Clássicos
do Espiritismo

por Angélica Reis

 
Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 33)


Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de 1867.


Questões preliminares


A. O estado da alma e seu perfeito funcionamento prendem-se ao estado do cérebro?

Sim, sem dúvida. O enfraquecimen-to do cérebro acarreta o desfalecimento da alma, tanto quanto uma lesão cerebral pode produzir a perda de faculdades correspondentes. É fácil compreender o motivo. Se o melhor músico do mundo só dispusesse de um piano com falta de algumas teclas, ou de um instrumento de construção defeituosa, ele não poderia mostrar seu reconhecido talento, por lhe faltar condições para isso, e nem por isso sua arte teria desaparecido. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

B. Como se pode explicar a loucura?

Duas hipóteses se apresentam para explicar a loucura. Ou há ou não há uma lesão no cérebro. No primeiro caso, a falha do instrumento não demonstra que inexista a alma. No segundo, o problema pertence à ordem mental. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

C. O organismo exerce, como sabemos, influência sobre a alma. Esta exerce também influência sobre o organismo?

É evidente que sim. Não vemos, a todo instante, mesmo sob o seu aspecto físico, a influência do espírito sobre o corpo? As paixões refletem-se no semblante. Se empalidecemos de medo, é que este sentimento, manifestando-se por um movimento do cérebro, retrai os vasos capilares da face. Se a cólera ou a vergonha purpureiam-nos o rosto, é que os movimentos engendrados dilatam os ditos vasos, conforme o indivíduo. Mas aqui, é ainda o espírito que desempenha o principal papel. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)


Texto para leitura


593. Examinaremos em seguida se os fatos provam, tão clara e peremptoriamente quanto o supõem, que o pensamento não passa de função fisiológica e que a alma é atributo da matéria. O nó do problema está em decidir se o cérebro é um órgão ao serviço da inteligência, ou se esta é uma criação do cérebro, filha e escrava da substância cerebral. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

594. É sempre, sob outro aspecto, a mesma questão de força e matéria. Domina a força? Obedece-lhe a matéria? Ou é o contrário que se dá? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

595. Esses senhores declararam, sem forma outra de processo, que, evidentemente, a força é um atributo da deusa Matéria e a alma não passa de ilusão de si mesma, a crer na sua personalidade, quando mais não é que o resultado passageiro de um movimento do fósforo, ou da albumina, nos lobos cerebrais. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

596. Se esta grosseira explicação está tão bem demonstrada e é tão evidente para os nossos adversários, confessamos que, ao nosso ver, ela é obscura e nos parece incapaz de algo provar, na atualidade, a esse respeito. Não somente a fisiologia cerebral ainda está na sua infância, como, no parecer mesmo dos fisiologistas mais eminentes, as relações do cérebro com o pensamento permanecem profundamente desconhecidas. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

597. Sem dúvida, o estado da alma prende-se ao estado do cérebro; certo, o enfraquecimento deste acarreta o desfalecimento daquela; as crianças e os velhos (posto que com exceções numerosas) raciocinam com menos clareza e rigor que os homens maduros; e concebe-se que uma lesão cerebral produza a perda de faculdades correspondentes; mas, que prova tudo isso, uma vez que o cérebro é, neste plano, o instrumento necessário, sine qua non, da manifestação da alma? Se, em vez de ser a causa, ele é apenas a condição? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

598. Se o melhor músico do mundo só dispusesse de um piano com falta de algumas teclas, ou de instrumento outro de construção defeituosa, seria lícito negar talento musical a esse músico só por lhe falhar o instrumento, sobretudo quando, a seu lado, outros artistas, por disporem de instrumentos à altura de seus talentos, se fazem admirar por quem os ouve? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

599. Este, na verdade, o primeiro ponto a examinar: - É ou não a alma uma força pessoal animando o sistema nervoso? Uma primeira resposta é dada pelo fato, já relatado, de oferecerem os hemisférios cerebrais tanto mais sinuosidades, meandros e circunvoluções irregulares, quanto mais pensante é o portador desse cérebro. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

600. Não se dirá então, que, precisamente por ser independente e ativo, o pensamento trabalhou mais fortemente esse cérebro? Que, por se haver ele retraído muitas vezes sobre si mesmo, por ter tremido de angustiosas ânsias, em constrições de medo e em êxtases de amor; por haver procurado, meditado, escavado os problemas; por se haver ora revoltado, ora submetido; por ter, numa palavra, desempenhado rudes labores, é que a substância, veículo de comunicação com o exterior, guardou os traços desses movimentos e vigílias? Esta é a nossa opinião e pensamos que seria difícil demonstrar-nos o contrário. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

601. Alberto, um anatomista de Bonn, dissecou cérebros de pessoas que se haviam entregado a trabalhos intelectuais durante alguns anos, e achou em todos uma substância muito consistente e a massa parda, bem como os sulcos assaz desenvolvidos. Se, por outro lado, observamos com Spurzein, Gall e Laváter, que a cultura das faculdades superiores do espírito se nos imprime no crânio e no semblante; se visitarmos o Museu de Antropologia de Paris e notarmos, através da coleção de crânios do abade Frêre, que os progressos da Civilização redundaram na elevação da parte anterior e na depressão da occipital, poderemos tirar destes fatos uma conclusão diametralmente oposta à dos adversários, para afirmar que o pensamento rege a substância cerebral. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

602. A propósito de conclusões, não podemos eximir-nos de admirar a facilidade com que se podem tirar dos mesmos fatos conclusões inteiramente contrárias: tudo depende da disposição de espírito e haveria que desesperar dos progressos da teoria, se a maioria dos homens tivesse o caráter mal formado. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

603. Verificariam, por exemplo, em experiências com alienados, que alguns haviam recuperado a consciência e a razão pouco antes de morrer. Concluíram os espiritualistas que as almas desses infelizes voltavam, após longo isolamento, ao conhecimento de si mesmas e ao predomínio do corpo, sendo-lhes permitido, nesse transe supremo, abrir os olhos da consciência ao passarem desta para a outra vida. Os materialistas, ao invés, aproveitaram o fato, alegando que a aproximação da morte liberta o cérebro das influências tórpidas e mórbidas do corpo[i].(Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

604. Mais do que se imagina, a própria Anatomia fisiológica se embaraça, no concernente à loucura em relação com o estado do cérebro. Enquanto num, como os citados, muitos veem; outros, não menos hábeis, nada encontram. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

605. O alienista Leuret declara que nenhuma alteração cerebral se encontra, senão nos casos em que a demência é precedida de qualquer outra enfermidade, e que essas alterações são tão variáveis e diferentes que não autorizam ser apresentadas, afirmativamente, como verdadeiras causas. Assim também, a propósito das anfratuosidades há pouco referidas, poder-se-ia não ver mais que efeitos. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

606. Quando nossos adversários acrescentam que os casos de demência protestam contra a existência da alma, não estão melhor aparelhados para defender o seu sistema. Duas hipóteses se apresentam para explicar a loucura. Ou há, ou não há uma lesão no cérebro. No primeiro caso, a falha do instrumento não demonstra a inexistência do artista; e, no segundo, o problema fica pertencendo à ordem mental. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

607. Melhor ainda: o primeiro caso pode enquadrar-se no segundo, se admitirmos, qual sugere a experiência, que a loucura – seja a causada por uma dor súbita, por um grande susto ou por desesperação profunda – tem, em todos estes casos, sua fonte no ser mental, que reage contra o estado normal do cérebro e lhe acarreta qualquer alteração. Ainda aqui, é evidente, que quem sofre é o ser pensante, a determinar no organismo um distúrbio correspondente ao sofrimento. E de fato, tem-se verificado que as alterações só se encontram nas loucuras antigas, como se o espírito aí fora o que é por toda a parte – o movimentador da substância. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

608. Por outro lado, enquanto os adversários deduzem da descrição anatômica do cérebro que a faculdade de pensar não é mais que propriedade de movimentos do conjunto, nós vemos, na multiplicidade mesma desses movimentos, uma submissão do cérebro à grande lei da divisão do trabalho, por dar a cada órgão a sua função, de acordo com a respectiva situação, estrutura, composição, forma, peso, tamanho. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

609. Vemos, nessa variedade de efeitos, um argumento a favor da independência da alma, de vez que a hipótese desses fisiologistas não pode, de maneira alguma, conciliar uma tal complexidade dinâmica do cérebro com a simplicidade necessária e reconhecida, do ser intelectual. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

610. As comparações de crânios encontrados em antigos cemitérios de Paris, desde quando o prefeito de Napoleão 3º promoveu a remodelação da cidade, e, em particular, a diferença entre crânios das valas comuns e dos túmulos particulares, estabeleceram novamente que os indivíduos votados às ciências e artes possuem uma capacidade cerebral maior que a dos simples operários. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

611. As mesmas escavações revelaram que a capacidade craniana dos parisienses aumentara, de Filipe-Augusto para cá. A capacidade craniana do negro livre é maior que a do escravo. Eis um fato significativo que poderia (em dada circunstância) ser invocado a favor da liberdade. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

612. Tendo provas de que as impressões exteriores influem no pensamento, temo-las por igual de que o pensamento domina os próprios sentidos. Quantas criaturas não vemos por aí, cujo cérebro e cujo corpo padecem enfermidade lenta e rebelde, arrostando uma existência de misérias e dores e conservando, sem embargo, fortaleza de ânimo, e guardando a flor da virtude, sobranceiras à torrente de lodo que as arrasta, e vencendo pela grandeza do caráter os elos da adversidade? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

613. Alguém pode negar que haja dores morais que residem, lacerantes, nas profundezas insondáveis da alma? Dores íntimas, não causadas por acidentes físicos, nem por enfermidade exterior, nem por alteração do cérebro, mas, tão só, por uma causa incorpórea, qual a perda de um pai, a morte de um filho, a infidelidade de um ente amado, a ingratidão de um protegido, a traição de um amigo; ou ainda pelo quadro de um infortúnio, pela derrota de uma causa justa, pelo contágio de ideias malsãs; por multidão de causas, enfim, que nada têm de comum com o mundo da matéria e não se medem geométrica e quimicamente, mas constituem o domínio do mundo intelectual? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

614. Não vemos, assim, mesmo sob o seu aspecto físico, a influência do espírito sobre o corpo? As paixões refletem-se no semblante. Se empalidecemos de medo, é que este sentimento, manifestando-se por um movimento do cérebro, retrai os vasos capilares da face. Se a cólera ou a vergonha purpureiam-nos o rosto, é que os movimentos engendrados dilatam os ditos vasos, conforme o indivíduo. Mas aqui, é ainda o espírito que desempenha o principal papel. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

615. Se alguma vez corastes à impressão subitânea de um olhar feminino (não há desdouro em confessá-lo), não sentistes que a indiscreta impressão se transmitia ao cérebro por intermédio dos olhos e daí descia ao coração para remontar ao rosto? Procurai analisar essa sucessão, e mesmo que não coreis tomado de qualquer súbito temor, aplicai a mesma análise e concluireis que, sem o quererdes, as impressões vos passam céleres pela mente, antes que se traduzam exteriormente. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

616. O mesmo se verifica com os sentimentos; é no peito e não na cabeça que uma inexprimível sensação de plenitude ou de vácuo se manifesta, quando, em certas horas de melancolia, o pensamento se nos desprende e voa para o ser amado. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)


 

[i]     Büchner – Ob. cit., página 126.

 

 

     
     

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 Revista Semanal de Divulgação Espírita