Especial

por Tiago Antonio Salvador

Amai os vossos inimigos: o perdão como prova de amor e de caridade (Parte 1)

1. Introdução

Um dos ensinamentos do Cristo mais conhecidos – mesmo dentre aqueles que não professam qualquer crença de matriz cristã – é o expresso na sintética sentença "amai os vossos inimigos", que encontramos tanto no Evangelho de Mateus (V:44)[1] quanto no de Lucas (VI:27)[2].

Em que pese muito divulgado e proclamado com resoluta sinceridade por diversos daqueles que se consideram cristãos, trata-se, igualmente, de um dos ensinamentos do Mestre menos compreendido e vivenciado nos atos cotidianos da vida corpórea, diante das dificuldades que ainda encontramos, como seres em processo de evolução, em entender as ofensas que sofremos e perdoarmos aqueles que nos atingem.

Essas dificuldades, naturais no estágio evolutivo atual de nosso planeta, são em grande parte explicadas pela incompreensão ainda existente no ser humano sobre o verdadeiro significado do amor e do perdão em Cristo, verdadeiros fundamentos das Leis Morais do Progresso e de Justiça, Amor e Caridade.

Nessa seara, o Espiritismo, por seu caráter de Evangelho Redivivo, magistralmente codificado por Allan Kardec na forma de ciência, filosofia e religião, nos traz a luz necessária para entendermos esse – e todos os demais – postulados do Evangelho de Cristo, em especial por nos mostrar que a vida é eterna e que reencarnamos para progredirmos, daí serem os problemas e perturbações vivenciados – e seus causadores –, instrumentos de provas e expiações que se fazem presentes em nossas vidas e que nos possibilitam evoluir, caminhando em direção a Deus, rumo à perfeição moral possível, diante da nossa condição de espírito eterno. 

O que ora se propõe neste despretensioso trabalho não é outra coisa senão revisitar os ensinamentos evangélicos sobre o amor a ser dedicado aos nossos inimigos, tendo por baliza a Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec e o olhar na realidade hodierna, com toda a complexidade que caracteriza as relações humanas, sociais e políticas na sociedade moderna.

Para tanto, propomos analisar, primeiramente, o que devemos entender como “inimigo” nos dias atuais, ou, em outras palavras, a quem se deve destinar amor segundo o mencionado preceito cristão; ainda, buscaremos a compreensão necessária a respeito do sentimento de “amor” a que se refere o Cristo, especialmente diante da aparente incompatibilidade do ato de amar aquele que nos deseja mal, ou a quem não nos afeiçoamos, consciente ou inconscientemente; e, por fim, pretendemos entender o perdão como manifestação de amor e de caridade para com o próximo, à luz das leis morais prescritas pelos Espíritos Superiores e codificadas por Allan Kardec. 

2. O inimigo, o Evangelho e o Espiritismo 

O Codificador, em sua monumental obra O Evangelho segundo o Espiritismo (1864), dedicou um capítulo específico ao preceito evangélico “amai os vossos inimigos” (Capítulo XII), delineando, com sua superior sabedoria e a partir das linhas mestras apresentadas pelos Espíritos Superiores, as lições que devemos ter em conta sobre o tema.

Tal capítulo figura como verdadeiro roteiro a guiar o pensar e o agir humano em relação a este mandamento, iluminando-nos, hoje e sempre, com preciosas observações que, se devidamente seguidas, nos levarão ao caminho do amor e do perdão caridoso aos nossos inimigos.

No entanto, parece soar estranho falarmos em “inimigos” nos dias atuais. Com efeito, muitas são as pessoas que, confrontadas com esse ensinamento evangélico, respondem, para si mesmas ou em público, que não possuem “inimigo”, alguém que entendam nitidamente como seu adversário, antagonista, a quem hostilize ou de quem sofra hostilidade. Porém, essas mesmas pessoas, não raro, confessam que guardam “mágoas” e “desilusões” em relação a outras, ou têm noção de que alguém não lhes quer bem, asseverando que não as odeiam, mas tampouco lhes dedicam amor, surgindo a “indiferença” como o sentimento a marcar a projeção mental relativamente a elas.

Em uma análise sem maior profundidade, pode restar a impressão de que a figura do “inimigo” a que se referiu Jesus Cristo, no contexto de sua época, e Allan Kardec, em sua obra, pouco tem relação com a realidade das sociedades contemporâneas, em especial daquelas mais civilizadas, em que se verifica considerável diminuição da belicosidade nas relações entre as pessoas, não obstante a violência e a perversidade ainda seja uma realidade muito presente em diferentes grupos humanos.  

Entretanto, é importante lembrar que, assim como o próprio Evangelho de Cristo, os ensinamentos contidos na doutrina exposta por Kardec constituem-se universais e atemporais, válidos, portanto, em qualquer lugar e a qualquer tempo, o que nos permite entendê-los e interpretá-los consoante a realidade de nossa época e de nosso meio social. 

É verdade que o cenário político, social e cultural de hoje, em grande parte do planeta, é bem diverso daquele existente à época em que o Cristo esteve entre nós. Houve inegável evolução da humanidade no caminho da construção de sociedades mais democráticas, justas e fraternas, muito em virtude da influência da moral cristã, mas também de outras matrizes religiosas, na formação das diferentes gerações que se sucederam nos últimos dois mil anos, mormente no mundo ocidental.

Não obstante ainda se constate, com frequência, atos de violência e barbaridades próprias de um mundo inferior, selvagem e primitivo, as evidências apontam, verdadeiramente, para o progresso da humanidade em diversos aspectos, inclusive no que toca às questões morais, encontrando a caridade fraterna, em nossos tempos, campo fértil, assentada ou não em alguma fé religiosa, a exemplo das muitas e variadas instituições da sociedade civil organizada que se dedicam à assistência benevolente aos desvalidos e necessitados.

A Doutrina Espírita nos explica muito bem essa mudança gradativa verificada em nosso orbe, ao expor que a Terra não mais ocupa posição de mundo primitivo, onde reina a selvageria e a maldade entre os seres humanos, encontrando-se na categoria de mundo de provas e expiações, caminhando para se tornar um mundo de regeneração, como nos ensina Kardec em sua obra[3].

Assim, no estágio evolutivo em que vivemos, no qual a maldade e a perversidade ainda grassam em nosso orbe, porém, de forma mais sub-reptícia, camuflada, com menor incidência de antagonismos claros e ostensivos, ao menos nas sociedades mais civilizadas, o inimigo a que o Cristo se referia não deve ser entendido tão somente como o “contrário”, o “antagonista”, a “encarnação do mal” em nossas vidas, mas, igualmente, como todas aquelas pessoas que, de algum modo, nutrem por nós, ou que nós nutrimos por elas, qualquer nível de antipatia, desde as mais graves e perigosas até as mais simples, com as quais nos deparamos no dia-a-dia e que se verificam, frequentemente, no ambiente do trabalho, no âmbito familiar, nas relações de vizinhança, no uso das redes sociais, no trânsito, ou seja, em qualquer momento de interação com as demais pessoas em sociedade.

Nesse sentido, o “inimigo” pode ser aquele vizinho com o qual nos antipatizamos, por gostar de ouvir música em alto volume em horário inadequado; aquele colega de trabalho que, não obstante entendermos ser menos competente do que nós, foi promovido por merecimento, enquanto permanecemos estáticos na carreira; pode ser aquela(e) ex-namorada(o) que não conseguimos mais olhar no rosto, por fatos ocorridos no passado, apesar de sabida a necessidade de conceder-lhe perdão, entre inúmeras outras situações da realidade social que enfrentamos enquanto encarnados no vaso corpóreo.

A Doutrina Espírita nos demonstra com clareza que essas antipatias podem ser angariadas originalmente na presente reencarnação ou, também, o que é muito comum, podem derivar de vidas passadas, as quais se fazem ainda presentes justamente por não as termos resolvido quando oportuno, restando inteiramente intactas as hostilidades do passado ou, dado o progresso já realizado, ressurgem como resquícios de inimizades capitais existentes em vidas anteriores.

Igualmente, o Espiritismo joga luz sobre outro fenômeno que encontra nas inimizades do passado uma de suas principais origens: a obsessão levada a efeito por espíritos sobre outros, encarnados ou desencarnados.

O Codificador, no aludido Capítulo XII de O Evangelho segundo o Espiritismo, dedicou especial atenção a essa forma de inimizade, destacando, no item "Os inimigos desencarnados", que se pode ter inimigos entre os encarnados e os desencarnados e que os "inimigos do mundo invisível manifestam a sua maldade por meio das obsessões e subjugações, as quais tantas pessoas estão expostas, e que representam algumas das provas da vida"[4]

É de se ressaltar que a temática da obsessão conta com vasta literatura espírita, merecendo destaque, dentre outras, as obras de Manoel Philomeno de Miranda (Espírito), pela psicografia de Divaldo P. Franco, que descortinam diversos exemplos dos efeitos malévolos da obsessão de espíritos perversos em face de inimigos encarnados, encontrando por móvel propulsor de suas maldades as desavenças, antipatias ou mágoas de vidas passadas.

Verifica-se, portanto, que em nossas diferentes experiências corpóreas deparamo-nos com diversas e variadas pessoas que, por questões do presente ou do passado, nos levam a sentimentos variados de antipatia, inimizade, aversão, mais ou menos intensos, e é, sem dúvida, a Misericórdia Divina que nos possibilita, através das diversas reencarnações e em conformidade com o plano reencarnatório adequado, pelo exercício do livre arbítrio, resgatarmos nossas dívidas e solucionarmos as pendências ainda existentes, a fim de progredirmos em nossa marcha de aperfeiçoamento espiritual. 

3. O amor dedicado aos inimigos

O Evangelho do Cristo, em sua essência, é o Evangelho do Amor. Sentimento que se constitui como verdadeira amálgama a unir as diferentes almas e elas a Deus, o amor figura como o ponto fulcral dos ensinamentos de Jesus, a base da Segunda Revelação, a qual impulsionou a humanidade a um novo período em sua marcha evolutiva.

Por sua importância, são diversas as passagens evangélicas que evidenciam o amor como mandamento divino a sustentar todo o Cristianismo.

Com efeito, no Evangelho de João, infere-se que o amor ao próximo, no dizer do Cristo, é um mandamento que encontra padrão no amor dedicado por Ele próprio aos homens[5]. Tão elevado padrão pode nos soar, num primeiro momento, algo difícil, senão improvável de ser alcançado no estágio evolutivo em que nos encontramos, pois, lembremos, Jesus enfrentou, encarnado, todas as agruras terrenas e, com imensos sofrimentos físicos, sacrificou sua própria vida corpórea por amor à humanidade.

Porém, é também certo que o próprio Cristo, sem embargos de colocar seu amor ao outro como modelo a ser seguido, explicitou o postulado do amor ao próximo por um parâmetro mais próximo daquele compreensível pelo homem de seu tempo – e de qualquer tempo: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Mateus, XXII:39).

Allan Kardec, em primorosa análise realizada sobre esse mandamento do Mestre, a partir dos ensinamentos dos Espíritos Superiores, nos legou valiosa lição ao elucidar que: 

“Amar ao próximo como a si mesmo, fazer pelos outros o que queremos que os outros façam por nós”, é a expressão mais completa da caridade, pois ela resume todos os deveres para com o próximo. Não se pode ter guia mais seguro, neste caso, do que tomando por medida aquilo que desejamos para nós mesmos. Com que direito exigiríamos de nossos semelhantes bons procedimentos, indulgência, benevolência e devotamento se nós mesmos não os temos com eles? A prática dessas máximas leva à destruição do egoísmo. Quando os homens as tomarem por regra de conduta e por base de suas instituições, compreenderão a verdadeira fraternidade e farão reinar entre si a paz e a justiça. Não haverá mais nem ódios nem dissensões, apenas união, concórdia e benevolência mútua.[6]  

Não se pode esquecer, ainda, que, nas palavras de Jesus, amar ao próximo como a si mesmo é o segundo mandamento, semelhante ao primeiro e o maior: "Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento" (Mateus, XXII:37).

Assim, podemos dizer, com acerto, que é o amor – a Deus (Lei de Adoração) e ao próximo (Lei de Justiça, Amor e Caridade) – a Lei Maior da Doutrina do Cristo, a que resume todos os demais mandamentos e as obrigações dos homens diante de Deus e entre si próprios.

Porém, e não obstante clara e límpida a origem divina desses mandamentos, parece-nos legítimo, mesmo ao cristão de boa-fé e convicto da força das palavras do Cristo, no encontro íntimo com sua consciência, perguntar-se: como dedicar amor àquele que nos fez mal? Como é possível esquecer as ofensas sofridas de nossos inimigos, como se elas nunca tivessem ocorrido? Como, à luz da Lei Divina da Conservação, amar nossos inimigos, sabendo que eles podem nos ofender novamente e até mesmo colocar nossa vida em risco? É possível aprender a amar aqueles de quem não temos simpatia?

Esses e outros tantos questionamentos semelhantes surgem e desafiam, ainda hoje, o pensamento humano, mesmo daquelas pessoas mais fiéis aos ensinamentos de Jesus. Da mesma forma, o espírita não está a salvo de tais indagações, nem de dúvidas e angústias sobre o correto proceder nos atos da vida, e talvez as tenha até mais que outros que professam crenças religiosas distintas ou que não se importam com questões de natureza espiritual, dado o caráter científico que o Espiritismo estimula que venha a ser empregado por aquele que se dedica ao estudo de sua doutrina, fundada na fé raciocinada.

Para além do Evangelho do Cristo, que constitui a Segunda Revelação das Leis de Deus à humanidade, os espíritas encontram nas obras de Allan Kardec – expressão máxima da Terceira Revelação – fontes seguras e sólidas a afiançar-lhe o conhecimento e o consolo, sem olvidar de outras tantas obras complementares, e fiéis, à Doutrina Espírita, trazidas a nós por Espíritos Superiores através da mediunidade de verdadeiros missionários do Bem e do Amor, a exemplo de Francisco Cândido Xavier, Divaldo P. Franco, Ivonne do Amaral Pereira, dentre outros. (Este artigo será concluído na próxima edição.)

 
 

O autor é Delegado de Polícia no Estado de São Paulo. Professor da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”. Professor do Centro Universitário Anhanguera São Paulo – Campos Vila Mariana. Professor em cursos preparatórios para concursos públicos. Pós-graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal. Aluno do curso de Doutrina Espírita do Centro Espírita Nosso Lar Casas André Luiz.

 

[1]Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus;
[2] Mas a vós, que isto ouvis, digo: Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam;
[3] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Tradução Karine Rutpaulis. 6. ed. São Paulo: Mundo Maior Editora, 2012, p. 54.
[4] Ibidem, p. 166.
[5] “O meu mandamento é este: Que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei.”  (João 15:12).
[6] Ibidem, p. 152.

 

  

     
     

O Consolador
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