A. Que pensava Flammarion acerca da
mania de se explicar o como e o porquê
de todas as coisas conforme sua
utilidade?
Flammarion criticava os que assim agiam,
atribuindo esse procedimento à simples
ignorância de como as coisas realmente
ocorrem. Evidentemente, isso nada
representaria se esses devaneios fossem
inculcados pelo seu justo valor e não
pretendessem insinuá-los como verdades,
como artigos de fé, a ponto de seus
autores considerarem uma impiedade
quando alguém os tachava de absurdos.
Mas a ideia da causalidade final já
havia caído, em sua época, no mais
absoluto descrédito. (Deus na
Natureza – Quarta Parte. Plano da
Natureza - Construção dos Seres Vivos.)
B. A respeito do assunto que disse
Montaigne?
Eis as palavras do grande filósofo e
humanista francês: “É preciso julgar com
muita moderação as coisas divinas.
Aquilo em que mais se acredita é
justamente o que menos se conhece; nem
haverá pessoas mais autorizadas do que
aquelas que nos contam fábulas, como
sejam os alquimistas, os adivinhos,
quiromantes, médicos, id gezus omne,
aos quais de bom grado eu juntaria, se
mo permitissem, uma certa classe de
indivíduos que se metem a interpretar e
controlar os desígnios de Deus,
gabando-se de encontrar as causas de
cada acidente e de ver, nos segredos da
vontade divina, a razão incompreensível
da sua obra. Esbarrados a cada canto,
atirados de um lado para outro, mercê da
variedade e discordância contínua dos
episódios, nem assim deixam eles de
seguir o seu painel, a pintarem com o
mesmo lápis o preto e o branco.” (Deus
na Natureza – Quarta Parte. Plano
da Natureza - Construção dos Seres
Vivos.)
C. Para que existe o planeta em que
vivemos?
Segundo Flammarion, a Terra foi
construída e organizada para sede da
vida e da inteligência. Os mundos,
conforme ele expôs em uma obra
anteriormente publicada, foram
construídos para moradia do espírito. (Deus
na Natureza – Quarta Parte. Plano
da Natureza - Construção dos Seres
Vivos.)
Texto para leitura
849. O autor das Cartas a Sofia,
Sr. Aimé Martin, nos sugere a crença de
que prevendo o Eterno que o homem não
poderia habitar a zona tórrida, nela
formou as mais altas montanhas, para aí
lhe proporcionar um clima agradável.
Mais adiante acrescenta que “se a chuva
escasseia nas regiões arenosas, é porque
aí se tornaria inútil”. Na baixa
Normandia é usual despejar-se o cálice
do conhaque no café, e eu muitas vezes
tive ocasião de conjeturar que, se ao
bom Deus aprouve fosse a aguardente mais
leve que o café, não seria senão para
que ele pudesse arder à tona e desse,
assim, mais um aroma à excelente fusão
colonial. (Deus na Natureza – Quarta
Parte. Plano da Natureza -
Construção dos Seres Vivos.)
850. Há ainda um infinito número de
fatos não menos importantes, que nos
fazem amar as causas finais. Segundo
Bernardin de Saint-Pierre, os vulcões,
localizados sempre perto dos mares,
destinam-se a consumir as matérias
corrompidas que carreiam e que poderiam
infeccionar a atmosfera. As tempestades
têm a virtude de refrescar a mesma
atmosfera, etc. Pensava ele, também, que
as pulgas nasceram pretas para que as
pudéssemos distinguir na brancura de
nossa pele e então puni-las. A plumagem
retinta dos corvos, na opinião do Sr.
Martin, é para que perdizes e lebres, de
que se alimentam no Inverno, possam
percebê-los, de longe, sobre a neve. O
eloquente autor do Gênio do Cristianismo
diz que vendo-se, qual pequena flama
azulada, fugir a serpente ondulante,
facilmente nos convencemos de que foi
ela que seduziu a primeira mulher. O
autor das Cartas pré-citadas também
afirma que os insetos venenosos são
feitos para que o homem desconfie deles. (Deus
na Natureza – Quarta Parte. Plano
da Natureza - Construção dos Seres
Vivos.)
851. É claro que o ideal religioso e a
doutrina da Providência nem sempre foram
bem servidos por seus prosélitos. Quando
se escoram tais sentimentos com motivos
assim pueris, e frívolos, corre-se o
risco de comprometer a causa perante os
semissábios, o que vale dizer, a maioria
dos espíritos. Tentativas que tais não
logram senão caricaturar o Ser supremo.
A propósito de uns tantos filósofos do
seu tempo, dizia Duclos: “Essa gente
acabará levando-me à missa”. Hoje,
diante da opinião de uns tantos devotos,
também chegamos a imaginar que esta
gente acabará fazendo-nos duvidar da
Providência. (Deus na Natureza –
Quarta Parte. Plano da Natureza -
Construção dos Seres Vivos.)
852. São ideias que pecam, não apenas
por falsidade, mas pelo imperdoável
estigma do ridículo. Assemelham-se
àqueles camponeses de que nos fala Riehl[i],
incapazes de ver no mundo outras belezas
além das roupas domingueiras das
alentadas conterrâneas, que também
vestem as imagens em certos dias
festivos. (Deus
na Natureza – Quarta Parte. Plano
da Natureza - Construção dos Seres
Vivos.)
853. O próprio Fénelon não se forra à
censura. Assim é que nos representa o
Sol como regulando expressamente o
trabalho e o repouso, as necessidades e
os prazeres. Graças ao seu movimento
diurno e anual, um único sol basta para
toda a Terra. Se fora maior, à mesma
distância, abrasaria, pulverizaria o
mundo; se menor, a Terra se congelaria,
tornar-se-ia inabitável. Se, do mesmo
tamanho, estivesse mais afastado,
deixaríamos de viver, à mingua de calor.
Que compasso, pois, abrangendo em seu
círculo céu e Terra, teria assinalado
medidas tão exatas? De fato, ele não
beneficia menos as regiões das quais se
afasta, do que o faz àquelas de que se
aproxima por favorecê-las com os seus
raios... (Deus na Natureza – Quarta
Parte. Plano da Natureza -
Construção dos Seres Vivos.)
854. Lícito é, certamente, pôr em dúvida
o valor absoluto deste raciocínio, pois
a partilha uniforme dos dias e das
noites só se verifica no equador, para
diminuir progressivamente e desaparecer
nos polos, com todas as suas virtudes e
benefícios. Se lá, nos polos, algum dia
escreverem para glorificar a
Providência, hão de ver que lhe renderão
graças pelos dias e noites semestrais.
Em Mercúrio, ou em Netuno, hão de
concluir que o Sol também está à
distância convinhável à eclosão da vida
ambiente. Era Júpiter, louvarão o
Criador por lhes ter concedido quatro
luas, tanto quanto em Saturno
agradecerão a dádiva de um anel, que
reúne o útil ao agradável, etc. (Deus
na Natureza – Quarta Parte. Plano
da Natureza - Construção dos Seres
Vivos.)
855. Diante de tais argumentos não há
que admirar tenha a causalidade final
caído no mais absoluto descrédito. Eis
aí, contudo – dizia J. B. Biot[ii] –
a que extremos levaram a mania, hoje tão
comum, de explicar o como e o porquê de
todas as coisas naturais, conforme o
imperfeito e vago sentimento utilitário
que delas possamos ter. Cada qual,
assim, regula a previdência da Natureza
ao nível de suas luzes, tornando-a mais
ou menos louca, na pauta da própria
ignorância. Isso nada representaria, uma
vez que tais sonhos fossem inculcados
pelo seu justo valor e não pretendessem
insinuá-los como verdades, como artigos
de fé, a ponto de considerarem os seus
autores uma impiedade, quando os
tachamos de absurdos. (Deus
na Natureza – Quarta Parte. Plano
da Natureza - Construção dos Seres
Vivos.)
856. “É preciso – opina Montaigne –
julgar com muita moderação as coisas
divinas. O em que mais se acredita é
justamente o que menos se conhece; nem
haverá pessoas mais autorizadas do que
aquelas que nos contam fábulas, como
sejam os alquimistas, os adivinhos,
quiromantes, médicos, id gezus omne,
aos quais de bom grado eu juntaria, se
mo permitissem, uma certa classe de
indivíduos que se metem a interpretar e
controlar os desígnios de Deus,
gabando-se de encontrar as causas de
cada acidente e de ver, nos segredos da
vontade divina, a razão incompreensível
da sua obra. Esbarrados a cada canto,
atirados de um lado para outro, mercê da
variedade e discordância contínua dos
episódios, nem assim deixam eles de
seguir o seu painel, a pintarem com o
mesmo lápis o preto e o branco.” (Deus
na Natureza – Quarta Parte. Plano
da Natureza - Construção dos Seres
Vivos.)
857. Por terem sido escritas há
quatrocentos anos, estas judiciosas
palavras do venerando ancião não deixam
de exprimir uma verdade que tem
aplicação a cada momento. Elas merecem
ser juntadas à comparação que o mesmo
autor faz do homem com o ganso, que se
gloria de ser o “favorito da Natureza” –
comparação já por nós desenvolvida[iii] a
propósito da vaidade humana, que, de
longada, construiu o Universo nos moldes
de sua fantasia. (Deus
na Natureza – Quarta Parte. Plano
da Natureza - Construção dos Seres
Vivos.)
858. Desde que o homem se deixa arrastar
pelo natural pendor de tudo referir a
si, torna-se capaz de reduzir o mundo
inteiro, para fazê-lo entrar nos seus
planos estreitos e mesquinhos. O Sol já
não é, então, mais que um seu mísero
servo; as estrelas não passam de
ornamento para decoração do seu cenário
e servindo-lhe de roteiro na exploração
dos mares. Se a atração luno-solar, duas
vezes por dia, levanta as águas
oceânicas, é apenas para facilitar a
entrada no Havre dos navios que chegam
de Nova Iorque ou do Rio Amarelo. Se a
casca do carvalho excreta o tanino, é
para que possamos ter bons couros. Se o
bômbix fia a seda no seu casulo, é para
ofertar belos estojos às mulheres
elegantes. O rouxinol saúda a aurora?
Então é para o encanto auditivo de quem
o ouve. A Natureza inteira, enfim, foi
criada visando o homem, e toda ela
concorre para ajudá-lo e o fazer feliz. (Deus
na Natureza – Quarta Parte. Plano
da Natureza - Construção dos Seres
Vivos.)
859. É evidente que, quando se chega a
tais excentricidades, a causalidade
final fica singularmente prejudicada.
Pretender que tudo tenha sido
expressamente criado para o homem é
abusar muito ingenuamente da nossa
posição. Antes de tudo, é preciso
distinguir a Natureza em duas partes bem
diferentes: o Céu e a Terra. O Céu é o
espaço infinito, a multidão incalculável
de mundos, o conjunto; a Terra, uma gota
d'água no oceano, um grão de areia, um
átomo. Que o Céu se tenha criado para o
habitante da Terra, é ideia absurda,
inconcebível. (Deus na Natureza –
Quarta Parte. Plano da Natureza -
Construção dos Seres Vivos.)
860. O Céu não conhece a Terra e o
homem, por sua vez, não conhece a mínima
partícula do Céu. As estrelas são sóis,
centros de sistema de outras terras
habitadas. Contamo-las por milhões e
certificamo-nos de que o nosso planeta
lhes é absolutamente desconhecido e
insignificante, em relação a elas, que
ocupam no espaço domínios tão vastos que
a própria luz leva milhares de anos para
atravessá-los. De sorte que, se o nosso
globo deixasse hoje de existir, seu
desaparecimento não seria
matematicamente percebido pelos mundos
siderais. (Deus na Natureza – Quarta
Parte. Plano da Natureza -
Construção dos Seres Vivos.)
861. O átomo terrestre turbilhona,
célere, em torno do Sol, com a
docilidade da funda nas mãos de um
gigante. Mil revoluções siderais se
completam simultaneamente, no infinito,
em todas as latitudes imagináveis e
distantes deste átomo... Quando, pois, o
homem pretende a imensidade opulenta dos
céus desdobrada no vácuo em sua
exclusiva intenção; quando fala de
princípio e fim do mundo, como se se
referisse à sua pessoa, equipara-se a
uma formiga que julgasse o campo em que
assenta o seu formigueiro, traçado para
oferecer-lhe belas perspectivas. As
árvores floridas foram destinadas ao
prazer da vista e aquela casinha branca,
lá mais longe, não foi construída senão
para lhe servir de ponto de referência;
e finalmente: o proprietário desse campo
não cogitou senão dela – formiga
inteligente – quando organizou o seu
habitat com aqueles jardins, pomares,
campos e florestas. Desígnio manifesto. (Deus
na Natureza – Quarta Parte. Plano
da Natureza - Construção dos Seres
Vivos.)
862. Se, secundariamente, nos
restringirmos à Terra, a ideia de uma
finalidade criadora é aqui mais
particularista e não haverá absurdidade
em pretender o homem tenha sido ela
construída e organizada para sede da
vida e da inteligência. Pode-se mesmo
ajuntar que, no plano terreno, o homem é
o ser mais elevado. Só ele recebeu o dom
da inteligência. Se desaparecesse da
Terra, é de crer que esta perderia a sua
razão de ser no concerto universal, a
menos que viesse outra raça intelectual
suceder-lhe, o que leva a crer tenha
sido mesmo destinado para ser habitado.
Temos precisamente demonstrado, em uma
obra anterior, que os mundos foram
construídos para moradia do espírito. (Deus
na Natureza – Quarta Parte. Plano
da Natureza - Construção dos Seres
Vivos.)
[i] Die
Burgeliche Geseltschaft.
[ii] Mélanges
Scientifiques et Litteraires.
[iii] Mundos
Reais e Mundos Imaginários parte
2ª, capítulo 5º.