A. Sobre a questão do livre-arbítrio, que dizia
Samuel Smiles?
Quaisquer que sejam as conclusões teóricas a que
cheguem os lógicos na questão do livre-arbítrio,
todos sentimos que somos praticamente livres de
escolher entre o bem e o mal. Não somos o seixo
que, lançado na torrente, apenas pode seguir o
curso das águas. Ao contrário, sentimos em nós a
força do nadador, que pode escolher a direção
convinhável, lutar contra a corrente, ir mais ou
menos aonde lhe praza. (Deus na Natureza –
Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)
B. Podemos dizer, com Flammarion, que a grandeza
do homem está na sua liberdade?
Sim. A liberdade é, aliás, a única coisa que
possuímos completamente nossa, e a boa ou má
direção que lhe damos, em definitivo, só depende
de nós. Nossos hábitos e pendores não são nossos
amos, mas servos. É pelo emprego livre da razão
que nos fazemos o que somos. (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
C. Qual frase dita pelo químico espiritualista
Liebig foi criticada por Moleschott?
Disse o eminente pensador Liebig: “O homem tem
umas tantas necessidades que se radicam na sua
natureza espiritual e não podem ser satisfeitas
pelas forças físicas, necessidades que são as
diversas condições de suas funções
intelectuais”. É claro que Moleschott, notório
partidário das ideias materialistas, não gostou
de tais palavras, ignorando o fato – universal e
amplamente conhecido – de que nem só de pão vive
o homem. (Deus na Natureza – Terceira Parte.
A Alma. A Vontade do Homem.)
Texto para leitura
806. Quaisquer que sejam as conclusões teóricas
a que cheguem os lógicos na questão do
livre-arbítrio – dizia Samuel Smiles –, todos
sentimos que somos praticamente livres de
escolher entre o bem e o mal. Não somos o seixo
que, lançado na torrente, apenas pode seguir o
curso das águas. Ao contrário, sentimos em nós a
força do nadador, que pode escolher a direção
convinhável, lutar contra a corrente, ir mais ou
menos aonde lhe praza. Nenhum constrangimento
absoluto nos empece a vontade. Sentimos e
sabemos, no concernente aos nossos atos, que não
somos encandeados por qualquer espécie de magia.
Todas as nossas aspirações para o bem e para o
belo ficariam paralisadas se pensássemos
de modo diverso. Todos os negócios, nossa
conduta na vida, regime doméstico, contratos
sociais, instituições públicas, tudo, enfim se
baseia na noção prática do livre-arbítrio. E sem
ele, onde estaria a responsabilidade? De que
serviria ensinar, aconselhar, predicar,
reprimir, punir? Para que leis, se não houvesse
uma crença universal como o próprio fato
universal, de que dos homens e de sua
determinação depende conformar-se ou não? O
homem que melhor evidencia seu valor moral é o
que se observa a si mesmo, dirige as suas
paixões, vive conforme a regra que se impôs,
estuda suas aptidões e suas falhas. (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
807. Eis, verdadeiramente, o homem: sua grandeza
está na sua liberdade. Não fora livre o homem,
não se lhe permitiria ter fome e sede, nem comer
nem beber; nem senhorear, em coisa alguma, as
tendências do seu corpo. A ordem social não se
teria constituído. Mas nós não temos necessidade
de prova alguma exterior para afirmar a nossa
liberdade. Ninguém melhor o sabe do que a nossa
própria consciência. Ela é, aliás, a única coisa
que possuímos completamente nossa, e a boa ou má
direção que lhe damos, em definitivo, só depende
de nós. Nossos hábitos e pendores não são nossos
amos, mas servos. Mesmo quando com eles
transigimos, a consciência adverte-nos de que
poderíamos resistir e que, para vencê-los, não
careceríamos de fortaleza superior às nossas
possibilidades, se fizéssemos finca-pé. É pelo
emprego livre da razão que nos fazemos o que
somos. Se ela apenas propende para o sensualismo
é que a vontade, forte e demoníaca, subjuga e
escraviza a inteligência. Bem dirigida, porém,
essa mesma vontade compara-se a uma rainha,
tendo por ministros as faculdades intelectuais e
presidindo ao maior desenvolvimento compatível
com a natureza humana. (Deus na Natureza –
Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)
808. Este pretenso ateísmo científico tomou o
encargo de rebaixar e destruir todos os
caracteres da grandeza humana. Não pode,
contudo, impedir a alma de provar o seu valor,
de assomar a matéria, construindo-se de si mesma
com os elementos do seu meio e do seu clima. O
materialismo não percebe que se a personalidade
humana fosse resultado de influências
fatalísticas da Natureza, a criança e o
selvagem, sob o governo quase exclusivo dessas
forças, seriam mais sensatos, mais íntegros que
o sábio, o filósofo, o artista. Uma tal
consequência destrói, por si só, a teoria dos
nossos adversários. Moleschott ri-se
inconsideradamente do químico espiritualista
Liebig, a propósito desta assertiva do eminente
pensador: “O homem tem umas tantas necessidades
que se radicam na sua natureza espiritual e não
podem ser satisfeitas pelas forças físicas,
necessidades que são as diversas condições de
suas funções intelectuais.” É claro – responde
Moleschott – que estas palavras não têm sentido.
Pode a ambição humana imaginar um fim mais
orgulhoso que o decorrente de sua própria
elevação a necessidades impossíveis de serem
providas por forças naturais? (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
809. Certo, o autor de A Circulação da Vida
jamais sentiu essas aspirações superiores à
natureza física e às forças que a regem. Nunca
contemplou o ideal do bem e do belo, jamais
exorbitou da esfera das funções corporais, seja
da assimilação e desassimilação orgânicas. Se
assim é, nós o lastimamos e nos contristamos de
saber que há, no mundo pensante, criaturas para
as quais o mundo intelectual permanece
completamente fechado. Mas, dirijo-me a vós,
espíritos pensantes que aqui me ledes, sejais
quem fordes, homem ou mulher, criança ou velho,
moça ou rapaz: Concordais em que todos os
anseios d'alma, todos os requisitórios do
coração, todas as aspirações da mente não tendam
a fins estranhos e transcendentes às
transformações da matéria? Acreditais que no
círculo da sensação e do sensualismo se encerrem
todas as tendências da nossa personalidade? Se
já amastes na aurora da vida, se já sonhastes os
sonhos primaveris, se o céu de vossa juventude
já vos deixou entrever, ainda que por um
instante, uma estrela verdadeiramente celestial
em sua auréola atrativa; dizei-me se é possível
aceitar, como expressão de realidade, a palavra
de Stendhal, quando diz que o amor não é mais
que um contacto de duas epidermes? (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
810. Se tendes estudado as obras da Natureza, o
céu cujos mundos incontáveis gravitam harmônicos
no âmbito da luz e da vida, a Terra, em cuja
superfície se conjugam e se desdobram de
concerto as manifestações da força vital, a
atmosfera, cujas leis periódicas regulam o
regime geral; as plantas, ornamento e perfume do
solo, base do edifício das existências; os seres
vivos, cuja estrutura revela, a cada passo, a
maravilhosa adaptação das funções aos órgãos; se
tendes estudado as lições grandiosas e o
mecanismo geral desta Natureza tão rica e tão
fecunda, podereis recusar-vos a saudar do uno de
vossa alma a Inteligência suprema com tamanho
império manifestada sob o véu da matéria?
(Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
811. Se, no silêncio eloquente das noites
estreladas, vossa alma se deixou arrebatar num
voo olímpico a esses focos de vida desconhecida;
se já fostes alguma vez levado a perguntar quais
possam ser as formas da vida futura, e se já
houverdes pressentido que o idealismo de nossas
aspirações não se realizou neste mundo,
porventura não estremecestes à ideia do infinito
e da eternidade que nos aguardam? Se tendes
presenciado as obras sublimes de devotamento e
caridade, que espalham o bálsamo da consolação
nos espíritos sofredores; que levam os
proscritos da Terra a esperar uma justiça
imanente; que sustentam o passo vacilante dos
feridos e que se consagram de corpo e alma ao
alívio das misérias terrenas; – dizei-me: não
tendes concluído que o sensualismo e o egoísmo
indiferente não são tudo o que encerra o coração
humano? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A
Alma. A Vontade do Homem.)
812. Se sentistes, alguma vez, a magia da música
deixando-vos embalar por essas obras-primas,
cujos autores ilustres têm pontilhado de
encantos a travessia oceânica da vida, dizei-me:
– não vos parece que há fases acústicas,
harmonias que o ouvido não entendeu e das quais
as melodias terrenas não representam mais que um
eco amortecido? Se tendes vivido a vida da alma,
enfim, essa vida entrecortada de êxtases e
angústias, sensível e dominadora ao mesmo tempo;
– vida que se conturba com as mágoas do coração
e sabe, todavia, calcar a pés os prejuízos
vulgares e dominar triunfante os nadas mundanos;
se tendes caminhado de fronte erguida, fitando o
céu, não compreendestes que a inteligência
ultrapassa a matéria, que a alma tem
necessidades extracorpóreas e que a nossa
dignidade moral não conhece a poeira das praças
públicas, onde os saltimbancos divertem as
turbas vadias com jogos de Física recreativa?
(Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
813. Se, qual temos visto, a Ciência do mundo
físico perde, na hipótese da inexistência de
Deus, a sua base e a sua luz, para resvalar na
incapacidade absoluta de explicar razoavelmente
a construção do Universo, a ciência do mundo
intelectual perde, maiormente, a sua razão de
ser. Esvanecem-se o verdadeiro, o belo, o bem.
Em que báratros tenebrosos mergulham, então, os
velhos princípios da Filosofia, da Estética, da
Moral? A meditação das eternas verdades já não
passará de um sonho. O sábio, o pensador e o
artista estrebucham na treva e no caos? Em vão
se pretenderá que a Arte possa colimar outros
fins que não sejam a representação de formas
agradáveis? Escultura, música, pintura apenas
visam deleitar-nos os sentidos? Erro profundo!
Qual a beleza que a nossa alma contempla na
estatuária, no desenho, na harmonia? Qual a
magia que nos atrai através das luzes e sombras
dos ensaios perecíveis? Não será a beleza ideal,
a verdade misteriosamente oculta, da qual temos
sede, procurando vê-la em tudo? Não será o ideal
puro, translúcido, soberano, ímã possante,
sedutor irresistível de inteligência? (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade
do Homem.)
814. A Humanidade não se elevou acima das outras
espécies terrenas senão por sua constante
ascensão para o ideal, para a verdade
espiritual. A Arte seria um mito, um engodo, um
exercício mecânico, um nada, se não radicasse na
beleza suprema. Nisto – nisto sobretudo – é que
o homem se afirma por predicados estranhos à
matéria e confinantes com a esfera do Infinito.
Nisto, sobretudo, é que o homem entra em
comunhão com os esplendores infinitos e os fixa,
para sempre, em louvores imortais... Tenho
diante de mim a poeira vil, a matéria inanimada,
um fragmento de argila! (Deus na Natureza –
Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)
815. Minha alma, inspirada, concebeu o tipo
visível de uma virtude sobre-humana, a
manifestação do heroísmo, do devotamento, do
amor, da adoração... Argila! terra colhida
nalgum fosso úmido, em ti vou transfundir a
inspiração de minha alma... Em ti vai
encarnar-se a minha inteligência! Em ti vai
manifestar-se e esplender o tipo sublime que o
meu espírito contempla! Em ti vão fremir as
palpitações do meu pensamento! E enquanto meu
despojo miserando, caído em inominável
ignomínia, vai sumir-se e afastar-se no tempo e
na História, dentro ainda de quarenta séculos,
os olhos que te contemplarem em ti verão meu
pensamento! Milhões de corações terão palpitado
e palpitarão ainda, em uníssono, com o meu... E
diante de ti as almas se inclinarão para saudar
a virtude divina, que te deu uma auréola
imperecível! (Deus na Natureza – Terceira
Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)
816. O apanágio mais glorioso da natureza humana
não passaria de grosseiro engodo, se prevalecer
pudesse a teoria mecânica do Universo. A
Verdade, o Bem, o Belo desaparecem nela. Em vão
os adversários nos alegam sua conduta exemplar,
inatacável. No caso, não se trata das
consequências da sua vida pessoal e sim das de
sua doutrina. Pois bem: logicamente, sem
contradizer-se a si mesmo, não pode o ateísmo
constituir-se em moral. “O materialismo – diz
judiciosamente Patrício Larroque – para mais
nada presta, senão para tirar à vida humana a
sua gravidade e o seu valor, dando razão aos
seres miseráveis, cuja habilidade consiste em
explicar, com a maior segurança possível, as
misérias e fraquezas do próximo.” (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
(Continua no próximo número.)