Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis


Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 39)


Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de 1867.


Questões preliminares


A. Na declaração feita por fisiologistas adeptos da tese materialista, qual é o significado do vocábulo alma?

Para os materialistas mencionados, o vocábulo alma, considerado anatomicamente, exprime o conjunto das funções cerebrais e da medula espinhal, e, fisiologicamente, o conjunto das funções da sensibilidade encefálica. A análise não encontra na consciência, neste augusto instinto, nesta Voz imortal, mais que um simples mecanismo, que se desmonta como qualquer aparelho. Resumindo: alma é para eles apenas um conceito, não uma realidade, diferentemente do que propõem os espiritualistas. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

B. Para os materialistas citados, a criatura humana não tem consciência de que existe?

Muitos pensam assim. Todavia, não são todos os materialistas que afirmam que a criatura humana não tem consciência de que existe. Büchner, diz Flammarion, não chega a tanto. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

C. O que faz a grandeza das nações: as leis, os governos ou as instituições?

Nem as instituições, nem as leis, nem os governos, mas o valor e a conduta dos cidadãos é que fazem a grandeza das nações. É, pois, da individualidade dos homens que depende o progresso dos povos, e não de suas condições gerais. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)


Texto para leitura


709. Certo, não sabemos o que mais admirar: se a audácia, se o erro destes fisiologistas, levando-nos à borda do abismo e dizendo-nos: saltai! De fato, quem não se admirará de saber que, como conclusão de fatos mais ou menos incompletos, quais os precedentes, apresentem-nos a seguinte e enfática declaração:

– Observações numerosas e experiências feitas em grande escala, provam que o homem deve, em parte, a sua privilegiada situação, em relação aos animais, à faculdade de se alimentar ora de vegetais, ora de carne[i].

- A matéria é a base de toda a força espiritual, de toda a grandeza humana e terrestre[ii].

- O vocábulo alma, considerado anatomicamente, exprime o conjunto das funções cerebrais e da medula espinhal, e, fisiologicamente, o conjunto das funções da sensibilidade encefálica[iii].

- A análise não encontra na consciência, neste augusto instinto, nesta Voz imortal, mais que um simples mecanismo, que se desmonta como qualquer aparelho[iv].  (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

710. A estas afirmações não falta ousadia. Mas, depois das declarações negativas por nós registradas no capítulo anterior, de nada mais nos podemos admirar. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

711. Se é verdade que os temperos auxiliam a digestão - diz Moleschott – e o pão de rala, as frutas (especialmente figos) ingeridos em jejum e regados com um copo d'água fria desenvolvem o ventre; se os rabanetes, o alho, a baunilha, estimulam o sensualismo, e se o vinho o chá e o café atuam sobre o cérebro claro está que a matéria governa o homem. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

712. Sobre isso, não tínhamos dúvidas. Sabeis o que é preciso para adquirir eloquência? É não comer nozes nem amêndoas. E como a voz e a palavra dependem, ao que parece, dos movimentos musculares da laringe, é preferível o regime vegetal ao gorduroso. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

713. Quereis uma prova da correlatividade essencial de pensamento e matéria? Olhai o fundo da vossa xícara de café. Este, tal como o barco a vapor e o telégrafo, põe em atividade uma série de pensamentos, origina uma corrente de ideias, de empreendimentos com ele. É evidente que a necessidade oriunda de uma afinidade eletiva da Humanidade pelo café e pelo chá tornou-se mais imperiosa e generalizada, à proporção que aumentaram as exigências intelectuais da civilização. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

714. Eis ainda um outro fato de importância capital. Os Kamstchadales e os Tongouses embriagam-se com o seu aguoric vermelho e parece que os servos, desejosos de conhecerem a sensação dessa bebida, não trepidam em beber a urina dos seus amos. Logo, portanto, é a matéria que governa o homem – conclui espirituosamente o Sr. Moleschott. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

715. Num tal sistema, qual já o temos entrevisto, é claro que o livre-arbítrio fica completamente aniquilado. O próprio Moleschott o declara. Não somente o ar que a cada momento respiramos transforma o sangue venoso em arterial; não só transmuda os músculos em creatina e creatinina; o músculo do coração em hipoxantina; o tecido do baço em hipoxantina e ácido úrico; o humor vítreo dos olhos em ureia, como refunde a todo instante a composição do cérebro e dos nervos. O mesmo ar que respiramos muda diariamente, não é nas matas o que é nas cidades, não é sobre os mares o que é no cimo das montanhas, nem ao nível das ruas o que é no alto de uma torre. Alimentação, nascimento, educação, convivência, tudo, em torno de nós, rola num movimento que se comunica constantemente. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

716. Proposições estas, se verdadeiras, provariam que o homem está envolvido no âmago de um mundo a cujas influências não pode eximir-se, e provariam também, quem sabe, que o livre-arbítrio não é tão absoluto quanto afirmam alguns psicólogos entusiastas. Mas, o que essas verdades não provam é a inexistência da vontade humana. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

717. Não são todos os materialistas que levam sua excentricidade ao ponto de afirmar que a criatura humana não tenha consciência de que existe, para que deixe de ter a liberdade de seus próprios atos e resoluções. Büchner é menos exagerado. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

718. Dizemos, com ele, que o homem é obra da Natureza; que a sua pessoa, ações, pensamento e mesmo vontade estão submetidos às leis que regem o Universo. As ações e a conduta do indivíduo dependem, incontestavelmente, da sua educação, do caráter, dos costumes, da índole do povo e da nação a que pertence e esta nação é, por sua vez, e de certo modo, o produto do ambiente em que vive e das relações exteriores que lhe entretiveram o desenvolvimento. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

719. Pode-se por exemplo notar, com Deser, que o tipo americano se desenvolveu com os primeiros colonos ingleses há dois e meio séculos. É um resultado que se pode atribuir a influências climáticas. O tipo americano distingue-se pela sua compleição, pelo pescoço alto, pelo temperamento dinâmico e ardoroso. O pouco desenvolvimento do sistema glandular, que dá às americanas essa expressão terna e vaporosa; a espessura, o comprimento e a secura do cabelo podem provir da secura do ar. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

720. Há quem suponha ter notado que a agitação dos americanos aumenta com os ventos do Nordeste. Desses fatos se infere que o grandioso e rápido progresso dos Estados Unidos seria, em parte, devido ao meio físico. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

721. Tal como na América, os ingleses originaram um novo tipo na Austrália, notadamente em a Nova-Gales do Sul. Aí, os homens são altos, magros, musculosos, e as mulheres belíssimas, mas, de uma beleza efêmera. Os “novos colonos” dão-lhes o apelido de Cornstalks (palha de trigo). (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

722. O caráter inglês ressente-se do firmamento nebuloso, do ar pesado, dos estreitos limites da terra natal. O italiano, pelo contrário, reflete em tudo o céu sempre belo e o Sol sempre ardente da sua pátria. (E, contudo, os romanos muito têm mudado de 2.000 anos a esta parte.) (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

723. As ideias e contos fantásticos do Oriente estão intimamente ligados à luxuriante vegetação que lhes moldura o berço. A zona glacial não produz mais que raquíticos arbustos e, assim também, uma raça mofina, nada ou pouco acessível ao progresso. Os habitantes da zona tórrida também pouco se adaptam a uma cultura superior. Só nos países onde o clima, o solo e as relações ambientes oferecem um certo meio-termo pode o homem equilibrar-se e adquirir um grau de cultura preponderante sobre os seres e as coisas que a rodeiam. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

724. Todas estas observações não provam, porém, que a matéria governe o homem e que a vontade e a individualidade sejam uma ilusão. Cumpre, mesmo, advertir ao autor de Força e Matéria que, antes, são os indivíduos que fazem as nações e não estas os indivíduos. Qual o dizia Stuart Mili, o mérito de um Estado está, em tese, no dos indivíduos que o compõem. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

725. Não são as instituições, nem as leis, nem os governos que fazem a grandeza das nações, mas o valor e a conduta dos cidadãos. É, pois, da individualidade dos homens que depende o progresso dos povos, e não de suas condições gerais. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

726. Em vão se dirá que esta individualidade mais não é que o resultado preciso das disposições do corpo: – educação, instrução, exemplo, fortuna, posição social, sexo, nacionalidade, clima, solo, época etc. No ser humano existe uma força transcendente a tudo isso, uma força que os negativistas não querem ver e procuram ocultar no nevoeiro de sua paralogia. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

727. Assim como a planta – dizem eles – depende do terreno em que radica, não somente em relação à sua existência, mas ainda ao seu tamanho, forma e beleza; assim também o animal é grande ou pequeno, manso ou bravo, bonito ou feio, conforme as influências extrínsecas, assim também o homem físico e intelectual é o fruto dos mesmos fatores, dos mesmos acidentes e disposições, e nunca o ser espiritual, independente e livre, que os moralistas nos pintam. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

728. Esses senhores protestam quando lhes chamamos espirituais, e nós persistimos na amabilidade. Mas, sem constituir uma exceção a seu favor, temos o direito de sustentar a espiritualidade humana e apagar, com o exemplo de grandes vontades, essa teoria crepuscular, que conceitua as resoluções do homem uma função barométrica. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

729. É preciso fechar voluntariamente os olhos aos eventos mais belos e respeitáveis da História, preferir tristes abstrações a verdades gloriosas, sacrificar venerandos monumentos do pensamento à quimera de uma ideia fixa, para ousar assim negar o poder da vontade, o valor de sua energia, a independência de sua resolução, os milagres mesmos de sua persistência, e substituí-lo por uma sombra difusa e vaga, dependente dum sol teatral. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

730. Na verdade, não vemos a vantagem desta substituição. É desconhecer a grandeza do homem o afirmar que os seus atos não passam de resultado necessário e fatalístico dos seus pendores físicos, tendências orgânicas e propensões materiais. É degradar-lhe a dignidade abaixo do nível da mediania intelectual e é colocar-se em contradição com os exemplos mais brilhantes que constelam a fronte da Humanidade por coroá-la de glória imperecível. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

731. Abordemos, em todas as suas fases, os anais da Humanidade; consultemos, sobretudo, as páginas do nosso século, já tão engrandecido de invenções fecundas e entrevistas possibilidades; logo nos convenceremos de que o gênio não é simplesmente resultante de condições materiais e muito menos de uma enfermidade nervosa, senão que se afirma por uma força superior a todas as contingências e que muitas vezes o tem dominado guiado e vencido. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

732. Longe de encarar o homem como um ser inerte, cujas obras não passassem de efeitos instintivos, de hábitos, necessidades apetites e predisposições orgânicas, nós proclamamos, com a autoridade dos fatos, que a inteligência governa a matéria e que o valor do homem consiste, precisamente, nessa elevação, nessa soberania da inteligência. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

733. Para ilustrar o asserto e invalidar, exemplificando, a audaciosa afirmativa desses campeões da matéria, lancemos um olhar ao panorama intelectual da Humanidade, e a todos quantos sentem pulsar-lhe no peito um coração patriótico apresentemos-lhes o quadro tão grato aos nossos sentimentos, tão útil às nossas vistas e tão imponente às nossas aspirações, desses homens enérgicos saídos das mais ínfimas camadas sociais, para elevarem-se, pelo próprio esforço, à conquista do mundo e às culminâncias do pensamento soberano. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)


 

[i]     Cireulation de la Vie, 2º, 69.

[ii]    Force et Matière, capítulo 5º.

[iii]   Dictionnaire des Sciences Médicales.

[iv]   Taine – Philosophes Français.


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita