Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis

 
Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 53)

 

Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de1867.


Questões preliminares


A. Que disse Flammarion a propósito da teoria que pressupõe que todos os seres vivos derivam de um tipo primordial, mercê de uma série de transformações sucessivas?

Ele criticou essa teoria, assim como o fizeram Paulo Janet e o geólogo Cuvier. Como pode o hábito operar tais metamorfoses!? Como pode, por exemplo, mudar a vértebra superior da coluna em cavidade capaz de conter o encéfalo!? (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

B. Sobre o mesmo assunto, que disse Cuvier, um dos geólogos mais respeitados de sua época?

Eis suas palavras: “Naturalistas materializados em suas ideias permaneceram como sectários humildes de Maillet; vendo que o exercício mais ou menos intenso de um órgão lhe aumenta ou diminui, por vezes, a força e o volume, imaginaram que o hábito e as influências exteriores por muito tempo combinados puderam alterar gradativamente as formas animais, a ponto de atingirem o que demonstram hoje as diferentes espécies. É a mais vã e, porventura, a mais superficial de quantas ideias temos tido ensejo de refutar”. E aditou: “Quem quer que ouse afirmar a sério que um peixe, à força de jazer em seco, poderia ver as escamas fenderem-se e transformarem-se em penas, tornando-se ele mesmo em ave ou quadrúpede; e que à força de esgueirar-se por fendas estreitas, no intuito de regressar ao velho habitat, houvera de tornar-se em serpente; quem assim conjetura, repetimos, só faz prova de ignorância cabal do que seja Anatomia”. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

C. Tratando da origem da vida em nosso globo, a que conclusão chegou Flammarion?

Sua tese é que a vida terrestre é constituída por uma força, única e central para cada ser, condicionando a matéria segundo um tipo do qual o indivíduo deve ser a expressão física. A lei de progresso nos seres organizados atesta a inteligência divina e evidencia a presença constante de Deus na Natureza, jamais induzindo à negação de uma potência criadora. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)


Texto para leitura


928. Afirma o sr. Maillet que o mar produz dois gêneros de animais: os que nadam, viajam, passeiam, caçam, e os que rastejam no fundo, daí não se afastam, ou raramente o fazem, sem qualquer propensão natatória. Como duvidar que, do gênero dos peixes voláteis, tenham provindo as nossas aves e que dos rastejantes descendam os nossos animais terrestres, sem pendor nem habilidade para alar-se? Para nos convencermos de que uns e outros passaram do elemento equóreo ao terrestre, basta analisar-lhes a forma, as disposições e tendências recíprocas, confrontando-as de conjunto. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

929. Para começar pelos voláteis, atentemos não só na forma de todas as espécies de ave, mas também na diversidade da plumagem e das inclinações peculiares. Observemos, ainda, que a transição do ambiente equóreo para o aéreo é muito mais natural do que comumente se presume. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

930. O ar que envolve o globo está impregnado de muitas partículas d'água. Esta, dir-se-ia, é um ar carregado de partículas mais grosseiras, mais úmidas e mais pesadas que o fluido superior, que denominamos ar, posto que uma e outro não sejam mais que a mesma coisa, para as necessidades teóricas de Telliamed. É fácil, portanto, conceber que animais habituados ao ambiente equóreo tenham podido conservar a vida respirando um ar dessa qualidade. “O ar inferior não é senão água difundida.” É úmido porque provém da água, e é quente porque não é tão frio como poderia ser, transformando-se em água. (Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

931. Mais abaixo, o sr. Maillet acrescenta: “Há no mar peixes de formas semelhantes à de quase todos os animais terrestres, mesmo pássaros.” Também lá existem plantas, flores e alguns frutos: a urtiga, a rosa, o cravo, o melão, a uva, lá encontram seus congêneres.(Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

932. Acrescentemos a isso as disposições favoráveis que se podem encontrar em dadas regiões, facilitando a passagem do meio aquático para o aéreo; a necessidade mesmo dessa passagem em dadas circunstâncias, como, por exemplo, o isolamento em lagos cuja seca progressiva obrigasse a viver em terra; ou ainda por qualquer acidente dos que se não podem considerar como extraordinários, dar-se-ia que os peixes voadores, caçando ou sendo caçados no mar, fossem, pelo temor ou pelo desejo de presa, arremessados a maior distância das praias, entre caniços e pedregais, e, na impossibilidade de regressar ao “habitat”, tirassem do próprio esforço para o conseguirem uma faculdade maior de voo. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

933. Neste caso, não mais banhadas pela água as barbatanas fenderam-se, ressecaram e caíram. Enquanto encontraram, em o novo meio, algum alimento que os nutrisse, as cânulas das barbatanas separaram-se, prolongaram-se e revestiram-se de plumas, ou, por melhor dizer, as membranas, antes coladas entre si, metamorfosearam-se. O pelo formado dessas películas arqueadas alongou-se por si mesmo; a pele revestiu-se insensivelmente de uma penugem da mesma cor original e essa penugem cresceu também. As pequenas barbatanas ventrais, que, como as natatórias, lhes auxiliavam a cortar as águas, transmutaram-se em pés e lhes serviram para percorrer o solo. Ainda outras pequenas alterações lhes sobrevieram na conformação. O bico e o pescoço de uns alongaram-se e os outros retraíram-se. A mesma coisa se deu com o corpo. Contudo, a conformidade primária subsiste no todo e é sempre fácil reconhecê-la.(Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

934. A respeito dos animais que rastejam ou caminham, a transição do meio líquido é ainda mais fácil de conceber. Não custa crer, por exemplo, que serpentes e répteis pudessem viver igualmente num e noutro elemento. As experiências não permitem dúvidas a respeito.(Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

935. Quanto aos quadrúpedes, não só encontramos no mar espécies semelhantes, com os mesmos pendores, nutrindo-se dos mesmos alimentos que utilizam em terra, como ainda temos cem outros exemplos de espécies que vivem no ar, como nas águas. Não têm os macacos marinhos o mesmo aspecto dos terrestres? Há até mais de uma espécie. O leão, o cavalo, o porco, o lobo, o gato, o cão, a cabra, o carneiro, também têm no mar os seus afins. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

936. A história romana menciona focas aprisionadas e exibidas ao povo nos espetáculos, a saudá-lo com os seus gritos e mesuras, ao mando de um treinador, tal como se pratica com outros animais adestrados para esse fim. E não sabemos que elas se afeiçoam a quem delas cuida, como o fazem os cães a seus donos? (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

937. Compreende-se que esse progresso, obtenível com as focas, a Natureza o possa realizar por si mesma e que, em certas ocasiões, obrigado a viver alguns dias fora d'água, não seja de todo impossível ao animal identificar-se com o novo ambiente, quando ao antigo não possa regressar. Foi assim, decerto, que todos os animais terrestres passaram do meio equóreo ao etéreo e, por efeito da respiração do ar, adquiriram a faculdade de mugir, uivar, ladrar, faculdade que antes tinham imperfeitas[i]. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

938. Não iremos mais longe para ouvir este escritor, maiormente celebrizado pelas sátiras de Voltaire, do que pelo seu filósofo indiano. Diremos apenas que ele prossegue com uma série de historietas e contos mais ou menos autênticos, de homens selvagens, homens de cauda, imberbes, unípedes, manetas, pretos, gigantes, anões etc., para culminar na transmigração dos homens e macacos marinhos para a terra firme. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

939. Cuvier, o mais ilustre dos geólogos, consignou sua opinião sobre esta renovada teoria dos gregos, agora proposta sob aspecto algo diferente, a saber:

“Naturalistas materializados em suas ideias permaneceram como sectários humildes de Maillet; vendo que o exercício mais ou menos intenso de um órgão lhe aumenta ou diminui, por vezes, a força e o volume, imaginaram que o hábito e as influências exteriores por muito tempo combinados puderam alterar gradativamente as formas animais, a ponto de atingirem o que demonstram hoje as diferentes espécies. É a mais vã e, porventura, a mais superficial de quantas ideias temos tido ensejo de refutar. Nela, os corpos são considerados simples massa, pasta argilosa que se pudesse modelar entre os dedos.

“E assim é que, quando autores outros tentaram entrar em minúcias, caíram no ridículo. Quem quer que ouse afirmar a sério que um peixe, à força de jazer em seco, poderia ver as escamas fenderem-se e transformarem-se em penas, tornando-se ele mesmo em ave ou quadrúpede; e que à força de esgueirar-se por fendas estreitas, no intuito de regressar ao velho habitat, houvera de tornar-se em serpente; quem assim conjetura, repetimos, só faz prova de ignorância cabal do que seja Anatomia.” (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

940. A teoria exposta linhas acima, contra a qual se levantam tantas dificuldades, pressupõe que todos os seres derivam dum tipo primordial, mercê de uma série de transformações sucessivas, constituindo a unidade orgânica. Olho e ouvido não passam de nervo sensorial desenvolvido pelo exercício; fronte e crânio foram modelados pelo cérebro e este mais não é que um desdobramento da medula espinal. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

941. Mas – objetaremos com Paulo Janet – como pode o hábito operar semelhante metamorfose e mudar a vértebra superior da coluna em cavidade capaz de conter o encéfalo? Eis, para tanto, o que importaria presumir: que um animal, apenas provido de uma medula espinal, à força de exercitá-la, conseguiu produzir essa expansão de matéria nervosa a que chamamos cérebro; que, à medida que essa parte superior se alargasse, iria recalcando primeiramente as paredes moles que a revestem, até obrigá-las a tomar sua própria conformação de caixa craniana... Mas, quantas hipóteses nesta hipótese! (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

942. Em primeiro lugar, teríamos de imaginar animais com medula espinal sem cérebro, pois de outro modo tanto podemos considerar a medula um prolongamento do cérebro, como este mesmo cérebro um prolongamento da medula. Isso, aliás, parece indiciar-se quando encontramos algo de análogo ao cérebro em animais desprovidos de medula, quais os moluscos e os anelídeos. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

943. Ora, se o cérebro preexiste nos vertebrados, preexiste o crânio e não é, portanto, originário do hábito. Acrescentemos que dificilmente se podem admitir exercício e hábito sem cérebro, como produtos que são da vontade, pois não há como negar seja o cérebro o órgão da vontade. Tenhamos em conta, finalmente, que ainda restaria admitir que a matéria óssea tivesse antes sido cartilaginosa, a fim de prestar-se às dilatações sucessivamente requeridas pelo progresso do sistema nervoso, o que implicaria notável acomodação nessa primitiva maleabilidade óssea, sem o que impossível se tornaria qualquer desenvolvimento do sistema nervoso. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

944. Órgãos e funções se têm manifestado de paralelo, segundo o plano geral. A causalidade parece-nos tão evidente que, a bem dizer, nossos adversários mereceriam que a Natureza os privasse, algum tempo, de uns tantos músculos (digamos o esfíncter), forçando-osassim a confessar que os mais insignificantes órgãos têm uma finalidade a preencher. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

945. Examinamos a questão primária da origem da vida em nosso globo, sob todos os seus aspectos, num capítulo sobre a origem dos seres e chegamos à conclusão inatacável de que a vida terrestre é constituída por uma força, única e central para cada ser, condicionando a matéria segundo um tipo do qual o indivíduo deve ser a expressão física. Vimos que a lei de progresso nos seres organizados,da planta ao homem, atesta a inteligência divina e evidencia a presença constante de Deus na Natureza, jamais induzindo à negação de uma potência criadora.(Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

946. Em nosso caso particular (Plano da Natureza – construção de seres vivos), temos uma afirmação ainda mais direta da ação inteligente na maravilhosa organização dos corpos animados, atento a que essa ação é igualmente necessária nos casos em que as espécies se houvessem sucessivamente transformado em ascensão zoológica (hipótese que está longe de ser admitida), e naqueles em que o primeiro casal de cada espécie fosse o produto de uma força particular, que não nos é dado apreciar. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

947. Temos, assim, o direito de fechar esta controvérsia da adaptação de cada espécie ao seu gênero de vida com a declaração de que, mesmo supondo uma progressão natural, instintiva, lenta e insensível, uma plasticidade normal do organismo e obediência cega de cada espécie às forças dominantes, a hipótese materialista nada adianta com isso. A apropriação da matéria organizada às causas exteriores demonstraria, simplesmente, uma grande sabedoria nos desígnios e nos feitos do Criador. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

(Continua no próximo número.)


 


[i] Telliamed ou Entretien d’un Philosophe Indien avec un Missionaire Français, 1748.



 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita