Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis

 
Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 58)

 

Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de1867.


Questões preliminares


A. Há no homem uma tendência para tudo referir à sua pessoa, como centro exclusivo do que se passa do Universo?

Sim. É exatamente isso que Flammarion deplora nesta obra, lembrando que por causa disso o homem restringe os fatos e as ideias. A teoria da causalidade particular constitui, nesse sentido, um exemplo, e dos mais famosos, como se tudo na Natureza existisse apenas por causa do homem e não houvesse no planeta outros seres viventes. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

B. Flammarion rejeita a ideia de causalidade na obra da Natureza?

Não. Sua proposição consiste em substituir a ideia de causalidade particular pela ideia de plano geral. Não toma ele posição pró nem contra a teoria da transformação das espécies; apenas entende que sem o princípio da destinação dos seres e dos astros é impossível algo explicar, desde a anatomia à mecânica celeste; nenhuma causa exterior, nenhuma influência mesológica se isenta dessa grande lei. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

C. Dentro da ideia de que existe um plano geral na Natureza, qual seria, na visão de Flammarion, o destino dos seres e das coisas?

Sobre isso, Flammarion é taxativo. Diz ele: “O destino integral, absoluto, dos seres é problema insolúvel na atualidade. É um problema que se abre insensivelmente como um abismo, quando procuramos sondar-lhe as profundezas”. E acrescenta: “O vasto problema da destinação dos seres e coisas envolve-nos na sua profundeza, sem que o possamos julgar nem resolver. Ele nos arrasta, quais infusórios microscópicos, perdidos no bojo dos oceanos, a procurarem compreender e explicar o fluxo e refluxo das águas”. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

Texto para leitura

1013. Na sua tendência para tudo referir à sua pessoa como centro exclusivo, o homem restringe os fatos e as ideias. Vimos que a sua teoria da causalidade é disso um exemplo e dos mais famosos. Quando se pretende que os frangos foram feitos para o espeto, não deixa de haver um tanto de personalismo na afirmação. Pode-se dizer, é verdade – de vez que o homem é onívoro e que sua constituição orgânica exige alimentação mista – que os animais e plantas de que se nutre destinam-se, efetivamente, a lhe prover a existência e que, sem eles, a espécie humana logo se extinguiria. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1014. Descer, porém, a minúcias particulares e afirmar que as perdizes fossem criadas para combinar com os temperos da culinária de Vatel; dizer que os bovinos foram principalmente destinados ao caldo gordo, ao bife com batatas etc.; que os quartos do carneiro e assados de vitela correspondem à finalidade originária das espécies ovina e bovina; que os feijões para nada prestariam se não fossem temperados e que as ameixas só foram douradas pelo Sol para serem saboreadas frescas ou em compota, e assim por diante, é incidir no vulgar; é esquecer o sistema geral da Natureza e acreditar que só o homem vive no Universo. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1015. Assim, vamos terminar, lembrando nossa proposição, que é substituir a ideia de causalidade particular pela ideia de plano geral. Não tomamos posição pró nem contra a teoria da transformação das espécies; apenas concluímos que sem o princípio da destinação dos seres e dos astros é impossível algo explicar, desde a anatomia à mecânica celeste; nenhuma causa exterior, nenhuma influência mesológica se isenta dessa grande lei. A teoria da seleção natural substitui, simplesmente, a intervenção miraculosa da causa criadora para cada espécie, por uma lei inteligente, universal. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1016. Ela deixa na Natureza o pensamento organizador do mundo sensível ao começo, ao meio como ao fim das coisas. Esta concepção do desenvolvimento do mundo, mais positiva e científica, não se baseia no casual nem no arbitrário. Apresenta o Universo como unidade viva, cuja existência se desenvolve e se eleva eternamente a um ideal inacessível, de conformidade com a ideia primordial. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1017. Origem e fim coexistem, simultaneamente, no atual. Do inorgânico ao orgânico, do orgânico ao vivente e do ser vivente ao inteligente há um ciclo, uma circulação material e uma ascensão intelectual, obedientes a uma razão dominadora. O mundo não é um jogo de disparates, é um poema no seio do qual não passamos de humilíssimos comparsas e cujo autor invisível nos envolve na sua radiação imensa, como a esses grãos de poeira que vemos flutuar numa réstia de sol. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1018. Ousemos confessá-lo! O destino integral, absoluto, dos seres é problema insolúvel na atualidade. É um problema que se abre insensivelmente como um abismo, quando procuramos sondar-lhe as profundezas... (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1019. Uma noite, em Paris, antes do pôr-do-sol, contemplava eu o Sena, debruçado à ponte do Instituto, de onde o panorama se apresenta às vezes maravilhoso. O horizonte purpurizado derramava uma luz rósea nas encarneiradas nuvens que se espalhavam pelo céu azul e essa luz, banhando a atmosfera da grande urbe, dava um aspecto mágico aos edifícios silenciosos. O rio, qual enorme rubi, rolava morosamente para Oeste, sumindo-se no indeciso da distância, onde se casavam a luz e a sombra. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1020. À minha esquerda, o zimbório sombrio cinzentava o casario e, além, duas fechas góticas espetavam o céu. À minha direita, as janelas do Louvre, reverberando uma iluminação feérica, emprestavam ao velho edifício desmesurada extensão. O bosque escuro das Tulherias e as alturas vaporosas de uma colina além prolongavam a perspectiva até às brumas do horizonte. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1021. Este panorama apresentava-se-me com duplo sentido: – era a ideia grandiosa da Natureza pairando sobre a massa de uma grande cidade humana. Pouco a pouco, sentia-me identificado com esse espetáculo de uma existência simultânea da Natureza e da cidade, existência permanente e, contudo, velha, mas cujo contraste não me houvera tocado ainda, tão vivamente. E contemplando esse duplo espetáculo, acompanhava os movimentos reais, quanto os aparentes, da Natureza. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1022. O Sol descia, lento, atrás das colinas; as nuvens se coloriam de um matiz mais róseo, o rio deslizava docemente para o mar distante; o ar refrescado agitava-se brando, como um ritmo respiratório. Esse movimento geral impressionava-me, por isso que o imaginava extensivo a toda a Natureza, e como que me desvendava a circulação total da vida planetária. Mas o motivo predominante da minha atenção era a ideia de que todo esse movimento se completava, como se o homem ali não estivesse. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1023. Em pleno centro de Paris, o homem afigurou-se-me um cifrão da Natureza. Os transeuntes que por mim passavam, ali, naquela mesma ponte, não admirariam, certamente, aquele magnífico pôr-do-sol. Os homens de negócios pervagavam absortos nos seus cálculos. Os dois milhões de almas que formigam adentro da cinta fortificada não me pareciam mais que um turbilhão efêmero neste setor do nosso globo. (Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1024. E eu dizia de mim para mim: eis que assim vai a Terra girando em torno da sua órbita e apresentando cada país, por sua vez, à fecundação solar; as nuvens percorrem a atmosfera, as plantas obedecem ao ciclo das estações; os rios correm para o mar, dias e noites se alternam, a harmonia terrena segue o seu curso regular, perpétuo... (Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1025. Mas, por que tudo isso? Os insetos com suas mandíbulas estrafegam pétalas, os passarinhos devoram os insetos, o gavião devora os passarinhos, ruge o leão nos desertos, baleias caçam na amplidão dos mares... Por que e para quê? (Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1026. Fontes límpidas ostentam, na solidão das matas, espelhos translúcidos em molduras de pervincas; regatos múrmuros despenham-se das colinas, ribeiros prateados misturam-se com os grandes rios para caírem nos abismos oceânicos e aí perderem a existência e o nome; ricas florações repontam e morrem no fundo tenebroso dos mares, apenas visitados por madréporas e corais, e, sob a atração celeste, o fluxo e refluxo dos mares desloca, de continentes a continentes, a massa líquida e formidável. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1027. Mas... que utilidade haverá em tudo isso? Essa vastíssima Natureza caminha impassível, mecanismo colossal, as coisas se renovam sem tréguas, o próprio homem não passa de átomo efêmero, que surge e funde-se num relâmpago. Deste universo imenso, o homem quase nada conhece, posto suponha conhecer tudo, e, de resto, empregando o tempo noutras cogitações. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1028. Antes que surgisse o homem, já essas mesmas harmonias vibravam como ao presente. Para que ouvidos, porém? Tudo existia antes dele e quiçá sem ele. Tudo existirá depois dele! Por que existe, aqui, esta Criação? Por que, sondando-lhe a profundeza, não posso eu idealizar qualquer resposta? Por que haveria Deus criado a Terra e a multidão infinita de outros mundos? (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1029. E por que, vendo a inquietude da minha alma, deixa-a debater-se no abismo da ignorância, como se não conhecesse Ele, o Criador, esse pensamento, qual o do grão de areia levado pelo vento, ou da gotícula d'água deste rio que aqui resvala, a meus pés? Por que e para que serve tudo isto? (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1030. Que importará a Deus haja um, milhões, ou nenhum mundo? Qual a finalidade desta obra? Ainda uma vez por que, ó Deus!, existe a Criação? E, contudo, este conjunto formidável tem uma finalidade. Este véu oculta um problema grandioso, que nos envolve e aniquila. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1031. Nesse dia, retirei-me silencioso, olhos cerrados, em nada mais atentando. Desaparecera o Sol, o Sena prosseguiu em seu curso, o manto da noite envolveu a cidade e logo entrei a ouvir o barulho ambiente. Mais tarde, muitas vezes, fui assaltado por essas mesmas reflexões, muitas vezes me vi constrangido a repetir a pergunta irretorquível – por que existe o mundo? E sempre o silêncio e o vácuo por única resposta! (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1032. Pois quê! Sempre que tentava uma resposta, questão mais grave se me impunha, consequente. Acompanhando esse movimento impassível da Natureza, minha alma por vezes se emancipou do tempo para interrogar-se onde estaria daqui a cem anos e, prosseguindo avante, imaginou, aterrada, o que poderia aguardá-la num milênio. (Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1033. Perpetuando o seu tesouro, viu que poderia viver ainda cem mil anos e perguntou o que seria nessa época. Sonhando mais longe o abismo, lá se foi ela, infatigável, por beirar um milhão de anos, de séculos! (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1034. E além dessas lindes, desses pontos já inacessíveis ao pensamento, ei-la a imaginar nova linha de igual extensão; depois, uma segunda, terceira, quarta, décima, centésima, milésima... Já na eternidade, então, percebeu que o tempo não existe e que a eternidade é imóvel... (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1035. Devo dizer que, por vezes, este último pensamento se tornava tão aterrador, diante do inexorável destino, que me aniquilava a noção de personalidade, como se esse quadro insustentável nos convidasse a esperar o repouso na morte ou como se essa contemplação, muito vasta para o cérebro humano, o houvesse espedaçado e suprimido do número dos cérebros inteligentes. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1036. Talvez não me assista o direito de assim vos entreter com as minhas impressões pessoais. No fundo, porém, não se trata aqui de um caso pessoal, mas de um estudo análogo ao do anatomista que sonda profundamente uma chaga desconhecida. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1037. Se o astrônomo se baseia em observações pessoais para fixar o seu sistema; se o químico fala pelo testemunho das suas retortas e análises particulares; se o físico examina a Natureza com seus próprios olhos, natural se torna que o pensador, a exemplo deles, conte o resultado de suas elucubrações e confie, eventualmente, aos que o ouvem, as inquietações e labores do seu espírito. No mínimo, há nisto um ato de sinceridade e o penhor de uma opinião, independente de qualquer sectarismo. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

1038. Sim! O vasto problema da destinação dos seres e coisas envolve-nos na sua profundeza, sem que o possamos julgar nem resolver. Ele nos arrasta, quais infusórios microscópicos, perdidos no bojo dos oceanos, a procurarem compreender e explicar o fluxo e refluxo das águas. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.) (Continua no próximo número.)



 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita