Entrevista

por Giovana Campos

O testamento vital e a questão bioética

O último Mednesp, realizado este ano no Rio de Janeiro, também foi marcado pela atualização da Carta de Princípios Bioéticos, que trouxe um tema atual: o testamento vital. Trata-se de decisões antecipadas que o paciente, enquanto saudável, redige termos de conduta médica, especificando as ações que gostaria que fossem ou não tomadas, quando porventura adoecer gravemente e não tiver condições de manifestar sua vontade. O assunto suscita, no entanto, duas importantes questões: Quais os limites éticos a observar? Há algum parâmetro espiritual a ser considerado?

O médico intensivista e coordenador do Departamento de Bioética da AME-Brasil, dr. José Roberto Pereira Santos (foto), falou-nos a respeito do assunto.

O que é o testamento vital?

O testamento vital (TV) é um documento redigido por uma pessoa no pleno gozo de suas faculdades mentais, com o objetivo de dispor acerca dos cuidados, tratamentos e procedimentos que deseja ou não receber quando estiver com uma doença ameaçadora da vida, fora de possibilidades terapêuticas e impossibilitado de manifestar livremente sua vontade.

Também conhecido como decisão antecipada de cuidados de saúde, decisão pessoal, ou diretiva antecipada, é um documento em que uma pessoa especifica quais ações devem ser tomadas em relação aos seus cuidados de saúde, se ela já não é mais capaz de tomar decisões por si própria, por motivo de doença ou incapacidade. Por exemplo: Essa pessoa, aos 32 anos de idade, gozando de boa saúde física e mental, decide fazer um documento em que coloca que ao sofrer um acidente e entrar em coma e, se esse estado se prolongar por determinado período (estipulado no documento), não quer ser intubada ou colocada em uma UTI, em ventilação mecânica.

O testamento vital dispensa o advogado ou qualquer outra formalidade. Para que seja válido, ele deve ser escrito a mão ou digitado, e assinado pela pessoa sem quaisquer rasuras. Recomenda-se a assinatura de mais três testemunhas e o registro em cartório.

Nos Estados Unidos, o TV já tem valor legal, enquanto que em alguns países é aceito, mas sem se constituir em documento legal. Tal entendimento tem gerado decisões, nesses países, em que é permitida, por exemplo, a eutanásia passiva de pessoa em coma vegetativo, por suspensão da alimentação e hidratação do paciente que manifestou, em vida, essa opção.

Por que este tema passou a ser uma preocupação dos médicos brasileiros?

Com o progresso constante da tecnologia na área médica e dos tratamentos intensivos, hoje, cada vez um número maior de pacientes sobrevive a doenças crônicas e situações clínicas graves, como infartos do miocárdio e acidentes vasculares cerebrais, mas em condições de total dependência de outrem.

Muitas pessoas têm medo do sofrimento que poderão sentir nessas situações. Consideram que, se estiverem incapazes, física ou mentalmente, poderão ser condenadas a uma morte lenta e com muito sofrimento. Entendem que o desejo explícito do paciente em um documento, enquanto em vida saudável, garantirá uma decisão mais fácil, tranquila e harmônica para a família, nas situações de doença grave e inconsciência, quando o indivíduo não poderá mais se expressar; pois essa decisão prévia já será de conhecimento de todos.

Preocupado com essa situação, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou em 2012 uma Resolução (Resolução CFM nº 1995/2012) favorável ao testamento vital (chamado de diretivas antecipadas da vontade do paciente), que permite ao médico respeitar as vontades do paciente quando registradas previamente em um documento. Tal decisão gerou uma série de manifestações contrárias no meio jurídico e médico, por entender que isso é uma porta aberta para a legalização da eutanásia e que o CFM não tem poderes para tomar essa deliberação.

Qual a posição da AME-Brasil sobre o tema?

O testamento vital segue a proposta de um modelo utilitarista e hedonista de tratar a vida, onde a dor e sofrimento são vistos como algo a ser evitado e não enfrentado; a vida é dirigida no sentido do prazer fácil e imediato e pode ser descartada quando tais objetivos não possam mais ser alcançados.

Não se trata, portanto, de buscar uma morte digna, pois a dignidade significa um propósito e um sentido para a vida. Digno é quem enfrenta o sofrimento sem precisar buscar a morte para evitá-lo.

A vida não se constitui só de alegrias e realizações, mas também de dificuldades, dores e sofrimentos.  O sentido da vida é a própria vida.

Nós, médicos espíritas, somos contra o testamento vital. Somos favoráveis à ortotanásia ou morte natural (entendida quando o paciente encontra-se em estado terminal). Somos favoráveis aos cuidados paliativos. Entendemos que o testamento vital é uma medida utilitarista e egoísta, que representa falta de fé na Providência Divina. Não nos é lícito definir como ou quando vamos morrer, ou se nossa morte vai ser sofrida ou não. Não podemos dispor da nossa vida, pois é um bem indisponível que só a Deus pertence. As dores e sofrimentos são decorrentes dos nossos atos (lei da ação e reação) e a melhor maneira de termos uma morte digna é viver dignamente, seguindo os exemplos de Jesus.

O médico deve fazer todos os esforços possíveis para preservar a vida e aliviar o sofrimento dos pacientes. Não cabe a essa nobre função omitir tratamento que vai levar à morte, independente da vontade do paciente. Muitas vezes o paciente em momentos de dor e sofrimento vem a descobrir novos valores e encontrar um sentido para a vida, o que pode alterar sua atitude e a vontade manifestada anos atrás.

 

Nota da autora:


A Carta de Princípios Bioéticos da AME-Brasil pode ser acessada em https://goo.gl/x7P79J

 
 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita