A. O fato de adotar as ideias
materialistas impede que o indivíduo
seja benevolente, justo, moralizado?
Claro que não. Flammarion diz nesta obra
haver conhecido homens e mulheres cuja
vida podia apontar-se como modelo de
moralidade, embora sem crerem na
existência de Deus e da alma. Mas faz
ele uma ressalva: tais indivíduos não
são moralizados por serem cépticos, mas
a despeito de o serem. (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
B. É possível que haja uma moral
independente do Cristianismo ou de
qualquer confissão religiosa?
Diz Flammarion não existir dúvida de que
possa, sim, haver uma moral independente
do Catolicismo, mesmo do Cristianismo e,
em geral, de qualquer confissão
religiosa. O que ele não acreditava era
numa moral independente da ideia de
Deus. (Deus na Natureza – Terceira
Parte. A Alma. A Vontade do Home
C. Que diz Flammarion sobre o trabalho
desenvolvido pelo missionário Francisco
Xavier?
Primeiro, ele o descreve como o grande
missionário das Índias, um jovem de 22
anos, já consagrado professor de
Filosofia na Universidade de Paris, que
tudo abandonou para acompanhar um amigo.
Durante o dia, trabalhava com os
marinheiros e aos marinheiros se
devotava; à noite, dormia no convés e
tinha por travesseiro um rolo de
cordoalha. Em Goa, Francisco se
encontrava no meio de uma população
miserável, sem outra preocupação que a
de libertá-la do miasma moral e
material. Mais tarde, em prosseguimento
de abnegada missão, fundou uma igreja no
Cabo. Depois encontramo-lo em Malaca e
no Japão, a defrontar novas etnias e
novos climas. Toda a sua vida foi um
rosário de sofrimentos físicos e de
conquistas espirituais. Mas ele a tudo
vencia e caminhava avante como que
impelido por uma vontade incoercível.
“Seja qual for a morte, o suplício que
me reservem – dizia –, estou disposto a
sofrê-lo mil vezes pela salvação de uma
só alma.” (Deus na Natureza –
Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
Texto para leitura
817. Queremos lealmente acreditar que
todos os materialistas, em o serem, não
se tornem só por isso corrompidos.
Conhecemos homens e mulheres cuja vida
pode apontar-se como modelo de
moralidade, embora não crendo na
existência de Deus e da alma. Não, não
podemos deixar de confessar que, no seu
próprio sistema, essa honestidade é
apenas uma questão de temperamento e
que, justos e bons, conscienciosos e
benevolentes, afetuosos e moralizados,
em suma, se praticam a caridade, se não
sacrificam ao bezerro de ouro, se
preferem a integridade e a pureza de
caráter à fortuna ilícita, não é devido
ao seu sistema e sim a uma convicção
íntima, que os guia a seu talante e
protesta contra as suas palavras e a sua
filosofia. Sim: não são moralizados por
serem cépticos, mas, a despeito de o
serem. (Deus na Natureza – Terceira
Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)
818. Certo, não duvidamos possa haver
uma moral independente do Catolicismo,
mesmo do Cristianismo e, em geral, de
qualquer confissão religiosa. O que não
cremos é na moral independente da ideia
de Deus. Se só existissem as verdades de
ordem física, se místicas fossem as que
havemos como de ordem moral, a própria
moral não passaria de utopia e a
honestidade de mera tolice. (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
819. Outras propensões existem, porém,
que não procedem da matéria. O homem que
passa os dias sofrivelmente trabalhando,
ou, antes, que não consome todo o tempo
em prover a existência física – diz um
grande astrônomo[i] –
experimenta necessidades nas quais não
intervêm os sentidos, penas e gozos, que
nada têm de comum com as misérias da
vida. O homem não é sensível somente aos
jogos da imaginação, às suavidades dos
costumes sociais, mas sim especulativo
por natureza. Não contempla o mundo e
tudo que o rodeia, passiva e
admirativamente, como se fossem
fenômenos seriados e apenas dignos de
interesse pelas relações que mantêm com
ele. Ao revés, considera-os como
sistematizados, dispostos e coordenados
com desígnio. A harmonia das partes, a
sagacidade das combinações, causam-lhe a
mais viva admiração. Assim, é levado à
conjetura de uma potência, de uma
inteligência superior à sua e capaz de
produzir e conceber, quanto se lhe
depara na Natureza. Infinita, pode
chamar a essa potência, de vez que lhe
não percebe limite nas obras com que se
lhe manifesta. Quanto mais examina,
observa, indaga, maiores magnificências
descobre e mais grandezas lobriga. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
820. A hipótese materialista exclui
todas estas grandezas morais, todas
estas altas aspirações e consoladoras
esperanças. Diante dos grandes fatos de
ordem moral e intelectual, parece-nos
haver perdido todo o senso da verdade
para subordinar estas virtudes, as
“virtudes”, aos movimentos da matéria.
Como atribuir a esse predomínio, com
Moleschott, que o “homem deva, em parte,
o lugar privilegiado na escala
zoológica, à faculdade de alimentar-se
tanto de vegetais como de carne”? O
mesmo vale dizer, com Helvétius, que “o
homem só deve à conformação das mãos a
superioridade que desfruta em relação
aos outros animais”.(Deus na Natureza
– Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
821. Como afinar com Spencer nestas
declarações: “O que denominamos
quantidade de consciência é determinado
pelos elementos constitutivos do sangue;
vemo-lo claramente na exaltação que se
dá quando introduzimos na circulação uns
quantos compostos químicos, como sejam o
álcool e os alcaloides vegetais”? (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
822. Como compartilhar da opinião de
Litré ao declarar que “a vontade é
inerente à substância cerebral,assim
como a contratilidade o é dos músculos,
e que o livre-arbítrio não é mais que
simples modalidade do trabalho
cerebral”?[ii] (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
823. Como reduzir a proporções da
Química e da Física orgânicas, a simples
fenômenos de nutrição e assimilação,
essas realizações magníficas do gênio e
da virtude?(Deus na Natureza –
Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
824. Terminando este capítulo, volvamos
ao objetivo com que o encetamos e
constatemos a inconsequência desses
filósofos que imaginam, arrogantemente,
ter lançado uma ponte entre o espírito e
a matéria, sem perceberem que apenas
lançaram seixos no abismo. Descrevem
eles o movimento atômico das
substâncias, metamorfoses de
combinações, processos de assimilação e
desassimilação, e pretendem que essas
transformações que levam do pulmão ao
cérebro uma molécula de ferro, são de
molde a explicar claramente a formação
do pensamento. Isto posto, não temem
acrescentar: – “Temos provas tão certas
desta verdade, que uma profissão de fé
materialista não deve ser considerada
apenas como premissa de grande alcance,
nem como arrojada profecia, mas como
fruto de uma convicção profundamente
enraizada”[iii].(Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
825. Quaisquer que sejam o caráter, o
propósito e a persistência de ânimo
daqueles de quem aqui temos falado, seus
exemplos valem como protesto de
afirmações tão insensatas. (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
826. Eis aqui o grande missionário das
Índias, Francisco Xavier. Sigamo-lo no
barco que o transportou às Índias
portuguesas, por ordem de D. João 3º, a
descer o Tejo, envolvido na sua
estamenha remendada e com a só bagagem
do seu breviário – ele, o generoso
gentil-homem, o sábio de 22 anos, o já
consagrado professor de Filosofia na
Universidade de Paris, que tudo
abandonava para acompanhar um amigo.
Durante o dia, trabalha com os
marinheiros e aos marinheiros se devota;
à noite, dorme no convés e tem por
travesseiro um rolo de cordoalha. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
827. Em Goa, ele se encontra no meio de
uma população miserável, sem outra
preocupação que a de libertá-la do
miasma moral e material. Mais tarde, em
prosseguimento de abnegada missão, ei-lo
a descer as costas de Comorim e fundando
uma igreja no Cabo. Depois encontramo-lo
em Malaca e no Japão, a defrontar novas
etnias e novos climas. Sabemos que toda
a sua vida foi um rosário de sofrimentos
físicos e de conquistas espirituais.
Fome, sede e torturas inauditas barraram
a senda do peregrino da fé. (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
828. Tudo vencia, porém, e caminhava
avante como que impelido por uma vontade
incoercível. “Seja qual for a morte, o
suplício que me reservem – dizia –,
estou disposto a sofrê-lo mil vezes pela
salvação de uma só alma.” (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
829. A febre e a morte detiveram-no nas
fronteiras da China. Em face de exemplos
como este, que se poderia concluir das
teorias do feijão, das ervilhas e
lentilhas? Em que, como e quando o
regime alimentar teria governado a alma
do apóstolo? Teria ele encontrado nessas
regiões desconhecidas aquela balança
metódica que se oferece ao cidadão e que
o capitalista preguiçoso pode encomendar
ao seu Vatel? (Deus na Natureza –
Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.) (Continua
no próximo número.)
[i] Discurso
en the Study Natural Philosophy,
by J. F. W. Herschel.
[ii] Dictionaire
de Nysten, article Volonté.
[iii] Moleschott
– Circulation de la Vie,
t. 2º, página 57.