"O Evangelho segundo o Espiritismo” ou “O
Espiritismo segundo o Evangelho”?
A primeira edição da obra “O Evangelho segundo o
Espiritismo” (ESE) foi publicada em 1864. Quando foi
publicado o ESE, a chamada “Codificação” já possuía “O
Livro dos Espíritos” (OLE) e “O Livro dos Médiuns” (OLM)
previamente publicados, além de outras obras como “O que
é o Espiritismo” (OQE) e várias edições da “Revista
Espírita”. Allan Kardec considerava OLE e OLM as duas
obras fundamentais da Doutrina Espírita, e sugeria a
sequência OQE, OLE, OLM para os neófitos que quisessem
conhecer e estudar o Espiritismo. Assim, quando o ESE
foi lançado, os princípios básicos da Doutrina Espírita
já estavam solidamente apresentados e discutidos.
Obviamente, essa sequência específica de publicações não
ocorreu por acaso e poderíamos afirmar que ainda temos
que refletir sobre o seu significado.
É importante frisar que o OLE e OLM foram livros
fundamentalmente revelados, ou seja, seu conteúdo de
informações é de origem mediúnica, portanto do Mundo dos
Espíritos, cabendo ao gênio Allan Kardec o papel de
interlocutor, questionador, organizador e sintetizador
desse volume de informações extraordinárias. O processo
de elaboração do ESE é significativamente diferente,
pois se trata de um livro que contempla muitas reflexões
de Allan Kardec, o qual, orientado pelo aprendizado
conseguido com o OLE e OLM, discute passagens do
Evangelho, elaborando capítulos e enriquecendo-os com
mensagens mediúnicas condizentes com o conteúdo do
respectivo capítulo nas intituladas “Instruções dos
Espíritos”. Logo, Kardec interpreta o Evangelho com base
nos princípios elucidados pela Falange do Espírito de
Verdade nas obras OLE e OLM, complementando suas
análises com textos inéditos focados principalmente em
questões morais.
Apesar de nascer como ciência, através da investigação
do fenômeno mediúnico, o conteúdo da Codificação
apresenta elevada proposta e discussão moral, com
profundas implicações em termos de religiosidade, desde
a primeira edição de OLE publicada em 18 de abril de
1857. Além disso, Jesus já aparece como modelo e guia da
humanidade nessa primeira edição (questão 301 da
primeira edição, que, posteriormente, aparecerá como
questão 625 da segunda edição). Portanto, sete anos
antes da publicação do ESE e literalmente desde o início
do Espiritismo.
O ESE não representa uma “ruptura” na construção
doutrinária elaborada até sua publicação, mas consiste
em um aprofundamento do seu aspecto moral já claramente
identificado e discutido nas obras anteriores. Nesse
sentido, a necessidade dessa obra tem relação com a
excelência do conteúdo moral do Evangelho. Se Jesus é o
ser mais perfeito que habitou a Terra, a sua moral deve
ser a mais elevada para servir de guia para a
espiritualização do homem e, portanto, uma profunda
fonte de subsídios para o nosso amadurecimento
espiritual. Ademais, nossa busca por moralização sempre
esteve predominantemente associada à religião, em
comparação com a filosofia e com a Ciência (pelo menos,
para a grande maioria das pessoas). No entanto, essa
busca por moral e compreensão espiritual da vida sempre
foi acompanhada por práticas e crenças supersticiosas,
dogmáticas, frequentemente associadas a tradições sem
maiores reflexões racionais.
Uma vez consolidadas as bases doutrinárias, seria
interessante aprofundar seu aspecto moral e
concomitantemente aprofundar uma busca por uma
religiosidade mais racional, com especial destaque para
os textos evangélicos. Esse trabalho faria com que o
tema religioso pudesse ser iluminado por uma visão
lúcida, sem tabus, dogmas e visões completamente
dissociadas da racionalidade presente na filosofia e na
ciência.
Na obra “O Céu e o Inferno” (CI), a realidade espiritual
pós-morte e sua relação com a vida moral que “as almas
dos homens que viveram no mundo” tiveram é desdobrada.
Em “A Gênese” (GEN), vários ditos “milagres” de Jesus
são analisados tendo por base a compreensão de uma série
de aspectos previamente elucidados pela Doutrina, tais
como perispírito, magnetismo, fenômenos mediúnicos,
influência do nível moral na qualidade fluídica, lei de
causa e efeito etc. Interessantemente, Kardec levanta
hipóteses sem fechar uma conclusão para algumas
narrativas evangélicas, demonstrando o seu cuidado em
relação ao problema da credibilidade de cada texto
atribuído aos evangelistas.
Fica evidente que o Espiritismo não nasceu como uma
reforma religiosa, mas nasceu como ciência que aborda a
questão espiritual e, por conseguinte, de profundas
implicações religiosas. Inevitavelmente, essa nova visão
sobre a questão espiritual da vida forneceu uma nova
perspectiva para práticas religiosas contundentemente
distintas de práticas de religiões tradicionais.
É possível pontuar que o estudo do evangelho em uma
visão espírita, isto é, tendo uma compreensão prévia dos
postulados espíritas, permite que o Evangelho seja
entendido de forma mais criteriosa e com implicações
práticas mais efetivas em nossa vida moral. Logo, o
Evangelho apresenta-se mais profundo e belo porque fica
mais compreensível e aplicável, ao contrário do que
muitos vivenciam, ou seja, acham que o Evangelho é belo
justamente porque não o compreendem.
O estudo do Espiritismo naturalmente contempla o
Evangelho, mas não se restringe a ele. O Espiritismo não
é um apêndice menor do Evangelho e nem se trata de uma
espécie de subordinado hierarquicamente. Algumas
tendências nesse sentido não deveriam ser estimuladas,
pois submetem e reduzem o estudo doutrinário aos limites
dos registros obviamente precários e sintéticos dos
textos bíblicos. Essa tendência, uma vez implementada,
levaria os estudantes de Espiritismo ao labirinto
infindável das polêmicas sobre falíveis textos humanos
tidos como sagrados, o que, aliás, é enfatizado por
Allan Kardec no início do ESE.
Allan Kardec, que estudou com uma profundidade
extraordinária o Evangelho de Jesus, não demonstrou, que
se saiba, uma preocupação em elaborar uma “tradução
espírita” do Evangelho e muito menos uma
hipervalorização de aspectos meramente textuais. Kardec,
em nenhuma passagem, sugere que estudemos todos os
versículos, porque percebe que muitos deles são bastante
duvidosos. Para Kardec, a tradução de Saci tinha uma
qualidade satisfatória. Kardec valoriza, mas não
hipervaloriza os textos evangélicos, tomando cuidado
para não tomar uma passagem que poderia não ser real
como fidedigna, vide o capítulo “Moral Estranha” do ESE.
O Espiritismo apresenta um amplo espectro de nuances
temáticas que podem ser investigadas por estudiosos com
diferentes predileções e tendências em termos de
iniciativa de investigação intelectual. No entanto,
transformar pesquisas acessórias elaboradas por
aficcionados de diferentes matizes em metodologia e/ou
programas de estudos sistemáticos é um salto perigoso,
pois tende a distorcer a compreensão da Doutrina
Espírita como um todo. O tríplice aspecto doutrinário
representa um equilíbrio entre as diferentes formas de
estudar, favorecendo a identificação de exageros e
omissões em nossas estratégias de aprendizado
doutrinário.
Um programa que proponha o estudo do Velho Testamento ou
do Apocalipse, por exemplo, para confrades que não
estudaram o OLE e OLM com profundidade, não parece ser a
melhor tática educativa, pelo menos para a grande
maioria das pessoas, se nosso compromisso é com o
aprendizado doutrinário. A famosa estratégia conhecida
como “Comece pelo começo” ainda parece bastante
razoável.
Mesmo que o caminho percorrido não tenha seguido essa
orientação (“Comece pelo começo”), não se deve perder de
vista a noção do todo e dos objetivos a serem atingidos
em termos de formação doutrinária, o que muitas vezes
não parece ser considerado, levando-se em conta,
inclusive, os temas de eventos espíritas, palestras e
seminários de vários setores de nosso movimento.
A renovação nas práticas religiosas proposta pelo
Espiritismo não consiste em simplesmente eliminar as
imagens, rituais e práticas típicas de ambientes
religiosos, mas também envolve os temas a serem
estudados e a maneira pela qual eles devem ser
estudados, para que a cultura e a mentalidade espíritas
avancem substancialmente. Analisemos, por conseguinte,
nossas vivências em nossa casa espírita e nossas
atividades no movimento espírita de uma forma geral.
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