A. A alma é estranha ao corpo e não há simpatia
entre eles?
Este pensamento é de Platão, mas Flammarion não
pensa assim. A alma é, com efeito, independente
do corpo material, mas sofre, sim, influências
externas, sobretudo do organismo. Ninguém, por
certo, dirá que uma criatura a morrer de fome
esteja disposta a cantar. Alguém acredita que
após uma jornada fatigante, cabeceando de sono,
tenhamos disposição para dançar? (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
B. Embora de concepção diferente, panteísmo e
ateísmo nos conduzem às mesmas consequências?
Sim. O panteísmo, fazendo da alma uma partícula
da substância divina, a escraviza e arrasta,
inevitavelmente, ao fatalismo absoluto. O
ateísmo, negando a existência do espírito, faz
da alma a escrava da matéria e conduz, por outra
via, ao mesmo fatalismo. (Deus na Natureza –
Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)
C. Como certos teólogos justificam a existência
de animais e insetos nocivos em nosso mundo?
Alguns teólogos aplicam a causalidade finalista
para justificar a existência de animais nocivos,
como fazem com as enfermidades e misérias
humanas, tudo carregando em conta do pecado
original. No parecer de Meyer e Stilling,
répteis e insetos daninhos e venenosos são
frutos da maldição que inquina a Terra com os
terrícolas. As formas não raro monstruosas de
tais seres devem representar a figura do pecado.
(Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano
da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)
Texto para leitura
830. Excluindo nossos sistemáticos adversários,
nenhum espírito sensato duvida que matéria e
espírito sejam coisas diferentes. Ninguém ignora
que, se a assimilação corporal atua em nosso
pensamento, assim como a beleza do dia influi na
serenidade de nossa alma, isso não impede seja
essa alma um ser pessoal, que chora às vezes
quando as aves cantam e as flores exalam
perfumes, e outras vezes se entrega serenamente
ao estudo, enquanto o céu tempestuoso se funde
em raios e trovões[i].
(Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
831. Entendam-nos bem e não venham interpretar
infielmente as nossas alegações. Nós não dizemos
que a matéria seja destituída de toda e qualquer
influência sobre o espírito; não dizemos que a
alma humana seja completamente independente do
organismo e nem mesmo estamos com Platão, a
pretender que o espírito é estranho ao corpo e
que há antipatia entre eles. (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
832. Certo, ninguém dirá que uma criatura a
morrer de fome esteja disposta a cantar. Quem
duvidará de que, após uma jornada fatigante,
cabeceando de sono, tenhamos disposição para
dançar? Então não sabemos, todos, que nossa alma
se impressiona com e pelos aspectos exteriores?
Que um dia luminoso nos alegra, que uma manhã
sombria e chuvosa nos entristece? Que a placidez
das belas noites nos penetra intimamente,
proporcionando-nos gozos calmos? E dizei: os
poemas sonoros, os amavios da música, sinfonias
deliciosas, sonatas apaixonadas, nunca vos
arrebataram, nunca vos sacudiram os nervos?
(Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
833. Será que, nas vossas disposições habituais,
tanto quanto nos sonhos que povoam as vossas
noites, nunca experimentastes o efeito da
alimentação e dos vossos hábitos e misteres?
Dar-se-á que a maneira pela qual findastes a
vossa tarefa não tenha afetado os vossos sonhos?
Numa palavra: será possível ao observador negar
a influência permanente e variável que o mundo
exterior – sociedade, relações, alimento, frio,
luz, obscuridade, cidade ou aldeia e causas mil
outras, de nós independentes – exerce sobre os
nossos pensamentos, sentimentos e sensibilidade?
Não. Essas influências são reais, admitimo-las e
indicamo-las. (Deus na Natureza – Terceira
Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)
834. Montesquieu, cuja declaração é menos
exclusiva do que supõem, escreveu: “Nos países
frios haverá pouca tendência para os prazeres,
que será mais acentuada nos climas temperados, e
sempre exuberante nas regiões quentes. Ouvindo
as mesmas óperas na Inglaterra e na Itália,
notei que a mesma música produzia efeitos
diferentes, isto é: enquanto na primeira o
auditório se mantinha calmo, na segunda vibrava
de forma inconcebível. O mesmo se dá com relação
à dor... A grande estatura e os nervos enrijados
dos povos do Norte são menos vibráteis que os da
gente dos países quentes. Lá, há menos
sensibilidade na dor. Para sensibilizar um
moscovita, há que o esfolar”. Mais adiante,
porém, acrescenta que, entre as coisas que
governam o homem, importa distinguir “a
religião, as leis, as máximas, os exemplos”.
(Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Vontade do Homem.)
835. Concordaremos com o autor de O Espírito
das Leis, com restrições, isto é, no que
concerne a influências extrínsecas, por assim
dizer; mas daí a admitir que só elas fazem o
homem, vai todo um abismo. Uma coisa é dizer que
a alma é impressionada por causas situadas fora
dela, outra é dizer que essa alma não existe.
Chegamos mesmo a nos perguntar como podem os
adversários conciliar as duas proposições,
quando, no fundo, imaginam que a alma não existe
e os pensamentos não passam de produtos da
substância cerebral, variáveis com as impressões
recebidas. Eis ao que se reduz o homem! (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade
do Homem.)
836. Abstraindo de todas as provas
precedentemente acumuladas, a testificação da
nossa liberdade viria, enfim, depor a favor da
força pensante que nos anima. O panteísmo,
fazendo da alma uma partícula da substância
divina, a escraviza e arrasta, inevitavelmente,
ao fatalismo absoluto. O ateísmo, negando a
existência do espírito, faz da alma a escrava da
matéria e conduz, por outra via, ao mesmo
fatalismo. (Deus na Natureza – Terceira
Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)
837. Poderíamos, portanto, proceder por
eliminação, demonstrando a inanidade dessas
doutrinas, forçar o acolhimento da nossa, como a
única que concilia os diversos imperativos de
nossa consciência. Assim, permitiu a sorte
fossem os adversários batidos em todos os
quadrantes e que a negação da personalidade
ficasse presa ao pelourinho por todos os
elementos de nossa convicção. (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
838. Concluindo o arrazoado sobre a existência
da alma, afirmamos: a dignidade humana não
permite um semelhante atentado ao que constitui
o seu supremo fanal; antes protesta contra essas
tendências exageradas. As influências exageradas
atuam mais ou menos em nós, conforme a nossa
sensibilidade nervosa; mas, tanto quanto a
composição química do cérebro, elas não
constituem o nosso valor moral e intelectual.
Para arrasar essa hipótese, bem como a
precedente, basta considerar a potencialidade da
nossa força mental. Só com ela podemos afrontar
todas essas influências e seguir desdenhosos, de
fronte erguida, por entre essas ações e reações
ambientes. (Deus na Natureza – Terceira
Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)
839. Quando a alma se acabrunha ao peso de uma
dor profunda, pouco nos preocupamos com o estado
do céu, que chova ou vente. Quando nos
abandonamos a um enlevo de alegrias íntimas,
pouco se nos dá o dia e o mês em que estamos.
Quando sérios estudos nos absorvem a atenção,
esquecemo-nos de jantar e até de dormir. Quando
o som das fanfarras atroa os ares e a cidade em
alvoroço festeja a liberdade, não ocorre saber
se estamos em Julho ou Fevereiro. Quando a
pátria periclita, o pavilhão francês não se
preocupa com a data e o barômetro. (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do
Homem.)
840. A vontade suserana não cogita dessas
pretensas causas. As profundas emoções do
coração desprezam bagatelas. Se a saúde é
excelente condição para bem pensar e sentir, não
quer dizer que ela só por si promova o estado da
alma. Há, na vida, horas mais deliciosas que as
dos mais opíparos banquetes, e nas quais se
esquecem as iguanas deleitosas aos paladares
insaciáveis; horas que eclipsam câmaras
suntuosas, peles caras, joias brilhantes, todos
os regalos do mundo, enfim, para só nos
absorvermos em gozos mais íntimos e mais
vivazes... (Deus na Natureza – Terceira
Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)
841. Quantos, na Terra, fruíram esses momentos
de felicidade sabem que acima da esfera material
existe uma região inacessível aos tormentos
inferiores, onde as almas idealistas se
encontram em comunhão com a beleza espiritual e
incriada. (Deus na Natureza – Terceira Parte.
A Alma. A Vontade do Homem.)
842. Construção dos seres vivos –
Certa feita, ao deixar uma aldeia à tardinha, vi
uma dezena de meninas que corriam e brincavam
sob a copa de frondosas e velhas tílias. Qual
bando gárrulo de aves inquietas, corriam e
casquinavam sob aquelas frondes seculares, que,
indubitavelmente, viram por ali passar
sucessivas gerações infantis. Que pensariam a
respeito aquelas árvores imóveis? Quantos sóis
teriam visto passar-lhes por sobre as comas
verdes? Sonhariam, acaso, com os esplendores da
prístina vegetação que tão gloriosamente vestiu
a Terra nos seus dias primaveris? Teriam elas
uma vaga consciência da importância do reino
vegetal e da grandeza do seu papel no sistema
geral da vida terrena? Talvez... (Deus na
Natureza – Quarta Parte. Plano da
Natureza - Construção dos Seres Vivos.)
843. O que não suspeitariam, certamente, era a
opinião que a seu respeito me externava uma
daquelas lindas crianças, quando, metendo-me no
brinquedo, lhe perguntei para que serviam
aquelas grandes tílias... “Para brincar de
cabra-cega quando a tarde está bonita” –
respondeu naquele timbre de franqueza que revela
as convicções profundas. E logo após, como a
completar seu pensamento de filha amorosa: “elas
servem, também, para a mamãe fazer chá”. E
disse-o, oferecendo-me um raminho branco e
cheiroso, que caíra de um galho... (Deus na
Natureza – Quarta Parte. Plano da
Natureza - Construção dos Seres Vivos.)
844. Outra noite, em Paris, um tal M. C., a quem
falávamos da imensidade do céu e da infinidade
dos Mundos, entre os quais a Terra vale por
átomo insignificante, respondeu-nos ele com uma
ingenuidade menos perdoável que a precedente,
visto provir de um adulto: “Pregais ideias
desastrosas, quando dizeis que a Terra não é
privilegiada, nem pode ser superior aos astros;
pois a verdade é que ela forneceu o corpo divino
de Jesus-Cristo e o da Santa Virgem, e só isso
basta para graduá-la acima de todos os astros,
autorizando-nos a afirmar que todos os astros
foram feitos para ela”[ii].
(Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano
da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)
845. Simultaneamente, outra boa criatura, que é
o Sr. Le Prieur, possuído das melhores
intenções, presumia que as marés eram dadas ao
oceano a fim de facilitar a entrada de navios
nos portos[iii].
A isso, aditava Voltaire que também não havia
razão para duvidar fossem as pernas criadas para
enfiar as botas e o nariz para sustentar os
óculos; pois – arrazoava ainda[iv]
–, para nos podermos certificar das verdadeiras
causas, não há como desatender à continuidade
dos seus efeitos, em todos os tempos e lugares.
(Deus na
Natureza – Quarta Parte. Plano da
Natureza - Construção dos Seres Vivos.)
846. Igualmente pueril fora agradecer a Deus o
ter feito passar os grandes rios pelas grandes
cidades e encalhar os navios nas regiões
polares, para assim fornecer aos Groelandeses a
lenha com que se aqueçam. Sente-se quão ridículo
fora presumir que a Natureza houvesse, de todos
os tempos, trabalhado para ajustar-se às nossas
invenções artísticas e arbitrárias, mas se
evidentemente os narizes não foram feitos para
os óculos, foram-no para o olfato e isso desde
que há homens. (Deus na Natureza – Quarta
Parte. Plano da Natureza - Construção dos
Seres Vivos.)
847. Assim, também, não tendo sido as mãos
engendradas para gáudio dos luveiros,
destinam-se, evidentemente, a todos os usos que
o metacarpo, as falanges digitais e os
movimentos musculares do punho nos facultam.
(Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano
da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)
848. Teólogos há que aplicam a causalidade
finalista por justificar a existência de animais
nocivos, qual o fazem com as enfermidades e
misérias humanas, tudo carregando em conta do
pecado original. No parecer de Meyer e Stilling,
répteis e insetos daninhos e venenosos são
frutos da maldição que inquina a Terra com os
terrícolas. As formas não raro monstruosas de
tais seres devem representar a figura do pecado.
(Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano
da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)
(Continua no próximo número.)
[i] A
Filosofia não se deixa dominar por esses
mistérios. O vitae philosophia dux
– exclamava Cícero. (Tese quaest).
O virtutis indagatrix espultrixque
vitiorun. (Tu urbe. peperisti; tu
Inventrix legum, tu magistra morum et
discipline fuisti: “ad te confugimus, a
te opem pertimus”.)
[ii]
Ver Bibliographie Catholique,
Mars 1866, página 225.
[iii]
Spectacle de la Nature.
[iv] Dictionnaire
Fhilosophique.