Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis

 
Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 46)

 

Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de 1867.


Questões preliminares


A. A alma é estranha ao corpo e não há simpatia entre eles?

Este pensamento é de Platão, mas Flammarion não pensa assim. A alma é, com efeito, independente do corpo material, mas sofre, sim, influências externas, sobretudo do organismo. Ninguém, por certo, dirá que uma criatura a morrer de fome esteja disposta a cantar. Alguém acredita que após uma jornada fatigante, cabeceando de sono, tenhamos disposição para dançar? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

B. Embora de concepção diferente, panteísmo e ateísmo nos conduzem às mesmas consequências?

Sim. O panteísmo, fazendo da alma uma partícula da substância divina, a escraviza e arrasta, inevitavelmente, ao fatalismo absoluto. O ateísmo, negando a existência do espírito, faz da alma a escrava da matéria e conduz, por outra via, ao mesmo fatalismo. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

C. Como certos teólogos justificam a existência de animais e insetos nocivos em nosso mundo?

Alguns teólogos aplicam a causalidade finalista para justificar a existência de animais nocivos, como fazem com as enfermidades e misérias humanas, tudo carregando em conta do pecado original. No parecer de Meyer e Stilling, répteis e insetos daninhos e venenosos são frutos da maldição que inquina a Terra com os terrícolas. As formas não raro monstruosas de tais seres devem representar a figura do pecado. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)


Texto para leitura


830. Excluindo nossos sistemáticos adversários, nenhum espírito sensato duvida que matéria e espírito sejam coisas diferentes. Ninguém ignora que, se a assimilação corporal atua em nosso pensamento, assim como a beleza do dia influi na serenidade de nossa alma, isso não impede seja essa alma um ser pessoal, que chora às vezes quando as aves cantam e as flores exalam perfumes, e outras vezes se entrega serenamente ao estudo, enquanto o céu tempestuoso se funde em raios e trovões[i]. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

831. Entendam-nos bem e não venham interpretar infielmente as nossas alegações. Nós não dizemos que a matéria seja destituída de toda e qualquer influência sobre o espírito; não dizemos que a alma humana seja completamente independente do organismo e nem mesmo estamos com Platão, a pretender que o espírito é estranho ao corpo e que há antipatia entre eles. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

832. Certo, ninguém dirá que uma criatura a morrer de fome esteja disposta a cantar. Quem duvidará de que, após uma jornada fatigante, cabeceando de sono, tenhamos disposição para dançar? Então não sabemos, todos, que nossa alma se impressiona com e pelos aspectos exteriores? Que um dia luminoso nos alegra, que uma manhã sombria e chuvosa nos entristece? Que a placidez das belas noites nos penetra intimamente, proporcionando-nos gozos calmos? E dizei: os poemas sonoros, os amavios da música, sinfonias deliciosas, sonatas apaixonadas, nunca vos arrebataram, nunca vos sacudiram os nervos? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

833. Será que, nas vossas disposições habituais, tanto quanto nos sonhos que povoam as vossas noites, nunca experimentastes o efeito da alimentação e dos vossos hábitos e misteres? Dar-se-á que a maneira pela qual findastes a vossa tarefa não tenha afetado os vossos sonhos? Numa palavra: será possível ao observador negar a influência permanente e variável que o mundo exterior – sociedade, relações, alimento, frio, luz, obscuridade, cidade ou aldeia e causas mil outras, de nós independentes – exerce sobre os nossos pensamentos, sentimentos e sensibilidade? Não. Essas influências são reais, admitimo-las e indicamo-las. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

834. Montesquieu, cuja declaração é menos exclusiva do que supõem, escreveu: “Nos países frios haverá pouca tendência para os prazeres, que será mais acentuada nos climas temperados, e sempre exuberante nas regiões quentes. Ouvindo as mesmas óperas na Inglaterra e na Itália, notei que a mesma música produzia efeitos diferentes, isto é: enquanto na primeira o auditório se mantinha calmo, na segunda vibrava de forma inconcebível. O mesmo se dá com relação à dor... A grande estatura e os nervos enrijados dos povos do Norte são menos vibráteis que os da gente dos países quentes. Lá, há menos sensibilidade na dor. Para sensibilizar um moscovita, há que o esfolar”. Mais adiante, porém, acrescenta que, entre as coisas que governam o homem, importa distinguir “a religião, as leis, as máximas, os exemplos”. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

835. Concordaremos com o autor de O Espírito das Leis, com restrições, isto é, no que concerne a influências extrínsecas, por assim dizer; mas daí a admitir que só elas fazem o homem, vai todo um abismo. Uma coisa é dizer que a alma é impressionada por causas situadas fora dela, outra é dizer que essa alma não existe. Chegamos mesmo a nos perguntar como podem os adversários conciliar as duas proposições, quando, no fundo, imaginam que a alma não existe e os pensamentos não passam de produtos da substância cerebral, variáveis com as impressões recebidas. Eis ao que se reduz o homem! (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

836. Abstraindo de todas as provas precedentemente acumuladas, a testificação da nossa liberdade viria, enfim, depor a favor da força pensante que nos anima. O panteísmo, fazendo da alma uma partícula da substância divina, a escraviza e arrasta, inevitavelmente, ao fatalismo absoluto. O ateísmo, negando a existência do espírito, faz da alma a escrava da matéria e conduz, por outra via, ao mesmo fatalismo. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

837. Poderíamos, portanto, proceder por eliminação, demonstrando a inanidade dessas doutrinas, forçar o acolhimento da nossa, como a única que concilia os diversos imperativos de nossa consciência. Assim, permitiu a sorte fossem os adversários batidos em todos os quadrantes e que a negação da personalidade ficasse presa ao pelourinho por todos os elementos de nossa convicção. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

838. Concluindo o arrazoado sobre a existência da alma, afirmamos: a dignidade humana não permite um semelhante atentado ao que constitui o seu supremo fanal; antes protesta contra essas tendências exageradas. As influências exageradas atuam mais ou menos em nós, conforme a nossa sensibilidade nervosa; mas, tanto quanto a composição química do cérebro, elas não constituem o nosso valor moral e intelectual. Para arrasar essa hipótese, bem como a precedente, basta considerar a potencialidade da nossa força mental. Só com ela podemos afrontar todas essas influências e seguir desdenhosos, de fronte erguida, por entre essas ações e reações ambientes. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

839. Quando a alma se acabrunha ao peso de uma dor profunda, pouco nos preocupamos com o estado do céu, que chova ou vente. Quando nos abandonamos a um enlevo de alegrias íntimas, pouco se nos dá o dia e o mês em que estamos. Quando sérios estudos nos absorvem a atenção, esquecemo-nos de jantar e até de dormir. Quando o som das fanfarras atroa os ares e a cidade em alvoroço festeja a liberdade, não ocorre saber se estamos em Julho ou Fevereiro. Quando a pátria periclita, o pavilhão francês não se preocupa com a data e o barômetro. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

840. A vontade suserana não cogita dessas pretensas causas. As profundas emoções do coração desprezam bagatelas. Se a saúde é excelente condição para bem pensar e sentir, não quer dizer que ela só por si promova o estado da alma. Há, na vida, horas mais deliciosas que as dos mais opíparos banquetes, e nas quais se esquecem as iguanas deleitosas aos paladares insaciáveis; horas que eclipsam câmaras suntuosas, peles caras, joias brilhantes, todos os regalos do mundo, enfim, para só nos absorvermos em gozos mais íntimos e mais vivazes... (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

841. Quantos, na Terra, fruíram esses momentos de felicidade sabem que acima da esfera material existe uma região inacessível aos tormentos inferiores, onde as almas idealistas se encontram em comunhão com a beleza espiritual e incriada. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

842. Construção dos seres vivos Certa feita, ao deixar uma aldeia à tardinha, vi uma dezena de meninas que corriam e brincavam sob a copa de frondosas e velhas tílias. Qual bando gárrulo de aves inquietas, corriam e casquinavam sob aquelas frondes seculares, que, indubitavelmente, viram por ali passar sucessivas gerações infantis. Que pensariam a respeito aquelas árvores imóveis? Quantos sóis teriam visto passar-lhes por sobre as comas verdes? Sonhariam, acaso, com os esplendores da prístina vegetação que tão gloriosamente vestiu a Terra nos seus dias primaveris? Teriam elas uma vaga consciência da importância do reino vegetal e da grandeza do seu papel no sistema geral da vida terrena? Talvez... (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

843. O que não suspeitariam, certamente, era a opinião que a seu respeito me externava uma daquelas lindas crianças, quando, metendo-me no brinquedo, lhe perguntei para que serviam aquelas grandes tílias... “Para brincar de cabra-cega quando a tarde está bonita” – respondeu naquele timbre de franqueza que revela as convicções profundas. E logo após, como a completar seu pensamento de filha amorosa: “elas servem, também, para a mamãe fazer chá”. E disse-o, oferecendo-me um raminho branco e cheiroso, que caíra de um galho... (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

844. Outra noite, em Paris, um tal M. C., a quem falávamos da imensidade do céu e da infinidade dos Mundos, entre os quais a Terra vale por átomo insignificante, respondeu-nos ele com uma ingenuidade menos perdoável que a precedente, visto provir de um adulto: “Pregais ideias desastrosas, quando dizeis que a Terra não é privilegiada, nem pode ser superior aos astros; pois a verdade é que ela forneceu o corpo divino de Jesus-Cristo e o da Santa Virgem, e só isso basta para graduá-la acima de todos os astros, autorizando-nos a afirmar que todos os astros foram feitos para ela”[ii]. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

845. Simultaneamente, outra boa criatura, que é o Sr. Le Prieur, possuído das melhores intenções, presumia que as marés eram dadas ao oceano a fim de facilitar a entrada de navios nos portos[iii]. A isso, aditava Voltaire que também não havia razão para duvidar fossem as pernas criadas para enfiar as botas e o nariz para sustentar os óculos; pois – arrazoava ainda[iv] –, para nos podermos certificar das verdadeiras causas, não há como desatender à continuidade dos seus efeitos, em todos os tempos e lugares. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

846. Igualmente pueril fora agradecer a Deus o ter feito passar os grandes rios pelas grandes cidades e encalhar os navios nas regiões polares, para assim fornecer aos Groelandeses a lenha com que se aqueçam. Sente-se quão ridículo fora presumir que a Natureza houvesse, de todos os tempos, trabalhado para ajustar-se às nossas invenções artísticas e arbitrárias, mas se evidentemente os narizes não foram feitos para os óculos, foram-no para o olfato e isso desde que há homens. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

847. Assim, também, não tendo sido as mãos engendradas para gáudio dos luveiros, destinam-se, evidentemente, a todos os usos que o metacarpo, as falanges digitais e os movimentos musculares do punho nos facultam. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

848. Teólogos há que aplicam a causalidade finalista por justificar a existência de animais nocivos, qual o fazem com as enfermidades e misérias humanas, tudo carregando em conta do pecado original. No parecer de Meyer e Stilling, répteis e insetos daninhos e venenosos são frutos da maldição que inquina a Terra com os terrícolas. As formas não raro monstruosas de tais seres devem representar a figura do pecado. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.) (Continua no próximo número.)


 

[i] A Filosofia não se deixa dominar por esses mistérios. O vitae philosophia dux – exclamava Cícero. (Tese quaest). O virtutis indagatrix espultrixque vitiorun. (Tu urbe. peperisti; tu Inventrix legum, tu magistra morum et discipline fuisti: “ad te confugimus, a te opem pertimus”.)

[ii] Ver Bibliographie Catholique, Mars 1866, página 225.

[iii] Spectacle de la Nature.

[iv] Dictionnaire Fhilosophique.

 


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita