Religião: graxa e areia
Escrevo estas linhas em resposta a uma provocação amiga
nas redes sociais, e que tratava dos sentidos da
interpretação dados pelas religiões, na qual de cima
para baixo adaptamos nossas crenças ao que é posto por
estas, mas estas também fazem seus ajustes para atender
às demandas do seus rebanhos, em tentativas de
comunicação e entendimento mútuo, dado que a verdade
sempre tem um componente de subjetividade.
Esse interpretar típico das religiões, e digo todas,
segue lógicas de acomodação, de jogos de poder, de
porta-vozes, de consensos e dissensos, de ajustes e de
endossos, na qual na nossa seara, em especial, vemos por
vezes “visões espíritas” de temas na qual não se teria,
em tese, necessidade dessa abordagem, ou ainda, se faz
essa interpretação mediante pressupostos estranhos aos
princípios da doutrina, na busca de encaixar um viés, ou
de endossar algo, em meias verdades que se arvoram a
título de revelações.
Essas interpretações e as suas imposições alimentam
deturpações do espírito originário de determinadas
abordagens do sagrado. Martinho Lutero, indignado,
indicou na Europa pós-medieval que cada um devesse
buscar a fonte de conhecimento direto no texto bíblico,
como
fonte confiável de conhecimento da verdade revelada por
Deus, na busca de contornar essas interpretações, ainda
que daí tenham surgido um sem-número dessas que são
estranhas ao espírito do carpinteiro que vivia
acompanhado de pobres do ouro. No Espiritismo também
temos nossos consensos eivados de polêmicas.
Além de deturpações, essa luta hermenêutica das
religiões, e de subgrupos nestas, pelo monopólio de
interpretações, termina por ser fonte e palco de
conflitos, alguns até armados. Muitas dessas
interpretações são espelho de divergências latentes, de
interesses econômicos e de questões interiores mal
trabalhadas, que encontram no campo da fé terreno forte
para a luta, na busca de encontrar um aval lastreado no
divino, na revelação e na verdade absoluta, como
mandamento inquestionável.
Nesse contexto, a religião deixa de ser a graxa que
facilitaria a nossa romagem terrestre, para ser a areia
que emperra as nossas ações. Passa a ser motivo de
discórdia, de disputas, e deixa de lado o ideal
universal de um homem melhor, de um mundo melhor, preso
a questões menores, que são pequenas, mas que tem por
trás de si profundas divergências ancoradas nos
preconceitos, nos desejos de poder, nas motivações
pessoais.
Esse uso torto da religião como manifestação humana nos
aponta que precisamos de uma religião que seja
libertadora, emancipadora, e que nos seja útil como
instrumento evolutivo. Isso não quer dizer uma fé cega,
que não admita questionamentos, e que se impõe consensos
a torto e a direito. Isso implica uma fé viva, que se
aperfeiçoe pelo estudo e pela reflexão, na qual cada um
encontre suas verdades, convergências e divergências.
Mais princípios, menos normas. Mais diálogo, menos
patrulha.
Em tempo de divergências ideológicas profundas, de
debates inflamados e de tertúlias agressivas em torno de
diversos pontos, em especial nas redes sociais,
inclusive no que tange à religião, pensamos que essa,
que tem na sua raiz a nossa relação com o sagrado, o
trato da nossa espiritualidade, quando se converte em
arma de dor e opressão, afasta qualquer Deus de sua
essência.
Guerras, crimes, intolerância motivadas pela fé... é um
contrassenso que pensamos enterrados anteriormente nas
cruzadas e na inquisição, mas que ainda são temas de
periódicos, de conversas, na qual demonstramos que,
agindo assim, não entendemos a mensagem de religião
nenhuma, e que temos nessa mais um instrumento de
atraso, fator que talvez leve a existir tantos que se
professam ateus, decepcionados com modelos que andam por
aí.
Se interpretações da letra para a realidade são fonte de
luta pelo poder, façamos então a interpretação da
realidade para a letra. Busquemos em nossa religião,
qualquer que seja, que ela dê conta de nossos anseios
espirituais, que nos console e liberte, que nos permita
ser melhores a cada dia. Correntes, que sejam apenas a
da fraternidade. Imposições, que sejam apenas do amor ao
nosso irmão.
Por uma religião que facilite a nossa evolução. Que não
nos atrapalhe. Essa é a reforma necessária, para que
esta forma de expressão humana não seja palco do inverso
do que ela em essência representaria. Para que seja um
diálogo com uma divindade, justa e bondosa, que nos tem
como filhos e que nos pede, acima de qualquer rito ou
disciplina, que nos amemos uns aos outros.
|