O caminho das videiras
Ela passou por baixo da parreira e logo avistou um
cenário harmonioso com muitas casas, todas com paredes
brancas e janelas azuis no estilo colonial, cercadas por
plantações de arroz. Roseiras, papoulas, girassóis e
tulipas, flores de todos os climas e lugares completavam
o plano. Com o fio de prata ao redor
de si viu que mais à frente havia uma ponte tão
maravilhosamente cromática e vaporosa que imediatamente
se lembrou da tela A ponte
de Langlois
em Arles, de
Van Gogh, e da película Sonhos, de
Akira Kurosawa... o lugar era propício.... Se bem que
este não era bem um lugar, mas uma suspensão no tempo.
Como fora difícil amontoar tudo
dentro do coração até aquele momento! Por que tinha de
ser assim?
Curiosa, dirigiu-se ao japonês que trabalhava
concentrado na colheita. Reticente,
remexendo dados de seu passado, decidiu perguntar:
– Bom dia... Sabe me dizer qual destas casas é a de L.
A?
O homem coçou a cabeça, espremendo bastante os olhos
para responder:
– L. A?... Ahhhh! deve ser o novo morador, que chegou no
dia nove de março!
– Sim.
– É logo ali, segunda casa à direita, depois da ponte.
Ela caminhou hesitante. Nove meses tinham se passado.
Como ele estaria? Perdera a autenticidade ou esta
continuara a existir no novo estado? E o sorriso?
Haveria sorrisos no novo espaço ou a vida a partir dali
seria feita de espasmos? Não sabia o que pensar.
À medida que avançava, a ponte se afunilava rumo às
águas do rio. O que estava acontecendo?
Voltou a cabeça na direção do japonês e viu que
este desaparecera. O tempo era de desaparecimentos e
novas construções.
Quantas lembranças despendiam-se daquela ponte! A
velocidade de sua caminhada aumentava, alternando-se com
as descidas e subidas daquele balançar. De repente, a
segunda casa foi ficando cada vez mais próxima para ela.
Só ela sabia e sentia, ninguém mais.
Ao alcançar o outro lado, percebeu que as habitações
eram estruturalmente simétricas e imponentes à luz do
sol.
As vias eram traçadas
conforme a disposição das casas em meio às plantações de
arroz. Nenhum portão ou cercamento, porque não havia
necessidade deles.
Aquelas moradas pareciam preservar em seus
cômodos os escombros mais
recônditos de um passado estranhamente familiar para
ela.
Parou diante da casa que pertencia a L.A, cuja fachada
majestosa ostentava um belo perfil de estuque, com
vários rebordos alinhados por ornamentos antigos. A
topografia era vencida por uma porta frontal e duas
janelas grandes, azuis como nas outras casas.
A sensação era de lar acolhedor e ela se aproximou,
abrindo com cuidado a porta. Parada, com a mão ainda
sobre a maçaneta foi
observando cada objeto do
espaçoso cômodo. A
curiosidade aumentara e ela pôde notar o espelho em
moldura dourada no centro da parede; na mesma direção
encontrava-se a janela com cortinas brancas, um tapete,
um sofá e duas cadeiras de jacarandá, adornadas com
pregarias. Pendurado numa das paredes havia ainda um
relógio cuco sem os ponteiros.
Ela enfim entrou e o avistou no canto próximo à mesa
cheia de candelabros. Notou que ele limpava
atenciosamente cada um daqueles castiçais, lustrando-os
com um pano fino e alvo. Estava vestindo calça azul e
camisa branca, o que parecia somar-se harmoniosamente
com toda a disposição cromática do local. Parou o que
estava fazendo e fitou-a como se já a estivesse
esperando, com um sorriso terno de aprovação.
O fio de prata que a envolvia fora brevemente afastado
para que o abraço pudesse acontecer. Foi quando sentiu
reavivar na memória todo o passado: a pele morena, o
cabelo preto e os lábios finos de L.A.. Ele estava
intacto. Como era possível? Depois de nove meses? O novo
estado contava com reparações... só podia ser isso.
Ele a abraçou de lado como as pessoas fazem ao posar
para as fotografias. Por que agora o abraço deveria ser
assim, de lado? E por que toda a pressa dele se o cuco
estava sem os ponteiros?
E como o instantâneo de uma câmera fotográfica aquele
momento ficaria para sempre na memória, entrelaçado no
cotidiano febril de muitas escolhas que ainda estavam
por vir. O abraço
registrava a dilatação de um momento que nunca mais
seria modificado.
Ela não compreendia que os laços fluídicos, espécies de
fios condutores das almas aos corpos ainda ligavam L.A.
aos invólucros terrestres do antigo estado, de modo que
poderia transmitir impressões e valores captados por
ela. Mas L.A. apressou-se em dizer, em tom de alerta,
que teriam de ser breves, pois o tempo dele não era mais
compatível com o dela, que, por sua vez, deveria
retornar o mais rápido possível.
