Brasil
por Wilson Garcia

Ano 12 - N° 609 - 10 de Março de 2019

 

40 ANOS DEPOIS


Herculano Pires, o ícone ainda desafia os estudiosos da boa doutrina


“Enganam-se os que pensam na morte como morte.” J.H.P.


O cemitério São Paulo estava repleto naquela tarde de 9 de março de 1979. Familiares, amigos, admiradores, curiosos e autoridades do meio espírita e da sociedade assinavam com sua presença o livro da despedida, do até breve. O sol banhava de luz amarelo-claro os túmulos, já desenhando a sua parábola descendente, como a dizer que também se encerraria no túmulo da noite. O corpo de Herculano, então com quase 65 anos de vida, estava colocado sobre a lápide, também pronto a encerrar seu ciclo, mas, assim como o sol renasceria na manhã seguinte, também Herculano retornaria para mais uma vez dizer que não só a morte é um engano, como também vivos são igualmente os que dizem os daqui estarem mortos.

No lento processo de construção do destino, Herculano Pires jovem ainda impressionou não só o mundo dos que o rodeavam, mas intelectuais distantes, de capitais onde a intelectualidade se destacava, com suas produções iniciais, em prosa e verso. Pelos vinte anos, o jornalista que já agia movimentando prensas e penas, viu-se frente aos primeiros contatos mediúnicos de uma carreira que dali em diante não deixaria mais a doutrina que lhe abria os olhos e alimentava o saber: o espiritismo.

Sua biografia está traçada por linhas expressivas saídas da pena rigorosa de Jorge Rizzini, que o acompanhou por quase trinta anos. Esse reconhecido autor, já ao final do texto biográfico, o denomina “homem múltiplo”. Quando, pois, as portas da mediunidade colocaram Herculano Pires no contato afetivo com médiuns de excelentes condições, os espíritos fecharam os laços e estabeleceram a convivência que prosseguiria pela vida afora, num tipo de casamente intelecto-moral. Sem ser médium, Herculano Pires descobriria que também o era e quem afirmaria essa condição seria ele próprio, ao desdobrar as letras assinadas por Kardec. Afinal, médiuns todos somos.

Herculano jovem encontra dois extraordinários médiuns

Dois foram os médiuns dos primeiros tempos de Herculano Pires: Ciro Milton de Abreu, um profissional ferroviário, e Urbano de Assis Xavier, cirurgião-dentista. Duas expressões de altíssimo caráter moral e de classe social diferente, como a dizer àquele que se tornaria o mais profícuo, intenso e profundo pensador espírita brasileiro que o espiritismo pertence ao homem de todos os matizes afetivos, de todas as classes e de todas as latitudes. Herculano viu fenômenos mediúnicos extraordinários, participou deles e foi por eles marcado em profundidade, para jamais olvidar. Quando, portanto, instalou-se na capital paulista de modo definitivo, em vez de colocar na garagem de sua residência o automóvel que não tinha, fez daquele recanto pequeno o espaço para estudos espíritas, onde a mediunidade reinava ao lado do esforço de refletir sobre a filosofia que Kardec descerrou à Humanidade. Semanalmente, por anos, a casa estava em festa espiritual.

A vida toda, Herculano enfrentou problemas materiais de toda ordem e jamais foi ou desejou ser um homem destinado às posses e ao patrimônio. O que não quer dizer que não lutasse para obter meios financeiros que facilitassem a manutenção da família e o alcance de condições melhores para exercer suas diversas propensões às letras. Nem mesmo as relações com médiuns que prosseguiram pela vida afora seriam por ele confundidas com oportunidade de meios facilitadores. Isso o feriria de morte.

A verdade que esclarece, liberta. O homem precisa dela.

Dois outros médiuns aparecem na vida de Herculano Pires, naquela linha do horizonte em que o homem múltiplo vai-se firmando aos olhos do mundo. São eles: Hercílio Maes e Pietro Ubaldi. Mas as condições colocadas, agora, são diferentes. Não se trata de compartilhar fenômenos físicos e intelectuais, mas de se colocar no campo de batalha a fim de exercer o dever de condenar a mentira e defender a verdade, condição que é, também, de todo cidadão de bem.

Hercílio Maes vai apresentar ao mundo obras assinadas por Ramatis, com ideias, aspectos teóricos e afirmações que atingem o bom senso e o conhecimento estável e sólido da doutrina espírita. Herculano Pires sabe-se fortalecido pelos amigos invisíveis e coloca-se no campo de batalha, desprendido de qualquer interesse escuso. Sua voz é firme, seus argumentos são como a espada que constrange o propagador da mentira.

Tal vai ocorrer, também, com Pietro Ubaldi, cuja grande e expressiva obra se transporta da Itália para solos brasílicos pelas mãos do seu próprio autor e aqui é saudada pela intelectualidade brasileira e, particularmente, a espírita. Herculano está entre estes admiradores do livro A grande síntese e o vê como obra de grandeza extraordinária. Mas já aqui instalado, Pietro Ubaldi, que não se dizia espírita, começou estabelecer injustas críticas à doutrina de Kardec, até chegar ao congresso espírita pan-americano de Buenos Aires e apresentar proposta para substituir os livros kardecianos pelos seus.

Herculano não se fez de rogado e analisou, ponto por ponto, a absurda pretensão do culto italiano. Elencou em um documento levado à imprensa os principais aspectos da proposta ousada, a todos analisando e apontando suas incoerências. A proposta de Ubaldi ao congresso, do qual Herculano não participou, foi recusada e nos anais daquele evento, ao lado da reprovação da petição ubaldina, o documento que aparece é o assinado por Herculano Pires.

Quando a ilusão é lançada no rio límpido a água se torna turva.

O conhecido bastonário francês, Jean Baptiste Roustaing, não ficaria ausente das lentes piresnianas. Condenado por Kardec por suas absurdas teses e pela pretensão de ser portador de uma nova revelação, que objetivava integrar-se ao espiritismo, encontrou em solo brasileiro apoiadores influentes, introduzindo um domínio em parte do movimento espírita. Roustaing não era médium propriamente dito, mas se valia de uma única médium de sua confiança para defender suas absurdas ideias. Herculano Pires uniu-se ao espírita de conhecida capacidade intelectual Júlio Abreu Filho, e juntos produziram uma peça literária em que detalham os principais pontos da obra roustainguista, apontando suas incongruências e ambiguidades, além dos aspectos que se chocam com o bom senso espírita.

Nas plagas mineiras um canivete risca o espaço e atrai multidões

A história de Herculano Pires com médiuns e mediunidade, contudo, teve expressiva e duradoura produção literária com dois outros reconhecidos expoentes: Zé Arigó, médium de cura que produzia fenômenos extraordinários com sua faca enferrujada, e Chico Xavier, o médium que durante quase oitenta anos assombrou o mundo com sua pena psicográfica. As relações de Herculano Pires com ambos ultrapassaram a distância e admiração para alcançar o plano da intimidade afetiva.

Herculano foi o amigo, o jornalista e o escritor junto a Arigó. Observou por diversos períodos os fenômenos em seus desdobramentos, anotou, estudou, conversou com atendidos, acompanhou casos e acabou por produzir um livro – Zé Arigó, vida, mediunidade e martírio – que é um verdadeiro brado e ao mesmo tempo incisivo chamamento à comunidade científica no sentido de cumprir o dever de pesquisar o médium e os fenômenos por ele produzidos.

O brado – é preciso dizer – não foi dirigido apenas aos homens de ciência, mas também aos espíritas, dado que as resistências ao médium de Congonhas do Campo vinham destes também, por causa, segundo Herculano Pires, da falta de compreensão do fenômeno mediúnico e em boa medida do preconceito contra a mediunidade curadora nos moldes da exercida por Zé Arigó.

A mão que toca um violão... toca também os corações

Finalmente, aparece no cenário a figura do reconhecido mundialmente Francisco Cândido Xavier, o médium das letras, que deixaria uma obra de mais de 400 livros e dezenas de autores espirituais. Herculano e Chico, desde muito antes do famoso programa Pinga Fogo, da antiga TV Tupi, que levou pela primeira vez o médium mineiro a todo o público brasileiro, mantinham relações baseadas no respeito e na compreensão da importante missão que cada um deles desempenhava junto ao espiritismo.

Dessa parceria em que um apoia o outro, nasceram atividades comuns, estudos, publicações (Herculano assina com Chico Xavier nada menos do que cinco livros – quatro resultantes da publicação de mensagens de Chico com comentários de Herculano no jornal Diário de São Paulo e um escrito a partir do episódio da publicação da tradução de O evangelho segundo o espiritismo, feita por Paulo Alves Godoy e lançada pela Federação Espírita do Estado de São Paulo).

Em outros livros de sua autoria, Herculano Pires se refere por várias vezes a opiniões de Emmanuel, André Luiz e outros, mas o faz com a postura do homem isento, analítico, sendo quando preciso crítico, sem o deslumbramento que às vezes contamina os admiradores do médium. As amizades para serem fortes precisam ser francas e honestas. Por essas e outras, Chico teve por Herculano um respeito imenso, junto a uma admiração incontestável. Emmanuel, guia do Chico, cunhou a famosa frase que qualifica Herculano Pires como “o metro que melhor mediu Kardec”.

Aquele que caminha junto não teme tempestades

Deixo Jorge Rizzini para o fim desta crônica-reportagem. Muitos, talvez, entendam que deveria finalizar com Chico. Mas Rizzini tem sua importância singular na vida de Herculano Pires, o que muitos desconhecem. Foi ele o amigo inseparável, diário, presente em todos os principais acontecimentos da vida de Herculano e este o respeitava de um modo especial. Foi Herculano o grande incentivador do lado mediúnico de Rizzini e foi, também, aquele que prefaciou os livros que Rizzini produziu sob a inspiração dos espíritos, fazendo não simples prefácios, mas verdadeiras análises da produção mediúnica e dos autores espirituais que assinam as obras. Foram esses prefácios que barraram as desconfianças lançadas por inúmeras pessoas do meio espírita quanto a ser Rizzini, além de excelente e laureado escritor, também médium.

Com Rizzini foi diferente de todos os outros médiuns, não que tivesse sido mais e melhor, não se trata disso. Foi diferente, extensa, íntima, forte a relação dos dois, relação que se estendia porta adentro de suas residências. Rizzini acreditava que já tivera vidas anteriores ao lado de Herculano desde os tempos gloriosos da Roma antiga. Juntos, viveram momentos difíceis em defesa do espiritismo. Vários episódios o registram, tais como: a batalha pela compreensão do importante trabalho mediúnico de Zé Arigó, o programa de rádio apresentado por Herculano Pires na Rádio Mulher, a luta pelo respeito aos textos originais de Kardec, culminando com o episódio da tradução da obra repleta de adulterações, mencionada acima; os debates na TV com o padre Quevedo e outros. Herculano Pires e Jorge Rizzini marcharam juntos, até o último suspiro de ambos.

Aqui, a amizade não se prendia apenas aos aspectos mediúnicos, pelo contrário. Rizzini e Herculano conheceram-se pelas vias da intelectualidade, quando Rizzini era um autor nascente e bem-sucedido e Herculano já estava notoriamente encaminhado. Rizzini era aquilo que denomino escritor mediúnico, sem o saber ou sem ainda o reconhecer, pois era questão de tempo para que isso ocorresse. Quando, pois, Rizzini passa a dar mais atenção à sua mediunidade, Herculano torna-se para ele o amigo experiente, capacitado e de inteira confiança para avalizar a produção literária daí derivada.

Foram os dois escritores e jornalistas, enquanto Rizzini era também médium ostensivo e Herculano não. Em contrapartida, Herculano tinha a veia do poeta e do filósofo, do professor e do romancista. Era, enfim, o homem múltiplo que Rizzini fazia questão de apontar, a maior inteligência espírita do século XX.
 

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita