Origem e
queda do patriarcalismo
A triste sorte das
mulheres começa lá na longínqua gênese moisaica
“Vigiando e orando, teremos sempre presente no Espírito
a grandeza da nossa insignificância e a insignificância
de nossa grandeza.” -
Hermínio C. Miranda
Os Espíritos Superiores nos lembram
que em certos países como na Índia, por exemplo, as
mulheres se queimavam “voluntariamente” sobre os
corpos mortos dos maridos, obedecendo a um preconceito
machista, julgando com isso cumprir um dever. Tal é o
resultado da nulidade e da ignorância com que se veem a
braços.
A triste sorte das
mulheres começa lá na longínqua gênese moisaica, onde
lemos no versículo dezesseis:
“afligir-te-ei com muitos
males durante a tua gravidez; parirás com dor; estarás
sob a dominação de teu marido e ele te dominará”.
Herculano Pires nos leva, através de um périplo
histórico, a um ponto de perspectiva de onde podemos
observar o nascimento e o declínio da injusta opressão
exercida pelo homem sobre a mulher, da qual ainda restam
alguns trágicos remanescentes, haja vista a situação
aflitiva e dramática das afegãs e de outras que vivem no
continente africano, em pleno alvorecer do terceiro
milênio.
Já se vão longe os tempos em que os concílios da Igreja
tinham em sua pauta a incrível questão: “as mulheres
têm alma?” E não podemos nos esquecer daquela pobre
francesa guilhotinada pela audácia de postular a
paridade dos direitos entre o homem e a mulher. As
raízes do patriarcado, portanto, se perdem na noite dos
tempos a começar com o mitológico quadro de Adão e Eva
no Paraíso.
Acompanhemos Herculano Pires nessa viagem histórica:
“todos conhecemos a alegoria bíblica da formação do
homem, mas nem todos sabemos que, para muita gente, essa
alegoria representa uma verdade incontestável, uma
realidade. Diz a tradução de Almeida, no cap. II do
Gênesis, versículo 7:
“e formou o Senhor Deus o
homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego
da vida: e o homem foi feito alma vivente”.
Na tradução de Figueiredo “o pó da terra” é
substituído pelo “barro da terra”. De qualquer
maneira, o fato essencial é o mesmo em todas as versões
bíblicas, ou seja: Deus formou o homem da terra e
assoprou-lhe a vida nas narinas.
O Espiritismo não pode
admitir que essa alegoria, aliás, muito bela e
expressiva, seja tomada ao pé da letra. Kardec admite,
em “O Livro dos Espíritos”, que Adão tenha
realmente existido, como possível sobrevivente de um
cataclismo na região citada pela Bíblia. Mas adverte
que é mais razoável considerá-lo como um mito ou uma
alegoria, “personificando as primeiras idades do
mundo”. A espécie humana não começou por um só
homem: surgiu na Terra pelo encadeamento natural da
evolução dos seres. No livro básico do Espiritismo
intitulado a “A Gênese”, Allan Kardec
estuda a posição do homem na escala animal e declara:
“por mais que
isto possa ferir o seu orgulho, o homem deve resignar-se
a ver no seu corpo material o último elo da animalidade
na Terra”.
Há contradição, neste ponto, entre a Bíblia e o
Espiritismo? Kardec responde acertadamente que não,
porque o Espiritismo apenas explica a alegoria bíblica,
dá-lhe a necessária interpretação, esclarece-nos quanto
ao “espírito da letra”, em vez de escravizar-nos
à “letra que mata”. Os que, pelo contrário, se
apegam à letra, acabam fazendo da Bíblia um livro
absurdo, contraditório e inaceitável para as pessoas de
discernimento lúcido... Os Espíritos esclarecem bem
esta questão, como vemos na pergunta 47 de “O Livro
dos Espíritos”, quando respondem que a
espécie humana estava entre os elementos orgânicos do
globo terrestre, e veio a seu tempo; sendo isso que deu
motivo a dizer-se que o homem foi feito do limo da
terra. Como se vê, por esta clara resposta, a obra de
Deus não se assemelha aos grosseiros trabalhos humanos.
Deus cria através de processos cósmicos ainda
inacessíveis ao nosso entendimento. Os livros bíblicos
não poderiam tratar da criação do homem senão de forma
alegórica.
Eva e a costela de Adão: um mito de origem social -
Acreditam alguns comentaristas e exegetas que a alegoria
bíblica da criação da mulher tinha uma finalidade
social: incutir no homem o respeito pela companheira
tirada da sua própria carne. A verdade, ao que parece, é
outra. Esse objetivo seria mais bem atingido se Deus
criasse o casal ao mesmo tempo. A Bíblia deu preferência
ao homem e colocou a mulher em segundo plano. O motivo
deve ser a necessidade de atender aos preconceitos da
época. Mas é incrível que até hoje, no mundo inteiro,
multidões de pessoas acreditem que Adão dormiu sozinho e
acordou acompanhado de Eva, porque Deus lhe tirou uma
costela e dela fez a primeira mulher.
A passagem figura no cap. II do Gênesis, versículos 18 a
25. Note-se que Deus já havia criado todas as
coisas, o mundo já estava feito e povoado de animais,
com Adão solitário no Éden, quando a mulher foi criada.
Tudo concorre para a sua situação de dependência e
subserviência das sociedades patriarcais. O
próprio Moisés não compreenderia a mulher criada ao
mesmo tempo em que o homem. Por isso, o Espírito-guia
do povo hebreu, que na verdade era o deus-familiar de
Abrão, Isaac e Jacó, lançou mão dessa alegoria ingênua e
poética, proveniente de lendas folclóricas.
Quem estuda, na História das Religiões e na Antropologia
Cultural, o problema das cosmogonias antigas, não tem
dúvida quanto à natureza lendária e alegórica dessa
passagem bíblica. Basta recordar os processos
mitológicos de criação, em que os próprios deuses eram
tirados do corpo de outros deuses e as criaturas humanas
também, como no caso muito conhecido da descendência de
Brama, na Índia. Aceitar, pois, literalmente, o relato
bíblico da criação da mulher é deixar de lado a nossa
faculdade de pensar, que Deus nos deu para que seja
usada e desenvolvida cada vez mais.
A situação de dependência da mulher se justifica ainda
com a alegoria do pecado original, pois é a mulher,
criatura inferior, que põe o homem a perder. O
Cristianismo veio modificar essa situação, típica das
sociedades patriarcais de toda a Antiguidade, ao
valorizar a mulher no plano espiritual, como vemos no
Novo Testamento, a começar do nascimento do Messias. O
Espiritismo, que representa o desenvolvimento natural do
Cristianismo, completa essa modificação ao esclarecer
que o Espírito não tem sexo e se encarna neste ou
naquele sexo de acordo com as suas necessidades
evolutivas. Por isso Jesus ensinou que os Espíritos
“nem se casam nem se dão em casamento, pois são como os
anjos do céu”, como vemos na passagem de Mateus
sobre a ressurreição (Mt., 22:23 a 33).
Afirma o ínclito
Codificador
do Espiritismo que Moisés não estava lá muito equivocado
ao dizer que Deus formou o homem do limo da Terra. A
Ciência, com efeito, mostra que o corpo do homem se
compõe de elementos tomados à matéria inorgânica, ou,
por outra, ao limo da terra.
A mulher formada de uma costela de Adão é uma alegoria,
aparentemente pueril, se admitida ao pé da letra, mas
profunda, quanto ao sentido. Tem por fim mostrar que a
mulher é da mesma natureza que o homem, que é, por
conseguinte, igual a este perante Deus e não uma
criatura à parte, feita para ser escravizada e tratada
qual hilota”.
Kardec esclarece a alegoria da queda do homem na Bíblia
-
O dogma da queda do homem é sustentado no campo
religioso como um dos mistérios de Deus, impenetrável à
inteligência humana. Seu fundamento bíblico é o cap. III
do Gênesis. Todos conhecem a lenda poética da árvore
proibida, no meio do Jardim do Éden com a serpente
demoníaca (a píton grega) enganando Eva, que leva Adão
ao pecado original da desobediência. Mas em virtude do
dogmatismo fideísta das religiões, poucas pessoas
admitem a natureza alegórica desse conto ingênuo. O
símbolo está evidente, à flor da pele... Mas os que
consideram a Bíblia como a palavra de Deus não podem
admiti-lo. Entendem a alegoria como realidade divina,
tomando-a simplesmente ao pé da letra.
Ainda em “A Gênese”, Kardec explica no capítulo
XII, toda a simbologia dessa passagem bíblica: Adão é a
personificação da humanidade e sua falta representa a
fragilidade humana; a árvore da vida é o símbolo da vida
espiritual, que desenvolve a consciência humana e o
livre-arbítrio da criatura; o fruto proibido está no
meio do jardim de delícias, porque é a tentação dos
prazeres materiais; a desobediência de Adão e Eva é a
violação das leis de Deus pela concupiscência do homem;
a serpente é a imagem da perfídia, da maldade humana que
incita os outros ao erro...
Pergunta Kardec:
“por que impor à fé
ingênua da credulidade infantil, como verdades,
alegorias tão evidentes, falseando o seu julgamento e
fazendo-as mais tarde encarar a Bíblia como um conjunto
de fábulas absurdas?”
A partir de meados do
século XIX, o Espiritismo colocou a derradeira “pá de
cal” no patriarcalismo, marcando-lhe a definitiva
queda, ao guindar a mulher ao nível da insofismável
realidade, na qual ela está realmente situada, consoante
o exposto na resposta dada pelos Espíritos Superiores à
questão 821 de “O Livro dos Espíritos”:
“as funções a que a
mulher é destinada pela Natureza têm importância maior
que as deferidas ao homem, visto que a ela lhe compete
dar as primeiras noções da vida”.
O Espiritismo não poderia
ter outro posicionamento, pois, revivescendo os
ensinamentos de Jesus, ele tem que ser coerente com o
Meigo Rabi, que foi segundo Amélia Rodrigues
O LIBERTADOR DA MULHER.
“(...)
Sabia Jesus que o sentimento feminino, preparado para a
maternidade, não teme sacrifícios nem receia situações
penosas, porque é constituído para a renúncia de si
mesmo e para a abnegação até o holocausto, havendo-lhe
sido confiado o ministério de amar as criaturas desde o
momento da sua formação no seio.
Desse modo, investiu na sua sensibilidade e nobreza,
conferindo-lhe confiança e concedendo-lhe a dignidade
que lhe havia sido retirada pelas paixões subalternas
dos legisladores antigos e dos profetas fanáticos.
Deus a todos fez com igualdade, estabelecendo
polaridades para o elevado princípio da reprodução, sem
qualquer inferioridade, como parte de outrem. O
processo de vida é o mesmo, organizado molécula a
molécula sob a Lei de transformações incessantes e
renovações intérminas.
As mulheres, ao lado de Jesus, eram as mãos do socorro
atendendo os enfermos, as criancinhas aturdidas e
rebeldes que lhe eram levadas, providenciando alimentos
e roupas, auxílio de todo jaez nas jornadas entre as
aldeias e cidades, povoados e ajuntamentos.
(...) Eram as suas vozes meigas e compassivas que
tranquilizavam os exasperados antes de chegarem até o
Mestre; sua paciência e gentileza que amainava a ira e a
rebeldia precedentes ao contato com Ele, constituindo
segurança e alívio para as provas que os desesperados
carregavam em clima de reparações dolorosas.
Conhecidas já, aos seus afagos recorriam muitas outras
mulheres sofridas e amarguradas, que experimentavam o
opróbrio e a humilhação doméstica, e às quais
confortavam com o seu próprio exemplo e fé. Jesus as
necessitava, nelas depositando esperanças em favor de um
mundo novo onde não mais existissem as discriminações
nem os preconceitos de qualquer natureza”.
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos.
88. ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2006, q. 955.
- KARDEC, Allan. A Gênese. 43. ed. Rio
[de Janeiro]: FEB, 2003, cap. XII, item 11.