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Amai os vossos inimigos: o perdão como
prova de amor e de caridade
(Parte 1) |
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1. Introdução
Um dos ensinamentos do Cristo
mais conhecidos – mesmo dentre
aqueles que não professam
qualquer crença de matriz cristã
– é o expresso na sintética
sentença "amai os vossos
inimigos", que encontramos tanto
no Evangelho de Mateus (V:44)
quanto no de Lucas (VI:27).
Em que pese muito divulgado e
proclamado com resoluta
sinceridade por diversos
daqueles que se consideram
cristãos, trata-se, igualmente,
de um dos ensinamentos do Mestre
menos compreendido e vivenciado
nos atos cotidianos da vida
corpórea, diante das
dificuldades que ainda
encontramos, como seres em
processo de evolução, em
entender as ofensas que sofremos
e perdoarmos aqueles que nos
atingem.
Essas dificuldades, naturais no
estágio evolutivo atual de nosso
planeta, são em grande parte
explicadas pela incompreensão
ainda existente no ser humano
sobre o verdadeiro significado
do amor e do perdão em Cristo,
verdadeiros fundamentos das Leis
Morais do Progresso e de
Justiça, Amor e Caridade.
Nessa seara, o Espiritismo, por
seu caráter de Evangelho
Redivivo, magistralmente
codificado por Allan Kardec na
forma de ciência, filosofia e
religião, nos traz a luz
necessária para entendermos esse
– e todos os demais – postulados
do Evangelho de Cristo, em
especial por nos mostrar que a
vida é eterna e que reencarnamos
para progredirmos, daí serem os
problemas e perturbações
vivenciados – e seus causadores
–, instrumentos de provas e
expiações que se fazem presentes
em nossas vidas e que nos
possibilitam evoluir, caminhando
em direção a Deus, rumo à
perfeição moral possível, diante
da nossa condição de espírito
eterno.
O que ora se propõe neste
despretensioso trabalho não é
outra coisa senão revisitar os
ensinamentos evangélicos sobre o
amor a ser dedicado aos nossos
inimigos, tendo por baliza a
Doutrina Espírita codificada por
Allan Kardec e o olhar na
realidade hodierna, com toda a
complexidade que caracteriza as
relações humanas, sociais e
políticas na sociedade moderna.
Para tanto, propomos analisar,
primeiramente, o que devemos
entender como “inimigo” nos dias
atuais, ou, em outras palavras,
a quem se deve destinar amor
segundo o mencionado preceito
cristão; ainda, buscaremos a
compreensão necessária a
respeito do sentimento de “amor”
a que se refere o Cristo,
especialmente diante da aparente
incompatibilidade do ato de amar
aquele que nos deseja mal, ou a
quem não nos afeiçoamos,
consciente ou inconscientemente;
e, por fim, pretendemos entender
o perdão como manifestação de
amor e de caridade para com o
próximo, à luz das leis morais
prescritas pelos Espíritos
Superiores e codificadas por
Allan Kardec.
2. O inimigo, o Evangelho e o
Espiritismo
O Codificador, em sua monumental
obra O Evangelho segundo o
Espiritismo (1864), dedicou
um capítulo específico ao
preceito evangélico “amai os
vossos inimigos” (Capítulo XII),
delineando, com sua superior
sabedoria e a partir das linhas
mestras apresentadas pelos
Espíritos Superiores, as lições
que devemos ter em conta sobre o
tema.
Tal capítulo figura como
verdadeiro roteiro a guiar o
pensar e o agir humano em
relação a este mandamento,
iluminando-nos, hoje e sempre,
com preciosas observações que,
se devidamente seguidas, nos
levarão ao caminho do amor e do
perdão caridoso aos nossos
inimigos.
No entanto, parece soar estranho
falarmos em “inimigos” nos dias
atuais. Com efeito, muitas são
as pessoas que, confrontadas com
esse ensinamento evangélico,
respondem, para si mesmas ou em
público, que não possuem
“inimigo”, alguém que entendam
nitidamente como seu adversário,
antagonista, a quem hostilize ou
de quem sofra hostilidade.
Porém, essas mesmas pessoas, não
raro, confessam que guardam
“mágoas” e “desilusões” em
relação a outras, ou têm noção
de que alguém não lhes quer bem,
asseverando que não as odeiam,
mas tampouco lhes dedicam amor,
surgindo a “indiferença” como o
sentimento a marcar a projeção
mental relativamente a elas.
Em uma análise sem maior
profundidade, pode restar a
impressão de que a figura do
“inimigo” a que se referiu Jesus
Cristo, no contexto de sua
época, e Allan Kardec, em sua
obra, pouco tem relação com a
realidade das sociedades
contemporâneas, em especial
daquelas mais civilizadas, em
que se verifica considerável
diminuição da belicosidade nas
relações entre as pessoas, não
obstante a violência e a
perversidade ainda seja uma
realidade muito presente em
diferentes grupos humanos.
Entretanto, é importante lembrar
que, assim como o próprio
Evangelho de Cristo, os
ensinamentos contidos na
doutrina exposta por Kardec
constituem-se universais e
atemporais, válidos, portanto,
em qualquer lugar e a qualquer
tempo, o que nos permite
entendê-los e interpretá-los
consoante a realidade de nossa
época e de nosso meio social.
É verdade que o cenário
político, social e cultural de
hoje, em grande parte do
planeta, é bem diverso daquele
existente à época em que o
Cristo esteve entre nós. Houve
inegável evolução da humanidade
no caminho da construção de
sociedades mais democráticas,
justas e fraternas, muito em
virtude da influência da moral
cristã, mas também de outras
matrizes religiosas, na formação
das diferentes gerações que se
sucederam nos últimos dois mil
anos, mormente no mundo
ocidental.
Não obstante ainda se constate,
com frequência, atos de
violência e barbaridades
próprias de um mundo inferior,
selvagem e primitivo, as
evidências apontam,
verdadeiramente, para o
progresso da humanidade em
diversos aspectos, inclusive no
que toca às questões morais,
encontrando a caridade fraterna,
em nossos tempos, campo fértil,
assentada ou não em alguma fé
religiosa, a exemplo das muitas
e variadas instituições da
sociedade civil organizada que
se dedicam à assistência
benevolente aos desvalidos e
necessitados.
A Doutrina Espírita nos explica
muito bem essa mudança gradativa
verificada em nosso orbe, ao
expor que a Terra não mais ocupa
posição de mundo primitivo, onde
reina a selvageria e a maldade
entre os seres humanos,
encontrando-se na categoria de
mundo de provas e expiações,
caminhando para se tornar um
mundo de regeneração, como nos
ensina Kardec em sua obra.
Assim, no estágio evolutivo em
que vivemos, no qual a maldade e
a perversidade ainda grassam em
nosso orbe, porém, de forma mais
sub-reptícia, camuflada, com
menor incidência de antagonismos
claros e ostensivos, ao menos
nas sociedades mais civilizadas,
o inimigo a que o Cristo se
referia não deve ser entendido
tão somente como o “contrário”,
o “antagonista”, a “encarnação
do mal” em nossas vidas, mas,
igualmente, como todas aquelas
pessoas que, de algum modo,
nutrem por nós, ou que nós
nutrimos por elas, qualquer
nível de antipatia, desde as
mais graves e perigosas até as
mais simples, com as quais nos
deparamos no dia-a-dia e que se
verificam, frequentemente, no
ambiente do trabalho, no âmbito
familiar, nas relações de
vizinhança, no uso das redes
sociais, no trânsito, ou seja,
em qualquer momento de interação
com as demais pessoas em
sociedade.
Nesse sentido, o “inimigo” pode
ser aquele vizinho com o qual
nos antipatizamos, por gostar de
ouvir música em alto volume em
horário inadequado; aquele
colega de trabalho que, não
obstante entendermos ser menos
competente do que nós, foi
promovido por merecimento,
enquanto permanecemos estáticos
na carreira; pode ser aquela(e)
ex-namorada(o) que não
conseguimos mais olhar no rosto,
por fatos ocorridos no passado,
apesar de sabida a necessidade
de conceder-lhe perdão, entre
inúmeras outras situações da
realidade social que enfrentamos
enquanto encarnados no vaso
corpóreo.
A Doutrina Espírita nos
demonstra com clareza que essas
antipatias podem ser angariadas
originalmente na presente
reencarnação ou, também, o que é
muito comum, podem derivar de
vidas passadas, as quais se
fazem ainda presentes justamente
por não as termos resolvido
quando oportuno, restando
inteiramente intactas as
hostilidades do passado ou, dado
o progresso já realizado,
ressurgem como resquícios de
inimizades capitais existentes
em vidas anteriores.
Igualmente, o Espiritismo joga
luz sobre outro fenômeno que
encontra nas inimizades do
passado uma de suas principais
origens: a obsessão levada a
efeito por espíritos sobre
outros, encarnados ou
desencarnados.
O Codificador, no aludido
Capítulo XII de O Evangelho
segundo o Espiritismo,
dedicou especial atenção a essa
forma de inimizade, destacando,
no item "Os inimigos
desencarnados", que se pode ter
inimigos entre os encarnados e
os desencarnados e que os
"inimigos do mundo invisível
manifestam a sua maldade por
meio das obsessões e
subjugações, as quais tantas
pessoas estão expostas, e que
representam algumas das provas
da vida".
É de se ressaltar que a temática
da obsessão conta com vasta
literatura espírita, merecendo
destaque, dentre outras, as
obras de Manoel Philomeno de
Miranda (Espírito), pela
psicografia de Divaldo P.
Franco, que descortinam diversos
exemplos dos efeitos malévolos
da obsessão de espíritos
perversos em face de inimigos
encarnados, encontrando por
móvel propulsor de suas maldades
as desavenças, antipatias ou
mágoas de vidas passadas.
Verifica-se, portanto, que em
nossas diferentes experiências
corpóreas deparamo-nos com
diversas e variadas pessoas que,
por questões do presente ou do
passado, nos levam a sentimentos
variados de antipatia,
inimizade, aversão, mais ou
menos intensos, e é, sem dúvida,
a Misericórdia Divina que nos
possibilita, através das
diversas reencarnações e em
conformidade com o plano
reencarnatório adequado, pelo
exercício do livre arbítrio,
resgatarmos nossas dívidas e
solucionarmos as pendências
ainda existentes, a fim de
progredirmos em nossa marcha de
aperfeiçoamento espiritual.
3. O amor dedicado aos inimigos
O Evangelho do Cristo, em sua
essência, é o Evangelho do Amor.
Sentimento que se constitui como
verdadeira amálgama a unir as
diferentes almas e elas a Deus,
o amor figura como o ponto
fulcral dos ensinamentos de
Jesus, a base da Segunda
Revelação, a qual impulsionou a
humanidade a um novo período em
sua marcha evolutiva.
Por sua importância, são
diversas as passagens
evangélicas que evidenciam o
amor como mandamento divino a
sustentar todo o Cristianismo.
Com efeito, no Evangelho de
João, infere-se que o amor ao
próximo, no dizer do Cristo, é
um mandamento que encontra
padrão no amor dedicado por Ele
próprio aos homens.
Tão elevado padrão pode nos
soar, num primeiro momento, algo
difícil, senão improvável de ser
alcançado no estágio evolutivo
em que nos encontramos, pois,
lembremos, Jesus enfrentou,
encarnado, todas as agruras
terrenas e, com imensos
sofrimentos físicos, sacrificou
sua própria vida corpórea por
amor à humanidade.