Segundo L.A. ela precisava se acalmar, olhar a vida sem
medo e acreditar no que vinha se ocupando, ou seja,
concentrar-se na reforma da casa, pois não era fácil
lidar com construções... Havia sempre gastos,
contratempos e descompassos até que a tal casa ficasse
pronta lá no outro lado. Além disso, a vida teria de
continuar para frente, para cima, para os lados, mas
jamais para trás, etc., etc., etc....
Esta casa, por exemplo... demorou para ser construída e
posteriormente reformada. Cada tijolo aqui utilizado
representa um degrau e um sentido para o todo de sua
arquitetura. Por isso, reflita bem sobre o que tem feito
com os tijolos de sua casa.
Ela se esforçava para ouvi-lo, uma vez que sua voz ia
ficando cada vez mais baixa e vaporosa, misturada que
estava com o canto ensurdecedor dos pássaros lá de fora.
As cortinas da sala começaram a dançar apressadas com o
vento que vinha lá de fora. Era o sinal de despedida
para L.A.:
– Agora vá. Você deverá seguir o mesmo caminho daqueles
dois, sempre pelas videiras.
Ela se voltou para a janela e avistou um casal de jovens
que realmente passavam por debaixo da parreira.
Sorridentes, eles se abraçavam e se beijavam, sem notar
que ela os observava.
O clarão da sala ainda permitiu que olhasse para o piso
de assoalho resistente, com frisos estriados. Foi quando
atentou que entre eles havia uma série de pequenas
faixas, as quais se distribuíam em vários grupos,
marcando repartições no chão. Uma das faixas parecia
prolongar-se, aumentando a divisão entre ela e L.A.
naquele cômodo. Mero detalhe? Mera divisória? Não para
quem em breve constataria que, ao sensível, o
inteligível se colocava, impondo uma divisória. Como o
tempo era de suspensão, o inteligível permaneceria, pois
se configurava eternamente como realidade estável.
De repente, ela sentiu que as
pulsações do fio de prata
começavam a arrefecer, em sinal de que deveria se
despedir e retornar. Com
dificuldade, apalpou a própria nuca e com medo percebeu
que alguns filamentos energéticos começavam a se
distender, perdendo-se do feixe ligado a seu corpo. Uma
força desconhecida paralisava seus movimentos,
mantendo-a ligada a L.A..
Com dificuldade de respirar, ela conseguia apenas
mover os olhos para todos os lados da sala, porém, não
podia movimentar o corpo. Então, o desespero a tomou...
E agora? Como faria para voltar? Não poderia ficar ali,
seu tempo já estava terminando.
Sentiu que possuía um coração conectado ao de L.A.,
mesmo estando certa de que ele ficaria para sempre do
outro lado. Embora o abraço tenha sido diferente, o
olhar permanecia amigável e do lado dela. Finalmente,
como se já soubesse a resposta, inquiriu com voz cava:
– Pai, você não vem comigo?
Nesse momento um feixe de raios luminosos cruzou a
extensão da sala, tornando-a ainda mais clara e luzidia,
tal como nas histórias infantis, em que as fadas
resvalam pelos raios de luz.
O plexo solar sinalizava perigo, uma vez que os
filamentos nervosos continuavam a romper do cordão de
prata como num cabo elétrico. Era o tênue limite e ela
experimentava forte sensação de resistência.
Em vão tentou esticar os braços na direção de
L.A. para indicar o seu suplício, mas, sem força,
desistiu. As fronteiras seriam quebradas?
Então L.A. deu como
resposta um gesto negativo e demorado com a cabeça.
Dirigindo o olhar sereno para a janela parecia reafirmar
a necessidade do encontro dela com o atalho das
videiras. Conservando-se
vigilante, era certo que não viria.
O gesto foi o bastante para que ela se afastasse, se
afastasse, se afastasse tanto que, quando viu, já estava
no destino calculado, quase se esbarrando com o casal
embaixo das videiras. Ainda apreensiva, teve a certeza
de que estava no caminho certo.
Era o retorno da viagem flórea e luminosa para a
vida real.
Já em nova dimensão vibratória, ela finalmente se
certificou de que o cordão de prata permanecia ligado ao
seu corpo para o prosseguimento da experiência na Terra.
Era preciso continuar!
Acordou ofegante, acendendo a luz do quarto da casa
interiorana de paredes amarelas e quadros
vintage.
Já era tempo de vestir o uniforme e sair para o
trabalho. Na volta contrataria os pedreiros para a
reforma e assim pensaria no que fazer
de seus tijolos.
Mariângela Alonso é doutora em Estudos Literários pela
UNESP e pós-doutora pela USP. É autora dos livros
Instantes líricos de revelação: a narrativa poética em
Clarice Lispector (São Paulo: Annablume, 2013) e
O jogo de espelhos na ficção de Clarice Lispector
(São Paulo: Annablume, 2017). É docente de Literatura
Brasileira e Teoria Literária da Universidade Estadual
do Norte do Paraná. E-mail:
malonso924@gmail.com.
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