Vaidade ou inveja?
O movimento espírita brasileiro também tem sido sacudido
pelas mudanças e transformações vigentes no mundo. Isso
causa dor e alegria. Dor porque o processo de mudança
exige adaptação. Alegria porque vislumbram-se novos
horizontes.
Ulrich Beck (2016) ousou dizer – e defendeu a sua
ousadia – que não se trata de mudança ou transformação e
sim “metamorfose”. Na busca por explicar o processo que
se vive na atualidade, o autor alegou “falência” de
definições. Se ele tivesse conhecido a doutrina
espírita, talvez compreendesse que se trata de um
período de “regeneração” com profundos ajustes
acontecendo em diversos campos da vida.
A mudança no movimento espírita vem ocorrendo a partir
do enfraquecimento de instituições seculares, que antes
ditavam o ritmo da divulgação doutrinária e
consequentemente dos seus profitentes. A rede mundial de
computadores (www.) encurtou distâncias e permitiu a
proliferação de pensamentos e sentimentos que demonstram
necessidades diferentes daquela estrutura patriarcal
estabelecida no campo físico. O exemplo da Igreja
Católica é inequívoco: o Papa “saiu” do Vaticano pelas
redes sociais e conseguiu arrebanhar mais simpatizantes
do que se estivesse apenas em seu trono dourado. Ele
apresentou ao mundo um pensamento contemporâneo,
sensibilidade e fraternidade, pautados nas diretrizes do
Cristo. Aliás, ele foi ousado e demonstrou riqueza de
caráter quando trocou o trono de ouro por uma cadeira de
espaldar alto.
Nas décadas de 1980 e 1990, palestrante espírita
conhecido em todo Brasil era o Divaldo Franco. Um ou
outro, de forma voluntária e anônima, se deslocava pelo
país, sem projeção como ocorreu com Divaldo. Divaldo não
chegou a ser o que é, em termos de divulgação, de um dia
para o outro. Fez o seu trabalho com uma vida de
dedicação. Há quem goste e aqueles que não gostam do
trabalho de divulgação realizado por ele. É um direito
de cada um pensar diferente. É oportuno dizer, em tempos
obtusos, que pensar diferente não significa
desrespeitar. Criticar o trabalho não significa diminuir
o trabalhador, apenas apresentar outros entendimentos
sobre o assunto.
Nessa linha de divulgação doutrinária, via rede mundial,
muitos nomes surgiram com contribuições relevantes para
que o pensamento espírita pudesse alcançar corações
sofridos e auxiliá-los no processo reeducativo por meio
de palestras, seminários e congressos. Os congressos
ditos “espíritas” se perderam em pompas e circunstâncias
totalmente materialistas, em lugares amplos, para
arrebanhar grupos dispostos a pagar e fazer circular
moedas entre palestras, atividades e dinâmicas.
Existem, na rede mundial de computadores, trabalhadores
espíritas contabilizando quantas palestras e quantas
pessoas participaram de suas atividades ao longo de uma
vida, como se esse “quantitativo” significasse
“progresso espiritual”. Pasmem: existem ainda, canais de
vídeo na rede, de espíritas, que aceitam ofertas
financeiras, como uma espécie de “leilão”, para que as
perguntas dos ouvintes que ofertaram sejam atendidas
pelo expositor. Será que, às custas de um internauta,
vale a pena manter uma estrutura “profissional” para se
divulgar opiniões pessoais? Porque não são estudos
doutrinários e, sim, “bate-papos” com “famosos”. São
momentos de tietagem, estimulados pela simpatia e
educação dos expositores que se prestam a esse papel, de
receber dinheiro por causa da estrutura que se montou.
Isso nos remete ao pensamento de Allan Kardec quando
proferiu uma “alocução” (discurso curto, pronunciado em
solenidades) para os espíritas de Bruxelas e Antuérpia,
narrado na Revista Espírita de novembro de 1864. Kardec
ao cumprimentar os espíritas daquelas localidades,
demonstrou alegria sóbria ao informar que ele teria
direito de envaidecer-se pela acolhida daqueles Irmãos,
mas ele sabia que aqueles testemunhos “se dirigiam menos
ao homem do que à Doutrina, da qual sou humilde
representante”.
Onde há humildade nesses Congressos ou Seminários ou
Palestras virtuais em que os expositores se colocam como
“seres missionários”? Que falam que os outros são
vaidosos, mas incapazes de reconhecerem a própria
vaidade?
No passado, os Congressos Espíritas produziam anais.
Os primeiros registros sobre “anais” datam da Roma
Antiga e hoje seriam registros de trabalhos
científicos publicados no contexto do evento. Se o
congresso espírita não tem o cunho de apresentar
trabalhos científicos, fruto de estudos mais elaborados,
ele serve para o quê? Angariar fundos para instituições
privadas ou interesses pessoais? O objetivo de Allan
Kardec realizar visitas aos centros espíritas, ainda no
relato de sua viagem de 1864, era para, “além de
contribuírem para estreitar os laços de fraternidade entre
os adeptos”, colher elementos de observação e
de estudo. Os elementos que se colhem na atualidade
demonstram total divergência com os princípios
postulados pela Doutrina Espírita. São ações motivadas
por interesses pessoais, ainda que traduzidos ou
motivados por causas "nobres". Nobre é o que o Cristo
disse: "não saiba vossa mão esquerda o que faz a
direita".
O texto de Allan Kardec é perfeito para a atualidade.
Para concluir essa ilustração, Kardec diz o seguinte: “Está
provado que o Espiritismo é mais entravado pelos que o
compreendem mal do que pelos que não o compreendem
absolutamente (...)”. Uma divulgação malfeita, com
valorização do “amor próprio”, aquele que se traduz por
pessoas que “se acham” detentoras do conhecimento
espírita, causa essa perda de referência doutrinária que
se encontra no movimento espírita brasileiro.
O que fazer então? Essa pergunta paira no ar, a cada
reflexão, porque remete a outro pensamento: seria
inveja? É possível, por que não? Cabe análise pela
relevância do tema. Se estivéssemos na mesma condição,
teríamos feito diferente? Com esse entendimento, ousaria
dizer que faríamos diferente, até por ver tudo isso.
Entretanto, não é um caminho fácil de se modificar. O
despreparo do espírita é tão grande que as repercussões
ocorrem no campo pessoal: relacionamentos desfeitos,
empregos que se modificam, filhos que se rebelam,
olhares de desconfiança, depressão, ansiedade e uma
série de outras sequelas que podem ser observadas. Será
que estamos realmente preparados para uma profissão
de fé espírita? "Abrir mão" do que é politicamente
ou convenientemente adequado, no plano terreno, para as
conquistas do Espírito?
É necessário e premente que se modifique, para o bem das
lideranças que ainda conseguem lembrar, em meio aos
holofotes, que a Doutrina Espírita educa consolando,
transforma orientando, estimula, fazendo-nos trabalhar
nas fragilidades egoístas que ainda se manifestam
gritantes em seus adeptos. Que essas fragilidades
pessoais não sejam superiores ao brilho perene e
regenerador da Doutrina Espírita.
|