mais antigas. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
513. Não é, porém, o homem que produz a variabilidade.
Ele apenas expõe, e muitas vezes sem desígnios, os seres
orgânicos a novas condições de vida. Então, a Natureza,
agindo sobre o organismo, produz variações. Podemos
escolher, então, essas variedades e as acumular na
direção que nos prouver. Assim, adaptamos animais ou
plantas às nossas conveniências e até aos nossos
caprichos. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
514. Tal resultado pode ser obtido sistematicamente e
mesmo sem objetivo preconcebido, qualquer, bastando que,
sem propósito de alterar a raça, se conservem de
preferência os indivíduos que, num dado tempo, lhe são
os mais úteis. Certo é que se podem transformar os
caracteres de uma espécie escolhendo-se de cada geração
sucessiva as diferenças individuais; e esse processo
seletivo foi o agente principal de produção das raças
domésticas, mais distintas e mais úteis. Os princípios
que atuaram com tanta eficácia, no estado de
domesticidade, podem, igualmente, operar no estado de
natureza. A conservação das raças e dos indivíduos
favorecidos na luta perpetuamente renovada com o meio
ambiente, é fator poderosíssimo, e sempre ativo, de
seleção natural. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
515. A concorrência vital é uma consequência necessária
da multiplicação, em razão geométrica mais ou menos
elevada, de todos os seres organizados. A rapidez dessa
progressão está provada não só pelo cálculo, como pela
pronta multiplicação de muitos animais e plantas durante
uma série de estações particulares, ou quando se
aclimatavam em novas regiões. O número dos indivíduos
que nascem excede sempre o dos que podem viver. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
[i]
Professor Sedgwick’s – Discurse on the
Studies of the University of Cambridge,
1850.
[ii]
Charles Lyell – The Antiquity of Man... A
ancianidade do homem provada pela Geologia e
anotações sobre a origem das espécies, por
variação.
[iii]
Professor Sedgwick’s – Discurse on the
Studies of the University of Cambridge,
1850.
[iv]
Edinburgh – Footprints of the Creator,
1849.
[v] On
the Origine of Species by the mean of
natural selection.