Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis


Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 43)


Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de 1867.


Questões preliminares


A. Qual é a fórmula aritmética da liberdade proposta por Holbach?

As ações do homem são sempre um misto de energia própria e dos seres que sobre ele atuam e o modificam. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

B. Qual o comentário de  Flammarion à fórmula concebida por Holbach?
Diz Flammarion que, sem nos investir de um arbítrio absoluto, uma vez que as influências exteriores atuam constantemente para atenuar esse absoluto, nem por isso deixa de nos dar uma liberdade real, uma responsabilidade íntima, um livre-arbítrio incontestável. O assunto é, admite ele, mais complexo do que parece aos profanos e temos uma permanente manifestação de sua dificuldade na sucessão secular das crenças religiosas, que oscilam entre o fatalismo e a graça divina. Maomé arvorou o estandarte do fatalismo; Calvino só vê a predestinação, enquanto Lutero consagra o livre-arbítrio absoluto. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

C. Dentre as condições fundamentais da liberdade, qual a que, segundo Flammarion, deve ser considerada em primeiro lugar?

A condição precípua da liberdade é a inteligência ou a faculdade de conhecer e escolher os motivos. Quanto mais ativa a inteligência, mais ampla a liberdade. Os idiotas natos, as crianças até uma certa idade, têm, às vezes, desejos muito enérgicos, mas ninguém os considera livres, visto não possuírem inteligência bastante para distinguir o falso do verdadeiro. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)


Texto para leitura


787. No suposto diálogo entre um cristão com um discípulo de Holbach, que rejeita a tese do livre-arbítrio, diz o primeiro: – Pois muito bem: voltando ao nosso suicídio, dissestes que eu teria escolhido um gênero de morte determinado por uma causa qualquer. Ora, isso é claro, pois de outro modo, para falar com franqueza, escolher sem causa determinante, é estúpido. Mas, como podem tais causas atuar materialmente? – Por um revés da sorte perdeis a tranquilidade e o bem-estar. Habituado à fartura e a todos os regalos do corpo e do espírito, encontrais-vos de chofre na maior miséria. O constrangimento, as restrições do vosso organismo, a alteração de hábitos, atuam sobre o cérebro, que, ante a perspectiva de morte lenta e miserável, decide antecipá-la desde logo. São sempre, como vedes, movimentos físicos. – Mas... se forem desgostos de família, decepções amorosas, temor da desonra, causas de ordem moral, em suma? – Não existe ordem moral. – Já esperávamos por essa. E é assim que pretendeis nada afirmar sem provas? É assim que presumis interpretar fielmente o ensino da Ciência? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

788. O cristão formula então um outro exemplo: - Eis aqui, em descanso, minha mão direita; nada me obriga a erguê-la... Agora, contudo, quero fazê-lo e faço... Agi livremente, ou não? – Não. Houve uma razão determinante, qual a de provar o vosso alvedrio e suscitada pela vossa conversa anterior. Esta, por sua vez, originando-se de fatos precedentes, desde que nascestes. A vida mental, como a material, ou por melhor dizer – única, não passa de uma sucessão necessária de causas e efeitos a entrosarem-se naturalmente. – Vede ainda: tenho a mão suspensa. Agora, imaginai que a movimento num círculo e a espalmo, chapada, na vossa face. Tendes uma sensação de ardor, exaltamento imediato e já ruborizado, gritareis: que é isso? Mas, antes que possais reagir de fato, digo-vos: – De que vos admirais? Então, este sopapo não é consequência inevitável do movimento da mão, da fantasia desse lobo que opera acima do ouvido, junto das zonas protetoras da apófise mastoidea e da sutura occipto-parietal, etc.? E tal não se dá, de sucessão em sucessão, desde os primórdios do mundo? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

789. O discípulo de Holbach, encerrando o suposto diálogo, é peremptório no seu dogmatismo: “Todo o movimento cerebral nos vem do exterior, pelos sentidos e a excitação do cérebro; o pensamento é um fenômeno material, como o próprio pensamento. A vontade é expressão necessária de um estado cerebral produzido por influências exteriores. Não há vontade livre; não há concretização de vontade independente da soma de influências que a todo instante inspiram o homem e impõem, ainda, aos mais poderosos limites infranqueáveis”. Ele assim falaria, porque assim falam os discípulos de Holbach. No parecer deste[i], “a liberdade não é mais que a necessidade encerrada dentro de nós. Não há diferença entre o homem que se atira voluntariamente e o que é atirado de uma sacada abaixo, senão que ao primeiro a impulsão lhe vem de dentro e ao segundo chega de fora do seu maquinismo”. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

790. Flammarion rebate tais ideias lembrando que o livre-arbítrio é evidente em certos casos, como, por exemplo, na atitude de um homem que, possuído de grande sede, repele dos lábios o copo d'água, logo que se lhe diga que esta contém veneno. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

791. Holbach concebeu uma fórmula aritmética da liberdade: As ações do homem são sempre um misto de energia própria e dos seres que sobre ele atuam e o modificam[ii]. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

792. A tal ideia Flammarion responde que, sem nos investir de um arbítrio absoluto, de vez que as influências exteriores atuam constantemente para atenuar esse absoluto, nem por isso deixa de nos dar uma liberdade real, uma responsabilidade íntima, um livre-arbítrio incontestável. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

793. O assunto – diz Flammarion – é mais complexo do que parece aos profanos e temos uma permanente manifestação de sua dificuldade na sucessão secular das crenças religiosas, que oscilam entre o fatalismo e a graça divina. Maomé arvorou o estandarte do fatalismo; Calvino só vê a predestinação, enquanto Lutero consagra o livre-arbítrio absoluto. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

794. A verdade, para Flammarion, está entre os extremos. O número de partes teológicas concernentes à graça divina é incontável e compreende-se que, nesta época, é tempo perdido o que se emprega nestas elucubrações. Contudo, é sempre útil saber o que devemos pensar da liberdade. Assim o considera Flammarion, de acordo com Spurzheim, quando a respeito escreveu aquelas páginas judiciosas quando pondera o controvertido assunto[iii]. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

795. A palavra liberdade é empregada num sentido mais ou menos lato. Há filósofos que atribuem ao homem uma liberdade ilimitada. A seu ver, o homem cria, por assim dizer, a sua própria natureza, adquire as faculdades que deseja e age independente de qualquer lei. Uma tal liberdade está em contradição com um ser criado. Tudo quanto possam dizer a seu favor não passará de declamações enfáticas, desprovidas de senso e de vendicidade. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

796. Outros há que admitem uma liberdade absoluta, em virtude da qual o homem age sem motivo. Isso, porém, é presumir efeito sem causa, é isentar o homem da lei de causalidade. Seria uma liberdade contraditória de si mesma, podendo-se proceder num mesmo caso bem ou mal, mas sempre sem motivo. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

797. Inúteis seriam, então, todos os institutos de finalidade beneficente, individual ou coletiva. De que serviriam as leis, a Religião, as penalidades e recompensas, se nada determinasse o homem? Por que esperar de outrem amizade e fidelidade, antes que ódio e perfídia? Promessas, juramentos, votos, tudo ilusão! Uma tal liberdade nada tem de real, não passa de especulativa e absurda. Precisamos, ao contrário, reconhecer uma liberdade acorde com a natureza humana, liberdade que a legislação pressupõe, liberdade raciocinada. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

798. Três são as condições fundamentais da legítima liberdade: em primeiro lugar, é preciso que a criatura possa escolher entre vários motivos. Seguindo o motivo mais forte, ou agindo só por prazer, já se não opera com liberdade. O prazer não é mais que uma falsa aparência de liberdade. A ovelha que mastiga a erva com prazer não está exercendo um ato livre. Obedecendo a um desejo mais forte, também o animal, quanto o homem, não pratica livremente, tampouco. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

799. A condição precípua da liberdade é a inteligência, ou a faculdade de conhecer e escolher os motivos. Quanto mais ativa a inteligência, mais ampla a liberdade. Os idiotas natos, as crianças até uma certa idade, têm, às vezes, desejos muito enérgicos, mas ninguém os considera livres, visto não possuírem inteligência bastante para distinguir o falso do verdadeiro. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

800. Os homens mais bem educados e os mais inteligentes são os de quem, mais que dos ignorantes, deploramos as faltas. À medida que se elevam na série das faculdades intelectivas, os animais vão-se tornando mais livres e modificam mais individualmente os seus atos, de acordo com as circunstâncias exteriores e com as lições de sua prévia experiência. Se empregamos a violência para impedir o cão de perseguir a lebre, ele se lembrará das pancadas que o aguardam e, árdego e trêmulo ao império dos próprios desejos, não deixará de ceder. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

801. O homem, superior a todos os seus irmãos da escala zoológica, é, por sua mesma natureza, o ser que goza de liberdade no grau mais eminente. Só ele procura encadear efeitos e causas, comparar melhor o presente e o passado, e daí tirar conclusões para o futuro. Pesa as razões, detém-se nas que lhe parecem preferíveis, conhece a tradição. Seu raciocínio decide e perfaz a vontade esclarecida, muitas vezes contrariamente aos seus desejos. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

802. Uma última condição da liberdade é a influência da volição sobre os instrumentos que devam operar suas ordens pessoais. O homem não é responsável por desejo ou por faculdades afetivas dele independentes. A responsabilidade individual começa com a reflexão e com a possibilidade de proceder voluntariamente. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

803. No estado de saúde os instrumentos operatórios subordinam-se à influência da vontade. A fome é involuntária, mas, se em senti-la, eu me abstiver de comer, exerço a influência da minha vontade sobre os instrumentos do movimento voluntário. A cólera é involuntária, mas eu não sou forçado a maltratar quem me provoque, só porque a minha vontade influi em meus músculos. Perdido o domínio dessa influência, então sim, o homem já não é livre. É o que amiúde sucede com os alienados, que experimentam desejos, reconhecem a sua inconveniência, chegam a maldizê-los, mas não têm a força de restringir os movimentos involuntários, chegando mesmo, algumas vezes, a pedir que lhos embarguem. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

804. A liberdade moral é a base mesma da sociedade e se ela não passa de ilusão, todo o gênero humano, tanto as nações incipientes como as mais civilizadas, que cultivam a Ciência e governam a Matéria, bem como os povos remotos, toda a Humanidade, – repetimo-lo – ter-se-ia deixado iludir pelo mais colossal dos erros que ainda existiu, depois de enveredar pela senda mais falsa e injusta que possamos imaginar. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

805. Mas... que dizemos: – injusta? Neste sistema, essa palavra nada significa e visto que o bom e o mau não existem; visto não haver ordem moral, claro é que todas as palavras concernentes à descrição dessa ordem, todos os pensamentos e julgamentos carecem de sentido. E, contudo, a menos que abstraiamos a própria consciência, não podemos anuir a semelhantes conclusões. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)


 

[i]   Systéme de la Nature, parte 1ª, capítulo 1º, página 223.

[ii]  É claro que sem liberdade não há moral nem virtude. Depois de falar em “forças soberanas”, “leis indestrutíveis que constrangem”, o Sr. Taine acrescenta: Quem se revoltará contra a geometria, máxime contra uma geometria viva? Noutro lanço, pergunta, a propósito de um trecho de Byron sobre os amores de Haydéa, como se pode deixar de reconhecer a divindade, não apenas na consciência e no ato, mas no próprio gozo? Quem há que tenha lido os amores de Haydéa – exclama ele – e experimentasse outro pensamento, que não o de invejá-la e deplorá-la? Quem pode, à face das magnificências da Natureza que o acolhe e lhe sorri, imaginar por eles outra coisa além da sensação que os une!” Bayle admite, por outro lado, que vícios e virtudes têm em nós a mesma origem – a força das paixões. A esse conceito, adita o casta est quam nemo rogavit, etc. A mulher mais virtuosa é detida, antes, pela má reputação do que pelo fruto proibido. – Nós nos ufanamos de pensar que a virtude é mais sólida do que estas teorias.

[iii]  Essai Phylosophique sur la Nature Morale et Intellectuelle de l’Homme.


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita