Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis

 
Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 57)

 

Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de1867.


Questões preliminares


A. Os fatos revelam a existência de um plano e de uma finalidade na obra da Natureza?

Sim. Os organismos vivos são construídos como se a causa que os condicionou teria tido em vista uma destinação dos órgãos em relação à vida peculiar de cada ser, tanto quanto à existência global de todos os seres em conjunto. Tal conclusão é resultado da observação científica.(Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

B. Admitir que exista um plano, tanto quanto uma finalidade na obra da Natureza, significa que o Universo é governado por uma Inteligência?

Evidentemente. A ordem verificada nos fatos não produzidos pelo homem mostra-nos que as correlações apresentadas pelo mundo material resultam de ações e reações que, combinadas, regem-se por leis. Pela experiência contínua da vida, sabemos que sempre as correlações, as harmonias, as leis são obra de uma inteligência cujo poder é proporcionado à extensão dos fatos e das harmonias coordenadas. Temos assim, por evidente, que o Universo é governado por uma Inteligência.(Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

C. Os materialistas pensam de forma diferente. Por que a verdade não estaria do seu lado?

As pessoas podem pensar como quiserem, mas o bom senso decreta, imperiosamente, que não podemos atribuir a uma circunstância molecular e fortuita a atração, a eletricidade, o calor, a composição do ar, fatos cósmicos perfeitamente apropriados à vegetação das plantas e à vida animal, pela mesma razão que ninguém admitiria pudessem milhares de tipos de impressão, espalhados ao acaso, produzir a Ilíada ou a Jerusalém Libertada. Se, para fugir a conclusões lógicas, nos dissessem que essas qualidades são efeitos inerentes, nem por isso elidiriam a necessidade lógica de uma intervenção suprema e inteligente. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)


Texto para leitura


994. Em que consiste o método científico? Que será uma teoria em Astronomia, em Física, em Química? Observamos os fatos e quando possuímos um conjunto de observações suficientes procuramos religá-los mutuamente entre si, mediante uma lei. Vemos essa lei? Nunca, jamais. Adivinhamo-la pela discussão dos fatos e talvez a denominação que lhe damos não seja a que melhor convenha.  (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

995. Esta teoria, pela qual nosso espírito insaciável sente a necessidade de explicar todas as coisas, não é, antes de tudo, senão uma hipótese cujo valor consiste, principalmente, na satisfação que nos proporciona a explicação natural dos fatos estudados. Por muito tempo ela não passa de hipótese, inconsistente e frágil, que o mais leve sopro pode derrubar, para só elevar-se à verdadeira teoria quando suficientemente examinada, experimentada e sancionada pelo estudo. De outra forma, resvala para o campo das erronias imaginárias. (Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

996. Vejamos, por exemplo, os movimentos dos corpos celestes. Notamos que eles descrevem elipses de que o Sol se constitui um dos focos; notamos que as superfícies percorridas são proporcionais aos tempos, e notamos que estes tempos de revolução, multiplicados por si mesmos, estão entre si como os grandes eixos multiplicados três vezes por si mesmos. Para explicar os movimentos da mecânica celeste, emite-se a hipótese de que os corpos se atraem na razão direta das massas e inversa do quadrado das distâncias.  (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

997. Enunciar esta hipótese vale simplesmente por dizer que as coisas se passam como se os astros se atraíssem. Depois, explicando essa hipótese, perfeitamente, todos os fatos observados e dando conta de todas as circunstâncias do problema, torna-se ela uma teoria. Enfim, achando-se esta lei universalmente demonstrada, tanto pelo balanço das estrelas gêmeas, na profundeza dos céus, como pela queda de uma maçã na superfície da Terra, afirma-se que a lei chamada gravitação representa, de fato, a força reguladora dos mundos.  (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

998. Idêntico é o processo que empregamos ao declarar que os organismos vivos são construídos como se a causa que os condicionou teria tido em vista uma destinação dos órgãos em relação à vida peculiar de cada ser, tanto quanto à existência global de todos os seres em conjunto. As verdadeiras causas finais são, portanto, um resultado da observação científica. O método é o mesmo e, como bem o disse Flourens, é preciso partir não das causas finais para os fatos, mas destes para aquelas.  (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

999. Induzir do conhecido para o desconhecido, eis o único método positivo. Ora, o resultado deste método, seja ele qual for, merece ser proclamado como científico. Pode suceder que a revelação de um plano e de uma finalidade na Natureza não agrade a Fulano ou Beltrano, mas isso pouco importa. (Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1000. Fulano e Beltrano estão no mais falso dos erros quando nos acusam de não proceder de acordo com a Ciência experimental e incidem na mais fatal das ilusões quando imaginam proceder de acordo com essa ciência. A verdade, porém, despreza-lhes as tendências e fica inalteravelmente idêntica, sem se preocupar com os prismas através dos quais a encaram olhos interessados em vê-la abaixo da sua posição real.  (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1001. Esquisitice inexplicável em homens judiciosos pretenderem que, admitindo a existência de Deus, sejamos obrigados a admitir o arbítrio na Natureza, como se a vontade suprema não fosse necessária, infinitamente sábia e, por consequência, universalmente regular. “Os que só veem em todos os movimentos da Natureza os meios de atingir um fim – diz Moleschott – chegam mui logicamente à noção de uma personalidade que, num tal propósito, confere à matéria as suas propriedades. Esta personalidade também designará o fim. Se assim é, se uma personalidade designa os fins e escolhe os meios, a lei de necessidade desaparece da Natureza. Cada fenômeno se torna partilha de um jogo do acaso e de um arbítrio sem finalidade.”  (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1002. J. B. Biot afigura-se-nos mais bem inspirado quando assim conclui o exame da Natureza:[i]

“Por mim, quanto mais considero a harmonia, a imensidade do Universo e as maravilhas da Criação, tanto mais admiro esse concerto maravilhoso e menos apto me julgo para explicá-lo. Ousarei dizer, mesmo por havê-lo experimentado, que essas explicações imperfeitas, esses vagos ou falsos relatórios, que alguns modernos escritores querem inculcar como harmonias sublimes, nunca nos pareceram mais temerários e fúteis do que quando defrontamos a Natureza. Quando se há tido a ventura de conhecer e sentir as verdadeiras belezas que ela ostenta, somos tentados a conceituar, como profanadores e ímpios, quantos a desfiguram com indignos disfarces. Assim é que todos os seres organizados tiveram seus meios próprios de vida, tão numerosos e tão multiplicados na variação do mecanismo, quanto as estrelas do céu.

“E note-se que isto é o que percebemos exteriormente, pois o mais maravilhoso nos fica oculto. Quem, jamais, pôde compreender a ação química das membranas vivas, a causa dos movimentos voluntários e involuntários – que digo eu? – o voo da mosca, os torneios da borboleta? Quando nossa inteligência mal pode atingir o conhecimento das disposições exteriores do organismo e mal pode apreender as relações entre si de alguma das peças que o compõem, seria, parece-nos, ilógico não ver no âmago desse conjunto o princípio inteligente, como o ordenador e regulador de tudo. Por mim quero, ao menos, possuir a filosofia da minha ignorância.”  (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1003. A ordem verificada nos fatos não produzidos pelo homem – advertiremos ainda com ilustre escritor[ii] – mostra-nos que as correlações apresentadas pelo mundo material resultam de ações e reações que, combinadas, regem-se por leis. Pela experiência contínua da vida, sabemos que sempre as correlações, as harmonias, as leis, são obra de uma inteligência cujo poder é proporcionado à extensão dos fatos e das harmonias coordenadas. Temos assim, por evidente, que o Universo é governado por uma Inteligência. (Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1004. Estas correlações e estas harmonias estão em correspondência com as propriedades intrínsecas da matéria e a elas se ligam de tal sorte que deixariam de existir se essas propriedades substanciais fossem outras. Daí concluímos que a matéria com as suas propriedades intrínsecas é também obra da Inteligência, que lhe estabeleceu as leis.  (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1005. O bom senso decreta, imperiosamente, em que pesem as alegações contrárias, que não podemos atribuir a uma circunstância molecular, fortuita, a atração, a eletricidade, o calor, a composição do ar, fatos cósmicos perfeitamente apropriados à vegetação das plantas, à vida animal, pela mesma razão que ninguém admitiria pudessem milhares de tipos de impressão, espalhados ao acaso, produzir a Ilíada ou a Jerusalém Libertada. Se, para fugir a conclusões lógicas, nos dissessem que essas qualidades são efeitos inerentes, nem por isso elidiriam a necessidade lógica de uma intervenção suprema e inteligente.  (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1006. Juntemos a esta imagem um aforismo pouco discutível: todo fim supõe uma intenção, toda intenção uma consciência e toda consciência uma personalidade.  (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1007. O problema das causas finais, repitamo-lo, é de solução mais difícil e complicada do que se prefigura a muitos imaginativos apressados. Ele se traduz, como diriam os antepassados, antes em potencial do que em ato. Os fatos gerais o decidem e os particulares o dificultam. Para bem o apreender, importa ao espírito adstringir-se a um exame severo e, de um golpe de vista, abranger, senão a totalidade, pelo menos a maioria das coisas conhecidas, sob o duplo aspecto do tempo e do espaço.  (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1008. O primeiro efeito desse rigoroso estudo crítico é, precisamente, afastá-lo de toda crença e resguardá-lo dessas mesquinhas interpretações humanas, que levam a criatura a referir tudo a si mesma, como eixo central da Criação. Assim procedendo, poderemos, então, rir das ilusões, vaidades e tentativas insensatas do orgulho humano. Esse, o primeiro resultado do estudo geral dos seres.  (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1009. Contudo, quando prosseguimos investigando, até perceber as forças íntimas que sustentam cada ser criado, até descobrirmos as leis universais que regem simultaneamente o edifício total e cada uma das partes desse imenso edifício, então distinguiremos as linhas de um plano geral, perceberemos, aqui e ali, os elos de solidariedade que entrosam num só desígnio os corpos mais distantes, reconheceremos a unidade do pensamento que presidiu – ou melhor – que preside eternamente o condicionado universal e governa, na rota do infinito, o carro imensurável da Criação.  (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1010. Enfim, acostumando-nos a essas contemplações essenciais, também chegaremos a concluir que esta noção da divindade ainda é muito humana para que seja verdadeira e que essa força que sustenta o mundo, essa potência que lhe dá vida, essa sabedoria que o dirige, essa vontade que o impele eternamente para uma perfeição inacessível, essa unidade de pensamento que se revela sob as formas transitórias da matéria, não são uma força, um poder, uma sabedoria e uma vontade humanas, mas atributos inerentes a um ser inominável, incompreensível, incognoscível, de cuja natureza nada podemos razoar e cujo conhecimento é para nós cientificamente inabordável.  (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1011. Este resultado final das investigações positivas explica por que e como, nesta discussão, se afigura que estendemos a mão esquerda a Berlim e a direita a Roma. A quem no-lo objete, responderemos que se não trata aqui senão de um fato geográfico, resultante do nosso pendor para visualizar sempre o Oriente. Sem dúvida, esta atitude nos granjeia o qualificativo de herético, conferido pelos doutores que se repoltreiam em sua cátedra secular, mesmo porque seus olhos modorrentos vêm de há muito preferindo a suavidade das meias tintas crepusculares aos flamíneos raios aurorescentes. (Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1012. A lealdade, porém, obriga-nos a proclamar que o exagero dogmático é tão falso como o cepticismo e que a trilha do pensador oscila equidistante desses extremos. Sim, oscila. Os que se presumem mais firmes nesse terreno são os que mais próximo estão da queda. Para o homem que estuda, nada há definitivo neste mundo. Quanto mais progride a Ciência, mais o homem percebe a sua ignorância. Todavia, parar é morrer. Caminhar, mesmo contramarchando às vezes, é realizar o fim mais nobre da existência. Em Filosofia, como em Mecânica, o equilíbrio não passa, jamais, de um equilíbrio instável. (Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.) (Continua no próximo número.)


 


[i]     Mélanges Scientifiques et Litteraires, t. 2º.

[ii]    J. M. de la Codre – Les Dessems de DieuEste ensaio de filosofia religiosa e prática caracteriza uma das felizes tendências contemporâneas contra a invasão do ateísmo. Os argumentos, aí desenvolvidos, resumem-se no seguinte: Não existe o impossível; no Universo há ordem e a ordem só pode emanar de uma inteligência. O Universo é, portanto, obra de uma inteligência. Essa ordem resulta da execução de uma lei, ou do concerto de várias leis, e as leis são sempre, e necessariamente, obra de uma vontade inteligente. O autor do Universo, Deus, sendo uma Inteligência, teve indubitavelmente um fim, criando o Universo. Esse fim seria fazer-nos felizes, como no-lo atestam as nossas aspirações e faculdades, no que possuem de mais elevado. Todos os seres dotados de sensibilidade são, por conseguinte, convocados à felicidade. E nós vemos, de fato, que eles são até certo ponto felizes, por isso que todos vivem e amam a vida, assegurando-a e defendendo-a até os limites extremos. A felicidade, porém, não é igual para todos os seres: Há, notadamente, uma diferença marcante entre a felicidade dos animais e a presumida felicidade humana. Aquela se adstringe a estreitos limites, é uma felicidade simplesmente “dada”, enquanto que esta toma vastas proporções e reveste outro caráter; é uma felicidade merecida”.

Compreender-se-á facilmente esta distinção – diz o Autor – observando os fatos e comparando os raros e incompletos prazeres de que compartilham os seres puramente sensitivos, com os gozos serenos, infinitos, que a alma humana encontra no cumprimento do dever, na piedade, nos doces afetos da família. A mor parte dos sofrimentos nos sobrevêm quando, por ignorância ou rebeldia, contravimos às leis do criador.

Da perpetuidade dessa aspiração a uma felicidade completa e indefinida, e da faculdade de aperfeiçoamento moral, bem como de conhecimento progressivo; – uma vez que essa felicidade não pode existir na Terra – devemos concluir que o homem não perecerá neste mundo com o seu invólucro corporal. A esta hermenêutica podemos ajuntar o seguinte, que o autor nos expôs em carta particular:

“A Natureza é ao mesmo tempo o laboratório e o operário de Deus, assim como a oficina provida de um preparador é o laboratório do físico ou do químico. Tanto mais superiores são os produtos brotados da Natureza, em relação aos de nossas oficinas, quanto mais exaltam e atestam o poder e a inteligência divinos, em relação aos de nossos sábios. Estes, com os materiais que lhes oferece a Natureza, não conseguem fazer o que faz “o operário de Deus” sob a sua direção.

D:H::N:O

“Deus está para o homem como os produtos da Natureza estão para os da oficina.”

D:N::H:B

Deus “atua” sobre a Natureza como a vontade do homem, guiada pela sua inteligência, “atua” sobre os seus olhos e braços.

Num capítulo de Os Desígnios de Deus, consagrado à Pluralidade dos Mundos habitados, o Autor contradita a nossa opinião sobre a variedade dos organismos no Universo e a ideia de uma semelhança entre todas as humanidades. Baseia-se ele no seguinte raciocínio: se os habitantes doutros mundos não têm a forma terrestre e se estamos destinados a viver também nesses mundos, não poderemos lá reconhecer os amigos caros... A objeção é mais sentimental que científica e não cabe discuti-la aqui. Podemos, nada obstante, repetir que, em virtude da diversidade de ação das forças naturais, noutros planetas, é quase certo que a série zoológica lá se tenha construído sobre um tipo análogo ao da série terrestre.



 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita