Livro do Cesar Perri propõe união, mas de
partida exclui parcelas expressivas do
espiritismo brasileiro
O que seria uma união entre as forças espíritas
do Brasil? Essa pergunta surge de imediato
quando se toma o recente livro escrito por
Antonio Cesar Perri de Carvalho, publicado pela
Editora EME, de Capivari, São Paulo.
Desde que saiu de Brasília e voltou a residir em
São Paulo, após deixar a presidência da FEB,
Cesar Perri iniciou uma jornada intensa de
reflexões críticas sobre o movimento espírita
brasileiro no que tange à sua organização
político-administrativa. O seu livro – União
dos espíritas. Para onde vamos? – é o resumo
dessa jornada e do seu pensamento atual.
A questão, como sabem todos aqueles que estudam
o assunto, é antiga e cheia de curvas, desvios e
atalhos. Além do mais, está no cerne de toda
filosofia que propõe a paz e se funda na
espiritualidade humana a busca pela união de
pensamentos e ações entre os seres. O
espiritismo está entre as mais distintas
filosofias e esse propósito de união subjaz como
sentimento natural entre os seus adeptos e
admiradores, o que pode ser observado desde os
primórdios da chegada da doutrina no Brasil, na
segunda metade do século XIX.
Nesse período de cerca de 150 anos de presença
do espiritismo em solo brasileiro, as tratativas
de união e sua efetivação são uma história cujo
resumo é uma pálida e frágil peça, onde os
grupos excluídos, poucos no início, se
multiplicaram a ponto de se questionar hoje,
como o faz Cesar Perri, sua validade para os
novos tempos. A evidência é que responde
enfaticamente: a união que aí está não
representa os anseios nem a realidade do
espiritismo do século XXI, embora a união
continue sendo um objetivo importante.
De que realidade falamos? Falamos de uma
realidade totalmente diferente da que se
apresentava há 150 anos atrás e daquela que se
mostrou na metade do século XX, quando se
empreendeu uma união de forças parciais em torno
da FEB. Cesar Perri está correto quando
relaciona os pontos capitais da empreitada pela
união dos espíritas, mas os deixa em aberto com
sua forma relatorial de apreciar esses pontos e,
quando os observa criticamente, mostra-se ainda
com a mesma parcialidade de antes.
O que seria, hoje, uma união verdadeira? Este é
o centro da questão. Não nos referimos à união
possível, esta expressão acobertadora das
fraquezas humanas, mas de uma união que possa
levar o espiritismo à frente com um mínimo de
coerência, além de representá-lo em sua face
contemporânea. União que não seja falseada por
justificativas sem base doutrinária perante uma
sociedade carente de objetividade e franqueza,
que se mostra admiradora das teses básicas do
espiritismo.
Cesar Perri tem experiência e uma trajetória
respeitável no espiritismo brasileiro, mas não
logra, em seu livro, apresentar uma proposta
capaz de atender à nova realidade, e não o faz
por uma série de razões. Mostra-se ele preso a
conceitos limitados pela própria experiência que
vivenciou, de forma que a proposta não contempla
a realidade por falta de ousadia capaz de romper
os cordões que limitam a visão. Com isso, incide
nos mesmos erros de 1949.
Vejamos.
Cesar Perri parte do chamado Pacto Áureo,
nascido das entranhas da montanha de interesses
alimentados na época em que ocorreu. E dá a este
mesmo pacto uma importância tal que o considera
o documento base de um novo pacto. Aqui está o
elemento limitador e excludente. O Pacto Áureo,
de saída, excluiu parcela considerável de forças
espíritas e privilegiou apenas as forças
reconhecidas pelos autores e participantes do
pacto. Assim se mantém até os dias atuais,
tendo, inclusive, se fortalecido nos mesmos
pontos que o fragilizam, ou seja, tornou-se
explicitamente excludente, pois aqueles que não
pensam pela cartilha do pacto são considerados
incapazes, sem as condições necessárias para
dele participarem.
Partir do Pacto Áureo significa manter as coisas
como estão em termos de representatividade de
forças. Reformá-lo ou transformá-lo num texto
atualizado será apenas atender a uma possível
demanda da atualidade e manter o que ele tem de
mais retrógrado. O Pacto Áureo é o elemento
justificador de uma autoridade frágil, pois se
baseia numa outorga de poder que tem
centralidade nas federativas estaduais reunidas
em torno da FEB, como se apenas elas fossem as
forças espíritas do Brasil, com reconhecimento
para tanto.
Cesar Perri, como admirador e defensor da
importância do Pacto Áureo, pois nele reconhece
uma ação da espiritualidade maior, que teria
sido responsável direta pela reunião dos que
assinaram o documento em 1949 (visão esta um
tanto romântica), reconhece que o texto deve ser
atualizado, mas não atina com o fato de que a
reforma assim feita e quando feita será
semelhante à referida por Jesus, quando fala do
remendo novo em veste velha. Em algum lugar mais
o tecido há de rasgar novamente.
O Pacto Áureo nunca foi pacífico. Parcelas
consideráveis da inteligência espírita da época
o reprovaram. Herculano Pires talvez tenha sido
aquele que mais diretamente apontou suas falhas
e incoerências. De um lado o classificou como
“pacto aéreo” e de outro profetizou, de modo
acertado, que esta era uma forma de criar
receitas tipo de bolo para uniformizar o
movimento espírita, ao melhor estilo vaticânico,
o que de fato ocorreu e continua ocorrendo. A
proposta de Cesar Perri pretende dar autonomia
ao Conselho Federativo Nacional, rompendo com as
amarras que o prendem à FEB – o que é
reivindicado desde sempre – mas não prevê a
presença e participação das diversas forças
espíritas atuantes da sociedade contemporânea.
Isso significa não as reconhecer e não
reconhecer, também, o poder delas como
influenciadoras da opinião pública e da difusão
do pensamento espírita, o que é um erro
tremendo.
O Pacto Áureo representa um modelo autoritário
inapropriado para os propósitos da filosofia
espírita em que o respeito à liberdade se coloca
como ponto capital, seja pelo que propõe, seja
pelo fato mesmo de manter uma união em torno
apenas das federativas estaduais aceitas como
tal. Herculano Pires já dizia que nenhuma delas,
aí incluindo a FEB, tinha autoridade moral para
tanto, uma vez que estavam eivadas de vícios
anti-doutrinários e não consta que a situação
tenha se modificado minimamente. Ora, como fazer
uma união de forças apenas em torno delas,
excluindo, inclusive, algumas destas, bem como
as demais forças não representadas por elas?
Como defender fidelidade doutrinária como ponto
de partida para a união, se nenhuma das
federativas a possui em grau exemplar, mesmo
porque isso é uma impossibilidade humana.
O desafio se apresenta na resposta à pergunta
feita no subtítulo do livro de Cesar Perri: para
onde vamos? Não é apenas a busca de um lugar
imaginário, aonde a união se dá em torno de
forças aceitas pelos poucos que a compõem.
Trata-se de responder em que direção seguiremos,
na da pluralidade real e incontestável, como
forma de responder objetivamente à realidade do
mundo, ou na direção já estabelecida, por si
mesma excludente. Uma união baseada na
pluralidade surge como reconhecimento de que os
contrários são essenciais ao progresso dos seres
e do pensamento espírita, enquanto que uma união
feita apenas pelos que se reconhecem tende a
gerar um movimento amorfo, incapaz de absorver o
progresso e, portanto, de se manter no mundo.
Trata-se de optar entre duas propostas: uma,
tradicional, cujos resultados aí estão, e outra,
nova e necessária, mas ao mesmo tempo
tremendamente desafiadora. A resposta pode ser
colhida dentre os documentos oferecidos por
Cesar Perri em seu livro, nos argumentos de
Kardec e Bezerra de Menezes. Este diz:
“Solidários, seremos união. Separados uns dos
outros seremos ponto de vista”. Ou seja, a união
não está mais na exigência do abandono do livre
pensar, que aqui e ali indevidamente se coloca,
mas ao contrário, no respeito mesmo ao direito
de livre pensar e na diversidade que este
estabelece.
Pergunta-se, então: o que deve balizar um
projeto de união em que a diversidade deve ser
respeitada e reconhecida? Neste caso, a resposta
vem de Kardec e está numa simples sentença do
seu projeto para a Comissão Central, que Cesar
Perri reproduz. Diz, então, o codificador: “O
essencial é que sejam acordes no tocante aos
princípios fundamentais”. E mais à frente Kardec
explica: “Sobre as questões pendentes de
detalhes, pouco importa que divirjam, porquanto
a opinião da maioria é que prevalecerá”.
Fique, pois, claro: Kardec coloca como essencial
a união em torno dos princípios básicos do
espiritismo, que são aqueles sobre os quais sua
filosofia se assenta. Quais são e que
importância têm, todos sabem. Tudo o mais é
opinião resultante do modo particular de ver e
interpretar, direito inalienável do ser humano.
Não se propõe, pois, união em torno de verdades
resultantes do modo de ver e da interpretação
pessoal, mas sobre verdades factuais,
doutrinárias, que implicam a aceitação geral,
plural.