Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis

 
Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 49)

 

Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de1867.


Questões preliminares


A. Com o propósito de negar o Criador e sua inteligência, é verdade que o Sr. Büchner, conhecido adepto das teses materialistas, criticou até mesmo a velocidade da luz?

Sim, é verdade. Para Büchner, a luz não é tão veloz como deveria. Eis o argumento: “A luz atravessa tão lentamente o Universo, que seriam precisos milhões de anos para chegar de uma a outra estrela. Que se há de pensar destas restrições tão pouco sábias, como manifestações de uma vontade criadora?” Conclusão do autor materialista: “Arrastando-se assim penosamente no espaço, é porque não existe Criador”. Parece incrível, mas é isso mesmo que o citado crítico escreveu. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

B. Que avaliação Flammarion – astrônomo respeitado e homem igualmente ligado à Ciência – fez de semelhante crítica?

Ele considerou essa e outras objeções do mesmo quilate simplesmente ridículas, o que de fato elas são. Afinal, que relação pode existir entre a sabedoria de Deus e a velocidade da luz? (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

C. Ao argumento de que na obra da Natureza há coisas sem sentido, como os seres sem utilidade ou nocivos à espécie humana, qual a resposta dada por Flammarion?

Segundo ele, o mundo organizado é toda uma harmonia imensa; os monstros mencionados nesta obra são atestados de unidade da lei e do plano da Natureza, e os seres inúteis ou nocivos ao homem são manifestações da força criadora e das etapas gradativas. O conjunto é o que importa considerar, e não o “habitat” humano. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)


Texto para leitura


880. A fecundidade de uns tantos animais é tal, que, abandonados a si mesmos, em poucos anos repletariam os mares e envolveriam a Terra numa crosta da altura de uma casa. Para que serve essa organização? Espaço e matéria não bastam a uma tal quantidade de animais. Que fim poderia ter a Natureza desenvolvendo uma glândula mamária nas costas de um homem de 34 anos, fenômeno este recentemente observado e descrito pelo Dr. Hobbe, de Viena? Por que dar três seios completamente formados a uma mulher e quatro a uma outra? E por que, num cortiço de abelhas, milhares de zangões tão só destinados ao extermínio? Animais há que jamais nadam e, no entanto, têm patas providas de membranas natatórias, enquanto que aves aquáticas importantes apenas apresentam delgadas membranas. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

881. O ferrão da vespa e da abelha apenas lhes serve de arma mortífera ao inseto que o experimenta, e assim por diante. O desígnio de um Criador Onipotente e onisciente deveria, antes de tudo, ser possível de interpretação racional. Se assim fosse, não daria, certo, órgãos inúteis aos animais. Qual a finalidade e utilidade das formas fetais transitórias, nas quais os mamíferos se assemelham aos peixes e aos répteis, antes de atingirem completa formação? Para que servem, no feto humano, os arcos bronquiais com suas aberturas? Por que, nos mamíferos, órgãos rudimentares que só se desenvolvem nos répteis? E por que, nos mamíferos machos, órgãos genitais femininos que se não desenvolvem, e vice-versa? (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

882. Tuttle não percebe que estas anomalias se integram de si mesmas no plano geral, cuja lei de progresso é princípio e fim. O autor de Força e Matéria apega-se com unhas e dentes a esses artifícios, no intuito de dissimular a cambalhota, trazendo à baila todos os monstros de terra e mar. Sob estes argumentos exagerados há uma verdade constante que é, certo, uma das maiores dificuldades que se nos podem opor. Por nós, confessamos que jamais se nos deparou um aleijão, que nos não sentíssemos molestados em nossas convicções. O Gabinete de Anatomia de Estrasburgo, tão rico de monstros acéfalos e de espécimes teratológicos, não nos desperta, neste particular, nenhuma atração. (Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

883. Que alma teriam tido esses fetos detidos uns, desviados outros, em sua evolução normal? Problema que nem Santo Agostinho nem São Tomás nos ajudam a resolver, e que a Ciência pouco elucida. Considerando, porém, as coisas no seu justo ponto de vista, temos que aí militam exceções muito raras, de sorte a não poderem infirmar o ensino de conjunto. Que uma planta se empole acima de um ligamento; que as veias intumesçam à compressão do braço, que impede o retorno do sangue; que um feto paralise a sua evolução, ou que um órgão se atrofie em consequência de particularidade orgânica qualquer, anomalias são essas mais aparentes que reais, a mostrarem que as leis são gerais, tanto quanto não ser Deus um ser mesquinho, cuja ação se modele pelos obstáculos passageiros produzidos pelo homem, ou por quaisquer acidentes, quando por elas induzem à inexistência de Deus, ou que Deus deveria proceder de acordo com as ideias humanas.(Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

884. Insistindo mais especialmente acerca das monstruosidades, também nos advertem da possibilidade de as produzir artificialmente com uma simples lesão do ovo ou do feto. A Natureza, dizem, não tem meios de reparar esse mal e, muito ao contrário, segue o impulso recebido, continua a operar na falsa direção e acaba engendrando um monstro. “Haverá quem possa duvidar da ausência total de inteligência e do puro mecanismo deste processo? Diante de um fato desta ordem, poder-se-á admitir um criador inteligente governando a matéria a seu nuto? Seria, então, possível que essa inteligência se deixasse vencer ou desviar pela vontade arbitrária do homem?” – eis o que dizem os partidários do materialismo. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

885. Admiremos, aqui, até onde ousam levar esta crítica às obras da Natureza[i]. Para que esses senhores se contentassem e se dignassem fazer justiça à Inteligência que rege o mundo, fora preciso que a ordem soberana e inflexível cercasse os seres de uma couraça de aço rígido. Admirais a fina tessitura da pele, uma cútis acetinada, sua alvura e sensibilidade ao menor contacto. E, na verdade, não tendes razão. Essas qualidades, não provam que a Natureza tenha operado inteligentemente e preparado ao mesmo tempo as condições sanitárias de um corpo bem constituído, assim como as sensações úteis ou agradáveis, que essa carne vibrátil venha a experimentar. Não. Esses filósofos haveriam de preferir o mármore ou o ferro: “a Natureza poderia ter agido de forma que as balas esfuziassem do corpo e as espadas acutilassem sem ferir[ii]. Que tal esta crítica? Eis aqui uma criança que acaba de nascer: se lhe decepardes a cabeça, essa cabeça não tornará a nascer. Estúpida Natureza! que se deixa, assim, anular pelo arbitrário capricho humano”... (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

886. E quereis ainda conhecer uma outra prova da ininteligência de Deus e da futilidade dos que nele acreditam? – Ei-la e tomai bem nota, porque é prova irresistível. A luz, cuja velocidade se estima em 75.000 léguas por segundo, não vai assaz rapidamente. “A luz atravessa tão lentamente o Universo, que seriam precisos milhões de anos para chegar de uma a outra estrela. Que se há de pensar destas restrições tão pouco sábias, como manifestações de uma vontade criadora?[iii] Talvez objeteis, ingênuo leitor, que a maior ou menor velocidade da luz nada tem que ver com a inexistência de uma vontade criadora. Mas, nesse caso, é que não percebestes que esses escritores julgam que Deus, se existisse, deveria ter as mesmas nossas fantasias. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

887. Ocorre que como ao Sr. Büchner não lhe apraz que a luz apenas percorra 4.620.000 léguas por minuto, é claro que ela deveria correr mais. Arrastando-se assim penosamente no espaço, é porque não existe Criador. Isto posto, podeis perguntar qual a cifra que agradaria ao talentoso crítico e sabereis que o próprio Sr. B... não o sabe ao certo e o que só deseja, para o momento, é que a luz caminhe mais depressa. Mas, a despeito de tudo, não nos devemos formalizar por esta inocente fantasia, antes, pelo contrário, compartilhar do mesmo nobre desejo. Assim, confessamos que veríamos com prazer quaisquer progressos de rapidez na luz, mesmo aqui por baixo. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

888. Aí estão, dir-se-á, objeções meramente ridículas. Entretanto, as mais sérias dificuldades desaparecem por si mesmas, quando o homem deixa de apresentar-se como ponto de referência. E isso é o que se lhe impõe, de vez que é, ele próprio, parte integrante de um plano geral, extensivo a outros mundos, na imensidade da Criação. Se o Cid, se Andrômaco – advertimos com E. Bersot[iv] – ressuscitassem para se verem representados por Corneille e Racine – tendo em vista o belo papel que lhes atribuíram, o relevo em relação a outras personagens, a predileção do poeta neles concentrada – diriam, seguramente, que Corneille e Racine tiveram em mira erguer um monumento à sua glória, e mais: que são eles finalidade da obra, a sua mola real, e que os demais comparsas apenas vêm à cena por causa deles... A verdade é que o objetivo do autor é realizar o belo, cuja perspectiva o inflama; é traduzir na linguagem dos homens o ideal invisível. As personagens não passam de instrumentos. Não temos aí uma justa imagem da Criação? Tem graça, então, ver como algum dos atores, chamados à cena para balbuciar um só vocábulo em toda a peça, imagina que o teatro foi construído e ornamentado para ele e que estivera vazio até então etc.(Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

889. A ilusão dos sentidos e a vaidade aí se juntam para induzir-nos em erro. O fim da Ciência é libertar-nos da mais funesta superstição, dos inimigos da verdade. Deixem-se os teólogos de invocar as causas finais, pois não há como ser juiz e parte ao mesmo tempo. O mundo organizado é toda uma harmonia imensa; os monstros de que falamos são atestados de unidade da lei e do plano da Natureza, Os seres inúteis e os nocivos ao homem são manifestações da força criadora e das etapas gradativas. O conjunto é o que importa considerar, e não o “habitat” humano. À face desse panorama, esvanecem-se todas as objeções derivadas de uma acanhada aplicação ao homem. Concentremos agora a nossa atenção na construtividade inteligente dos órgãos destinados a transmitir ao cérebro o conhecimento do mundo exterior, isto é, dos sentidos e, particularmente, da vista. A beleza da conformação ótica do olho não há quem possa contestar. Afirmar que ele foi feito para ver, como o ouvido para ouvir, é cometer pleonasmo. Repetir que a sua organização é mais perfeita que a de qualquer câmara fotográfica é incidir em banalidade. Mas, para combater o adversário no mesmo pé e no mesmo terreno, importa entrar em detalhes por um momento e invocar a descrição anatômica do olho.(Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.) (Continua no próximo número.)


 


[i]  Já registramos que esta crítica é velha quanto o mundo. Diz Lucrécio: (parte 5ª) “como é que as vagas dos elementos criadores fundaram o céu, a Terra, cavaram o fundo oceano e dirigiram o curso do Sol e dos astros? Repito: este conjunto não pode ser obra de inteligência; os elementos do Universo não poderiam ter meditado a ordem que a eles preside, não combinaram de antemão o surto e o movimento que deveriam sustentar mutuamente a verdade, porém, é que, infinitos em número, esses elementos sacudidos em todas as direções, submetidos de toda a eternidade a choques estranhos levados pelo próprio peso, atraídos, reunidos em todos os sentidos, tentaram, tomaram, abandonaram e retomaram todas as combinações e, à custa de movimentos conjuntivos, coordenando-se, engendraram essas grandes massas, que se tornaram mais ou menos no primitivo esboço da Terra, do céu, dos mares e das espécies animadas.”

[ii]    Büchner – Força e Matéria, capítulo 11º.

[iii]   Idem, idem.

[iv]   Du Spiritualisme et de la Nature.



 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita