A. Segundo a visão materialista da vida, com que
finalidade existe a Humanidade?
Finalidade nenhuma. Flammarion mostra nesta obra
que em tais doutrinas – que ele chama de
perniciosas – não existe lugar para a esperança,
moral para a consciência, luz para os pendores
do coração, justiça na ordem universal,
consolação para o aflito. E mais: a população do
globo não tem à sua frente nenhuma finalidade.
Existimos para quê? Para nada, eis o que as
doutrinas materialistas respondem. (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
B. Há proposições firmadas pelos defensores das
doutrinas materialistas que confirmam a resposta
acima?
Claro. Eis duas delas: “As leis da Natureza são
forças bárbaras, inflexíveis; não conhecem a
moral nem a benevolência.” (Vogt). “A Natureza
não ouve as queixas nem as preces do homem,
antes as repele inexoravelmente em si mesmo.”
(Fuerbach). E até Lutero, o líder da Reforma,
excluiu Deus dos acontecimentos com que lidam os
homens: “Sabemos, por experiências próprias, que
Deus absolutamente não se imiscui, de qualquer
forma, nesta vida terrestre.” (Lutero). (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
C. Como em tais doutrinas é conceituado o homem?
Segundo Broussais, Cabanis, Locke e Condillàc, o
homem é, simplesmente, o conjunto de órgãos em
função. O eu, a personalidade humana, não
é um ser suis generis, é um fato, é um
resultado, é um produto imputável a tal ou qual
disposição da matéria. Inteligência e
sensibilidade são funções do aparelho nervoso. A
existência da alma não é mais que uma hipótese
que não se funda em observação qualquer, que
nenhum raciocínio autoriza, por gratuita e até
mesmo destituída de senso. (Deus na Natureza
– Terceira Parte. A Alma. A Personalidade
Humana.)
Texto para leitura
634. Certo, o homem de gênio quando compõe não
pensa mais em si mesmo, isto é, nos seus
mesquinhos interesses e paixões, na sua pessoa
trivial; pensa no que pensa, ou, por outra, não
seria mais que um eco sonoro e ininteligente, o
que São Paulo admiravelmente qualifica de cymbolum
sonans. Numa palavra: o gênio é, para nós, o
espírito humano no seu melhor estado de saúde e
vigor. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A
Alma. O Cérebro.)
635. Nada obstante, isolados no seu triste
deserto, nossos apaixonados fisiologistas fazem
a noite em torno de si, recusam confessar as
faculdades mais nobres do espírito humano.
Pretendem ser os rigorosos intérpretes da
Ciência, ter em suas mãos o futuro da
inteligência, a olharem desdenhosos os pobres
mortais, cujo peito serve de refúgio derradeiro
à fé no passado e à esperança exilada. Fora do
seu círculo não há mais que trevas, fantásticas
ilusões. Eles têm na mão a lâmpada da salvação,
sem perceberem (ai de nós!) que o fumo negro que
dela se exala perturba a visão e falseia a rota. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O
Cérebro.)
636. Tudo comprimem, à força, para lhe extrair a
essência, e quando chegam a capacitar-se de que
a essência não corresponde ao que esperavam,
declaram que “a essência das coisas não existe
em si mesma e não passa de relações, que
acreditamos apreender nas transformações da
matéria”. Não há outra lei que a da nossa
imaginação, nem mesmo forças, mas simplesmente
propriedades da matéria, qualidades ocultas que,
em lugar de nos fazer evoluir, recuam-nos a
vinte séculos atrás, ao tempo de Arístoto. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O
Cérebro.)
637. Suas conclusões são meramente arbitrárias,
nem a Química nem a Física as demonstram, qual
dão a entender. Não são proposições geométricas
a derivarem necessariamente umas das outras,
como outros tantos corolários sucessivos, mas
enxertos estranhos, arbitrariamente soldados à
árvore da Ciência. Felizmente para nós, eles
também desconhecem as leis da enxertia. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O
Cérebro.)
638. Essas vergônteas natimortas, de uma espécie
exótica, são incapazes de receber a seiva
vivificante, e a árvore em crescimento as
esquece no seu progresso. Dito seja que, também
hoje, elas, essas vergônteas, não oferecem
viabilidade maior que ao tempo de Epicuro e
Lucrécio. A posteridade não terá, jamais, o
trabalho de lhes recolher flores e frutos.
Entretanto, a dar-lhes ouvidos, dir-se-ia
estarem elas tão naturalmente enxertadas na
árvore da Ciência, que se nutrem da sua própria
vida e se alimentam por seus próprios cuidados,
como se uma mãe inteligente pudesse consentir em
derramar a seiva do seu leite nos lábios de
semelhantes parasitas! (Deus na Natureza –
Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)
639. Do ponto de vista histórico, a atitude
magistral que eles tomam, diante dos
representantes da Ciência moderna, é curiosa e
digna de atenção. E fazem sucesso, visto que,
nem todos sendo sábios, há entre eles alguns que
ocupam as primeiras linhas da Ciência e, tendo
publicado sobre a Física obras de valor, as
impõem e induzem a aceitar a falsa metafísica
desses experimentadores.(Deus na Natureza –
Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)
640. Diante do resultado dessas tendências,
diante da materialização absoluta de todas as
coisas, desse pretenso termo último do progresso
científico – o aniquilamento da lei criadora e
da alma humana, a que se reduzem as mais nobres
aspirações da Humanidade com as suas crenças
mais instintivas e suas concepções mais antigas
e mais grandiosas? Que resta das ideias de Deus,
justiça, verdade, bem, moralidade, dever,
inteligência, afeição? Nada, nada mais que
poeira vil. Todos nós, pensadores animados do
ardente desejo de saber, não passamos da
evaporação de um pedaço de graxa fosforada! (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O
Cérebro.)
641. Admiremos os panoramas soberbos da
Natureza, elevemos o pensamento a essas alturas
luminosas e douradas de sol, nas horas
melancólicas da tarde, escutemos as harmonias da
música humana e deixemo-nos embalar pela melodia
dos ventos e dos zéfiros, contemplemos a
imensidade múrmura dos mares, subamos ao cimo
esplendente das montanhas, observemos a marcha
tão bela e tocante da vida planetária em todas
as suas fases, respiremos o perfume das flores,
elevemos o olhar às estrelas radiosas que se
ostentam nos esplendores do azul, ponhamo-nos em
comunicação com a Humanidade e sua história,
respeitemos os gênios ilustres, os sábios que
dominaram a matéria, veneremos os moralistas
perseguidos, os legisladores de povos e
permitamos ainda à amizade reunir corações, ao
amor que palpite em nosso peito, ao patriotismo
e à honra que nos inflamem o verbo, e, nessas
ilusões caducas, não haverá mais que o efeito
químico de uma mistura, ou de uma combinação de
alguns gases. É uma questão de peso e de volume
nos equivalentes do oxigênio, do hidrogênio, do
fósforo, do carbono, que se juntam no alambique
do cérebro em maiores ou menores proporções! (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O
Cérebro.)
642. Virtude, coragem, honra, afeto,
sensibilidade, desejo, esperanças,
discernimento, inteligência, genialidade, tudo
combinações químicas! Saibamo-lo de uma vez por
todas, a vida é tão somente isso. Que o coração
nos paralise, que nossa alma não se preocupe
mais com os bens intelectuais, que o nosso olhar
não mais se eleve aos céus. Para quê? A vida do
espírito nada mais é que um fantasma... Demo-nos
por felizes, com o saber que não passamos de
secreção impalpável e inconsistente de três ou
quatro libras de medula branca ou cinzenta!... (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O
Cérebro.)
643. A Personalidade Humana – Felizmente
para as grandes e respeitáveis verdades de ordem
moral, não estamos reduzidos a curvar a cabeça
diante de tão grosseira conclusão. Como nos dias
decantados pelo célebre autor latino das
Metamorfoses, temos nascido para ficar de pé e
contemplar o céu. Certo, poderíamos invocar aqui
o testemunho imponente dos sentimentos mais
profundos da natureza humana; poderíamos
evidenciar, à luz meridiana, que nestas
doutrinas perniciosas não há mais lugar para a
esperança, moral para a consciência, luz para os
pendores do coração; bondade natural, justiça na
ordem universal, consolação para o aflito, e
mais, que a população do globo não mais tem à
sua frente nenhuma finalidade, nenhuma
claridade, nenhuma lei intelectual. (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
644. Rolando, por aí além, turbilhonante, levada
no espaço obscuro pela rotação e translação
rápidas do globo e renovando-se a cada instante
pelo nascimento e morte de seus membros, ela – a
Humanidade – não passa, à superfície desse
globo, de bolorento parasita cegamente
desabrochado e perpetuado por forças químicas.
Sim, poderíamos, invocando o testemunho dos
corações que ainda pulsam e das almas que ainda
creem, dispor em linha de batalha os argumentos
ainda vivazes da Filosofia e da Psicologia e
derribar o adversário, constrangendo-o a
confessar-se vencido. Todavia, como preferimos
combater no mesmo terreno e com as mesmas armas,
pretendendo refutá-los só em nome da Ciência de
que se dizem intérpretes, apraz-nos permanecer
no campo exclusivamente científico e desdenhar,
qual o fazem eles, os silogismos da Psicologia. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
645. Deixamos, assim, sem resposta as seguintes
proposições adversas e os comentários com que as
esticam:
“As leis da Natureza são forças bárbaras,
inflexíveis; não conhecem a moral nem a
benevolência.” (Vogt).
“A Natureza não ouve as queixas nem as preces do
homem, antes as repele inexoravelmente em si
mesmo.” (Fuerbach).
“Sabemos, por experiências próprias, que Deus
absolutamente não se imiscui, de qualquer forma,
nesta vida terrestre.” (Lutero). (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
646. Aí temos conceitos bem consoladores, não é
assim? Mas, repetimos: o sentimento não é
cabedal científico e por isso não entraremos
nesse capítulo. Esta abstenção não nos impede,
bem entendido, de convidar o leitor a meditar e
decidir para que lado lhe pendem o coração e a
razão. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A
Alma. A Personalidade Humana.)
647. Contudo, apenas do ponto de vista da
observação científica e deixando de lado os
pendores do coração e os imperativos da
consciência – que não deixam de algo ser na
história da alma – dizemos que fatos há, nos
domínios da observação pura, completamente
inexplicáveis na hipótese materialista. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
648. No precedente capítulo, o leitor ainda pode
ficar suspenso entre as duas hipóteses,
porquanto apresentamos fatos mutuamente
oscilantes, que deixam o espírito indeciso
quanto ao centro de gravidade. Agora, porém, o
centro de gravidade vai passar ao corpo das
doutrinas espiritualistas e os que o não
seguirem muito se arriscarão a desequilibrar-se
e a cair, rápido, no mais vazio dos vácuos. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
649. Exporemos, em primeiro lugar, as
afirmativas materialistas contra a existência da
alma e, para não falar só dos estranhos e fazer
ao mesmo tempo o histórico do materialismo em
nosso país, escutemos Broussais, cuja obra foi o
primeiro toque de reunir dos nossos modernos
epicuristas e inaugurou, no século 19, a
primeira fase desse curso pouco luminoso. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
650. Para Broussais, como para Cabanis, Locke e
Condillàc, o homem é, simplesmente, o conjunto
de órgãos em função. O eu, a
personalidade humana não é um ser suis
generis, é um fato[i],
é um resultado, é um produto imputável a tal ou
qual disposição da matéria[ii].
Inteligência e sensibilidade são funções do
aparelho nervoso, mais ou menos como a
transformação dos alimentos é função do aparelho
digestivo[iii].
A existência da alma não é mais que uma hipótese
que se não funda em observação qualquer, que
nenhum raciocínio autoriza, por gratuita e até
mesmo destituída de senso[iv].
Reconhecer no homem mais que um sistema orgânico
é cair nos absurdos da Ontologia[v]. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
651. Cabanis, no seu livro bem conhecido, e
Destutt de Tracy, na sua análise racional das
relações do físico com o moral, emitem as mesmas
opiniões, mas, sob forma menos explícita.
Segundo os exagerados defensores da doutrina da
sensação, a pessoa humana confunde-se nas
funções orgânicas. Na realidade, ela não existe. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
652. Todos os homens, em todos os tempos e por
toda a parte, acreditaram na existência pessoal,
sentiram-se viventes e pensantes; todas as
línguas enunciaram, nas primeiras páginas dos
anais humanos, a existência do pensamento
individual, a alma, a inteligência, o espírito,
não importa sob que nome (poderíamos encher uma
página de nomes primitivos, arianos, sânscritos,
gregos, latinos, celtas, etc., mas uma tal
nomenclatura não se faz necessária e nossos
leitores, certo, sabem da existência desses
vocábulos). (Deus na Natureza – Terceira
Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)
653. O bom senso popular, tanto quanto o gênio
filosófico, espontaneamente acreditaram, desde
que o mundo é mundo e existem seres racionais na
Terra, que existe em nosso corpo algo mais que a
matéria, uma consciência própria, sem a qual não
existiríamos e que se comprova a si mesma, pelo
só fato da certeza íntima. Enfim, todos sentiram
que nem o corpo, nem tampouco o mundo exterior,
constituem a entidade pensante. Entretanto, a
Humanidade do passado, como do presente, parece
que não leva em conta a opinião dos
materialistas. (Deus na Natureza – Terceira
Parte. A Alma. A Personalidade Humana.) (Continua
no próximo número.)
[i] De
l’Irritation et de la Folie, página
153.
[iii]
Idem, Prefácio, 19º.
[iv] Reponse
aux Critiques, página 30.
[v] De
l’Irritation, etc., página 122.