Porém, é também certo que o
próprio Cristo, sem embargos de
colocar seu amor ao outro como
modelo a ser seguido, explicitou
o postulado do amor ao próximo
por um parâmetro mais próximo
daquele compreensível pelo homem
de seu tempo – e de qualquer
tempo: "Amarás o teu próximo
como a ti mesmo" (Mateus,
XXII:39).
Allan Kardec, em primorosa
análise realizada sobre esse
mandamento do Mestre, a partir
dos ensinamentos dos Espíritos
Superiores, nos legou valiosa
lição ao elucidar que:
“Amar ao próximo como a si
mesmo, fazer pelos outros o que
queremos que os outros façam por
nós”,
é a expressão mais completa da
caridade, pois ela resume todos
os deveres para com o próximo.
Não se pode ter guia mais
seguro, neste caso, do que
tomando por medida aquilo que
desejamos para nós mesmos. Com
que direito exigiríamos de
nossos semelhantes bons
procedimentos, indulgência,
benevolência e devotamento se
nós mesmos não os temos com
eles? A prática dessas máximas
leva à destruição do egoísmo.
Quando os homens as tomarem por
regra de conduta e por base de
suas instituições, compreenderão
a verdadeira fraternidade e
farão reinar entre si a paz e a
justiça. Não haverá mais nem
ódios nem dissensões, apenas
união, concórdia e benevolência
mútua.
Não se pode esquecer, ainda,
que, nas palavras de Jesus, amar
ao próximo como a si mesmo é o
segundo mandamento, semelhante
ao primeiro e o maior: "Amarás o
Senhor teu Deus de todo o teu
coração, e de toda a tua alma, e
de todo o teu pensamento"
(Mateus, XXII:37).
Assim, podemos dizer, com
acerto, que é o amor – a Deus
(Lei de Adoração) e ao próximo
(Lei de Justiça, Amor e
Caridade) – a Lei Maior da
Doutrina do Cristo, a que resume
todos os demais mandamentos e as
obrigações dos homens diante de
Deus e entre si próprios.
Porém, e não obstante clara e
límpida a origem divina desses
mandamentos, parece-nos
legítimo, mesmo ao cristão de
boa-fé e convicto da força das
palavras do Cristo, no encontro
íntimo com sua consciência,
perguntar-se: como dedicar amor
àquele que nos fez mal? Como é
possível esquecer as ofensas
sofridas de nossos inimigos,
como se elas nunca tivessem
ocorrido? Como, à luz da Lei
Divina da Conservação, amar
nossos inimigos, sabendo que
eles podem nos ofender novamente
e até mesmo colocar nossa vida
em risco? É possível aprender a
amar aqueles de quem não temos
simpatia?
Esses e outros tantos
questionamentos semelhantes
surgem e desafiam, ainda hoje, o
pensamento humano, mesmo
daquelas pessoas mais fiéis aos
ensinamentos de Jesus. Da mesma
forma, o espírita não está a
salvo de tais indagações, nem de
dúvidas e angústias sobre o
correto proceder nos atos da
vida, e talvez as tenha até mais
que outros que professam crenças
religiosas distintas ou que não
se importam com questões de
natureza espiritual, dado o
caráter científico que o
Espiritismo estimula que venha a
ser empregado por aquele que se
dedica ao estudo de sua
doutrina, fundada na fé
raciocinada.
Para além do Evangelho do
Cristo, que constitui a Segunda
Revelação das Leis de Deus à
humanidade, os espíritas
encontram nas obras de Allan
Kardec – expressão máxima da
Terceira Revelação – fontes
seguras e sólidas a afiançar-lhe
o conhecimento e o consolo, sem
olvidar de outras tantas obras
complementares, e fiéis, à
Doutrina Espírita, trazidas a
nós por Espíritos Superiores
através da mediunidade de
verdadeiros missionários do Bem
e do Amor, a exemplo de
Francisco Cândido Xavier,
Divaldo P. Franco, Ivonne do
Amaral Pereira, dentre outros.
(Este artigo será
concluído na próxima edição.)