Um
desbravador moral
O céu pejado de estrelas
rebrilha na noite
silenciosa. Candeeiros
de azeite, suspensos nos
postes, iluminam as ruas
de terra. As águas dos
rios Tamanduateí e
Anhangabaú são límpidas
e correm refletindo o
luar, enquanto carros
puxados a cavalos
transportam os últimos
passageiros. A cidade
respira atmosfera
eminentemente rural. A
vegetação ainda
inexplorada se alonga em
vasto território, onde
animais silvestres que
escaparam dos caçadores
se aquietam para o
descanso noturno.
São assim as noites na
São Paulo de quase 28
mil habitantes, por
volta de 1850. Os campos
e chácaras vão formando
agrupamentos, vilas,
preparando-se para o
progresso que certamente
virá.
Algumas regiões de maior
concentração de pessoas
já acusam
desenvolvimento rápido.
O progresso tem pressa,
se espraia pelas
Freguesias da Sé,
Ifigênia e Brás, e vai
rasgando as paisagens
bucólicas e erguendo
pontes, abrindo ruas,
levantando casas. Ao
mesmo tempo, a
industrialização e a
cultura do café,
alavancando o
desenvolvimento
econômico do Estado de
São Paulo, trazem
reflexos à capital,
transformando-a em
núcleo cultural
importante. A
proliferação das
publicações literárias e
a presença de acadêmicos
da Faculdade São
Francisco, dentre eles
Rui Barbosa, enriquecem
a vida política e
literária da cidade, já
por volta de 1860.
Peças de teatro com
temas nacionais começam
a substituir os
dramalhões estrangeiros,
e Martins Pena, João
Caetano, França Júnior
são encenados com grande
sucesso, assim como as
sessões de música
erudita e popular enchem
os auditórios. O palco é
o do Teatro São José,
com 1200 lugares,
situado no Largo São
Gonçalo, a atual Praça
João Mendes, no centro
de São Paulo.
Rua do Espírita
Mas há um teatro bem
menor, com apenas 200
cadeiras. É o teatrinhodo
português Antonio
Gonçalves da Silva,
conhecido como Batuíra,
que funcionará entre
1860 e 1870 na hoje Rua
Quintino Bocaiúva. O
local atrai estudantes e
intelectuais. Batuíra é
muito querido pelos
frequentadores e o clima
ali é sempre de humor e
boa cultura. A
repercussão do seu
trabalho pioneiro no
teatro irá render-lhe
reconhecimento e muitas
citações de escritores e
historiadores em obras
relacionadas à história
de São Paulo.
Nascido em Portugal a 19
de março de 1839, o
menino vem para o Brasil
com 11 anos. Ganha a
vida como vendedor de
jornais, ajudante no
comércio, lavrador,
tipógrafo. Logo funda um
jornal, revelando desde
cedo um caráter muito
dinâmico.
Mostra seus elevados
princípios de justiça e
caridade quando colabora
com o movimento
antiescravagista, dando
proteção a escravos
foragidos. Sabe-se que
faz parte de um grupo
abolicionista,
colaborando e ajudando a
manter um boletim em
defesa da causa. No
grave surto de varíola
que se abate sobre São
Paulo em 1873
evidencia-se ainda mais
o valor humanitário da
sua alma. Mesmo lidando
com a virulência
contagiosa da doença,
Batuíra desdobra-se em
solidariedade, cedendo
sua própria casa para
recolher e tratar os
doentes. Sua figura se
populariza.
Com seu espírito
empreendedor consegue
folga financeira, compra
terras desvalorizadas na
região do Lavapés e
constrói casas para
alugar. O progresso
acelerado forma ali uma
vila, onde surge a “rua
do espírita”, mais tarde
Rua Espírita, existente
até hoje.
Alegria no velório
A vida empreendedora vai
muito bem, no entanto,
uma nova etapa propõe
mudanças para Batuíra.
As atividades de caráter
pessoal e de intensa
presença junto aos
desvalidos ganharão
novos contornos.
Nesse período (1883), a
calma da vida familiar é
rudemente abalada pela
morte de seu segundo
filho, de doze anos.
Esse episódio marca sua
aproximação do
Espiritismo.
É precisamente no
velório do filho, em
meio a rezas, choro e
manifestações de
tristeza que Batuíra,
embora respeitando o
apoio sincero dos
amigos, surpreende a
todos, protagonizando um
lance inesperado.
Inquieto, um tanto
sobressaltado, sai da
sala mortuária e vai
para o quarto, onde se
isola em oração
fervorosa, pleiteando
uma resposta de Deus à
sua dor.
Segundo seu próprio
depoimento, mais tarde,
viu a formação de uma
luz que foi trazendo aos
poucos o vulto do filho
Quinho, que lhe disse:
“Pai, não fique triste.
Eu não morri. Estou mais
vivo do que nunca”.
A visão do filho
transmitindo-lhe calma
foi a maior emoção que
Batuíra pôde sentir em
vida. Volta ao velório
e, espantando a todos os
presentes, diz: “Não
quero mais choro aqui.
Meu filho não morreu.
Meu filho vive (...). Eu
só quero alegria a
partir deste instante”.
Sai à rua e quando
retorna traz uma banda a
tocar dobrados, polcas e
marchas festivas...
A vertente do amor
As leituras espíritas
levaram Batuíra a
compreender a Doutrina
sob o aspecto da
caridade e do amor ao
próximo. A índole
solidária que lhe é
inata desabrocha de vez,
a ponto de espantar a
sociedade paulistana o
fato de um homem
abastado dedicar-se com
tanto afinco àqueles que
nada lhe podiam
retribuir.
Sempre envolvido com os
ideais fraternos funda
centros espíritas,
participa do movimento e
se preocupa com a união
dos espíritas. Com o
crescente interesse dos
paulistas pelo
Espiritismo, Batuíra vê
a possibilidade de
iniciar a divulgação da
Doutrina através de um
periódico. Compra uma
tipografia e, em 1890,
lança o primeiro número
do jornal Verdade e Luz,
que se autodefine como
“Órgão do Espiritismo
Científico” e que chega,
em certos períodos, à
incrível tiragem, para a
época, de 15 mil
exemplares.
Escreve artigos e refuta
acusações contra o
Espiritismo. Boa parte
dos seus recursos
pessoais é despendida
nos 18 anos de sua
publicação.
A imprensa leiga noticia
sua morte
Depois de uma vida
extremamente ativa e
solidária, Batuíra se
despede do mundo físico
a 22 de janeiro de 1909.
Sepultado no Cemitério
da Consolação, em São
Paulo, seu falecimento é
noticiado em muitos
órgãos da imprensa. O Diário
Popular informa: “Cerca
de uma hora da madrugada
faleceu nesta Capital o
Sr. Antonio Gonçalves da
Silva Batuíra, muito
conhecido e estimado em
nosso meio”.
Batuíra teve forte
presença na obra
psicográfica de Chico
Xavier. Nos anos 1940,
se materializou várias
vezes nas célebres
sessões com o médium de
efeitos físicos
Peixotinho, no Rio de
Janeiro. É tido como uma
das grandes figuras da
história do Espiritismo
em São Paulo e no
Brasil.
(Baseado no livro Batuíra
– Verdade e Luz, de
Eduardo Carvalho
Monteiro, Lúmen
Editorial, 1999.) |