A. Os atos de virtude, o devotamento, a piedade
filial são oriundos das disposições orgânicas da
pessoa?
Segundo os adeptos do materialismo, sim. Ao
negarem a alma, dão eles ao organismo –
instrumento inteiramente passivo – atribuições e
competências que não são capazes de compreender
nem explicar. Como diz Flammarion, é a escórias
míseras, assim, que reduzem as mais ricas gemas
da coroa que cinge a fronte da Humanidade. Esta,
contudo, não se deixa assim degradar, não
consentirá que mãos profanas lhe arrebatem a sua
auréola. Para sustentar esses feitos de valor,
algo mais se torna preciso do que uma agregação
atômica de carbono ou de ferro. Algo mais que
uma simples combinação molecular. (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
B. Defender semelhante ideia não é o mesmo que
considerar a criatura humana um mero robô, sem
vontade própria, sem mérito nem responsabilidade
pelo que faz?
Claro. Diante da concepção materialista da vida,
as faculdades mentais, o valor moral, a potência
intelectual, o afeto profundo dos corações, o
entusiasmo das almas fervorosas, a imensidade do
olhar inteligente, as descobertas, as
obras-primas da Ciência e da Poesia – tudo isso
se deve à matéria e não ao ser inteligente que a
comanda. (Deus na Natureza – Terceira Parte.
A Alma. A Vontade do Homem.)
C. Ao negarem a existência da alma, os adeptos
do materialismo negam também a existência do
livre-arbítrio?
Sim. Os adversários do espiritualismo o negam
absolutamente e proclamam que todas as
realizações humanas são o resultado necessário
de causas ou ensejos emergentes à revelia de
reflexão, e sem que esta lhes possa mudar o
curso. O pensamento não é mais que movimento
físico da substância cerebral. Esse movimento
procede do sistema nervoso, afetado, a seu
turno, por um movimento exterior. O movimento
pensante, por sua vez, reage sobre os nervos e
músculos e determina os atos. (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
Texto para leitura
770. Quantas almas padecem em segredo sem
revelar os seus martírios, curvadas à injustiça,
vítimas do destino, dessa fatalidade
impenetrável que persegue tantas criaturas boas
e justas? Quantos corações magnânimos palpitam
em silêncio e abafam chamas capazes de incendiar
o verbo e levantar multidões, se, ao invés de
definhar na sombra, se espanejassem ao sol da
popularidade? Quantos gênios ignorados por aí
dormitam num isolamento infecundo? Quantas almas
santas e puras, a consagrarem-se a uma vida
inteira de abnegação, de amor, de caridade? E
quantos, em recompensa de tamanhas virtudes, de
tanta paciência e humildade, não recebem mais
que ingratidão e desprezo daqueles mesmos a quem
amam? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A
Alma. A Vontade do Homem.)
771. O último refúgio dos nossos adversários
assenta no sistema dos pendores naturais, como a
declararem que estes fatos de ordem mental não
são mais que o resultado das inclinações dos
espíritos credores da nossa admiração. Se
Palissy se obstinou dezesseis anos à procura do
esmalte, seria a isso arrastado por uma
inclinação especial. Se Colombo não esmoreceu
diante do cepticismo dos coevos e das revoltas
de sua equipagem, é que uma tendência do seu
cérebro o encaminhava irrevogavelmente para o
Novo Mundo. Se Dante concluiu a Divina Comédia,
ainda que posto a ferros e expatriado, é porque
a lembrança de Beatriz e as guerras civis
italianas lhe espicaçavam a fibra poética.
(Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
772. Se Galileu, septuagenário, se viu
constrangido a repudiar de joelhos as suas
convicções mais íntimas, assinando a sentença
iníqua que proibia a Terra de girar, não pensem
que houve em tudo isso humilhação, pois apenas
teria experimentado uma ligeira contrariedade
das suas inclinações. O fato de Carlota Corday
partir da sua aldeia para apunhalar Marat em
Paris não significa que tivesse a convicção
íntima de salvar a pátria de um seu presumido
salvador, mas, apenas, que tivesse uma exaltação
cerebral. Se, durante as cenas monstruosas do
terror, viram-se mulheres que pediam ao carrasco
a graça de morrer com os maridos, subindo firmes
o patíbulo; se, em todos os tempos históricos,
temos visto vítimas voluntárias oferecendo-se
para salvar entes amados, ou com eles morrer, é
tudo fruto de inclinação natural, ou resultado
de certos movimentos cerebrais! (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
773. Resumindo: os atos mais sublimados de
virtude, de piedade filial, devotamento, amor,
grandeza d'alma, são oriundos de disposições
orgânicas, ou de qualquer súbito desvio das
funções normais do cérebro. Se o Cristo subiu ao
Calvário, não se considere isso o sacrifício
extraordinário de um ser divino, mas simples
movimento revolucionário de algumas moléculas
imprudentes. É a escórias míseras, assim, que
reduzem as mais ricas gemas da coroa que cinge a
fronte da Humanidade. Esta, contudo, não se
deixa assim degradar, não consentirá que mãos
profanas lhe arrebatem a sua auréola. Para
sustentar esses feitos de valor, algo mais se
torna preciso do que uma agregação atômica de
carbono ou de ferro. Algo mais que uma simples
combinação molecular. (Deus na Natureza –
Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)
774. Predisposições orgânicas, inclinações
naturais, faculdades mentais, a própria
educação, que representa tudo isso senão
palavras, desde que nos limitemos a
manifestações da matéria bruta e cega e neguemos
a existência do espírito? Que representam a
Química, a Física, a Mecânica, diante da vontade
que dobra o mundo à sua lei e dirige a seu nuto
a matéria obediente? Ousam sustentar que o valor
moral, a potência intelectual, o afeto profundo
dos corações, o entusiasmo das almas fervorosas,
a imensidade do olhar inteligente, as pesquisas
do pensamento que sonda o espaço e faz esplender
as leis universais, as meditações, as
descobertas, as obras-primas da Ciência e da
Poesia se explicam por transformações químicas –
e quiméricas – da matéria em pensamento?
(Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
775. Será que, para suportar essa energia
anímica, não haja necessidade de uma força
soberana, superior às alterações da substância,
capaz de vencer todos os obstáculos, cuja
influência se estenda muito além da vista física
e seja mesmo a base desta força pensante, seu
substrato, seu sustentáculo e condição de sua
potência? Será que a virtude resida noutro lugar
que não na alma? – na alma independente, que as
tergiversações do mundo material não atingem; na
alma espiritual, que ouve a voz da verdade e
caminha em reta para o seu ideal, sejam quais
forem os óbices que se interponham no caminho,
as dificuldades que pretendam interceptar-lhe a
marcha triunfal? (Deus na Natureza – Terceira
Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)
776. Toda a Humanidade protesta contra essas
fúteis alegações e o faz não já com aquele
critério baseado no testemunho dos sentidos,
suscetível de enganar-se, como se dá, por
exemplo, com o movimento dos astros, mas, com
aquele senso íntimo que lhe vem da própria
consciência. A nacionalidade, o clima, a
natureza dos alimentos, a educação, não bastam
para constituir caracteres inteligentes e
indômitos! No caráter humano a energia é,
realmente, o poder central, o eixo da roda, o
centro de gravidade. Só ela dá impulsão aos
atos. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A
Alma. A Vontade do Homem.)
777. Essa força mental é a base mesma e a
condição de toda a esperança legítima, e se é
verdade que a esperança é o perfume da vida, o
poder mental há de ser a raiz dessa planta
preciosa. Ainda mesmo que as esperanças se
desvaneçam e a criatura sucumba nos seus
esforços, resta-lhe a satisfação de haver
trabalhado para vencer e, sobretudo, que, longe
de ser escrava da matéria, manteve-se fiel às
regras por vezes árduas, que a honestidade
impõe. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A
Alma. A Vontade do Homem.)
778. Haverá espetáculo mais belo e digno de
elogios que o de um homem a lutar energicamente
com a sorte, a demonstrar que lhe palpita no
seio uma força imperecível, a triunfar pela
grandeza de caráter e a prosseguir corajoso e
resoluto, ainda “quando lhe fraquejam as pernas
e sangram os pés”? (Deus na Natureza –
Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)
779. Em sentido menos generalizado que o destes
grandes fatos precedentes, temos visto exemplos
particulares de vontades poderosas realizando
milagres. Nossos desejos são, muitas vezes, os
precursores da capacidade de realização,
bastando intensificá-los para que a
possibilidade se resolva em realidade. Se de um
lado as vontades de um Napoleão e de um
Richelieu riscam dos dicionários a palavra
impossível, por outro lado existem os
vacilantes, a quem nada se afigura possível.
“Saiba querer energicamente – dizia Lamennais a
um espírito enfermo –, fixe a sua vida flutuante
e não se deixe levar por todos os ventos, qual
folha murcha desgarrada do tronco.” (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
780. Pessoalmente, temos conhecido criaturas
exaltadas que, depois de terem estado com um pé
na sepultura, recuaram de espanto ante o
esplendor da vida que pretendiam abandonar e
resolveram conservá-la. Estes exemplos são
raros, e só possíveis quando o corpo não esteja
tocado pela mão da morte. E, no entanto,
existem. (Deus na Natureza – Terceira Parte.
A Alma. A Vontade do Homem.)
781. Os fastos militares oferecem-nos o exemplo
de vários chefes que, velhos ou enfermos, em
ouvindo no instante decisivo da batalha que seus
comandados desertavam, atiravam-se para fora da
barraca, os reuniam e conduziam à vitória, para
logo após tombarem exaustos e exalarem o último
suspiro. (Deus na Natureza – Terceira Parte.
A Alma. A Vontade do Homem.)
782. Não somente a vontade, mas também a
imaginação domina a matéria, contradiz o
testemunho dos sentidos e origina, às vezes,
ilusões absolutamente alheias ao domínio físico.
Expliquem como pode morrer um homem quando, com
uma simples picada, os médicos lhe sugerem que o
sangue escorre da veia rasgada. (Este e outros
fatos estão judicialmente averiguados.) Que nos
expliquem como a imaginação cria um mundo de
quimeras, que atuam ativamente no organismo e se
refletem na saúde. (Deus na Natureza –
Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)
783. Ao demais, tão forte e autônoma é a
vontade, as influências ambientes tão precárias
se afirmam, para explicar a marcha da vida
intelectual, que, as mais das vezes, não na
embaraçam e, ao contrário, nos induzem a
proceder com energia tanto maior, quanto mais
prementes são os obstáculos que se nos deparam.
Todos quantos se votam a tarefas intelectuais
dirão conosco que a fase em que mais operaram em
sua carreira foi precisamente a de maiores
dificuldades na vida prática e que a vontade é
qual os rios que seguem destruindo e vencendo os
acidentes do seu curso, não obedecem a barragens
e até se encrespam e se precipitam mais
impetuosos, quanto mais sólida e alta a muralha
que se lhes opõe. (Deus na Natureza –
Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)
784. Quando sucesso e glória vêm coroar nossos
trabalhos e após uma faina longamente sustentada
a reação vem convidar-nos ao repouso e já o fogo
da inspiração não nos acende auroras na mente. O
trabalho pessoal da vontade é a condição sine
qua non do nosso progresso. (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
785. Em um discrime acerca da existência da
vontade, a questão assaz longa e baldamente
controvertida do livre-arbítrio não pode ficar
sem o seu ponto de interrogação. Os adversários
o negam absolutamente e proclamam, qual vimos e
suficientemente comentamos, que todas as
realizações humanas são o resultado necessário
de causas ou ensejos emergentes à revelia de
reflexão, e sem que esta lhes possa mudar o
curso. O pensamento não é mais que movimento
físico da substância cerebral. Esse movimento
procede do sistema nervoso, afetado, a seu
turno, por um movimento exterior. O movimento
pensante, por sua vez, reage sobre os nervos e
músculos e determina os atos. Em toda esta
sucessão não há movimentos materiais
transmitidos. (Deus na Natureza – Terceira
Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)
786. Eu imagino de bom grado o encontro de um
cristão com um discípulo de Holbach no desvão de
uma dessas oficinas, cuja portada se protege com
a clássica estatueta de Hipócrates travando o
seguinte diálogo: – É facílimo demonstrar que o
pensamento é produto da matéria – dirá o
holbaquiano –. Eis, por exemplo, uma locomotiva
que se precipita veloz ao vosso encontro. A
visão da locomotiva ou, para falar fisicamente,
o raio luminoso partido dessa máquina atinge o
vosso globo ocular e provoca um dado movimento
distensivo do nervo ótico... Por intermédio
desse mesmo nervo o movimento se transmite ao
cérebro. Depois, o movimento cerebral, tornando-se
causal, por sua vez aciona os nervos
correspondentes às pernas e estas entram a
correr e a levar-vos fora da linha. Evidente,
pois, que em tudo isso não utilizastes uma
partícula de liberdade qualquer. Vossa atitude
derivou, necessariamente, da impressão visual da
locomotiva. – Mas, perdão – retrucará o outro –,
e se eu, por um capricho de suicida, aliás comum,
tivesse deliberado permanecer na linha até que a
locomotiva me esmagasse? Não praticaria dessarte
um ato voluntário e de livre-arbítrio? (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade
do Homem.)