O padre Júlio Maria espetou Chico Xavier durante treze
anos. Só parou quando morreu. E, nesse dia, Chico ouviu
o vozeirão de seu guia:
– Vamos orar pelo nosso irmão Júlio Maria. Com ele sempre
tivemos um cooperador maravilhoso. Dava-nos coragem na luta e
concitava-nos a trabalhar.
A cada ataque dos céticos, Chico escutava Emmanuel bater na
mesma tecla: Não te aflijas com os que te atacam. O martelo
que atormenta o prego com pancadas o faz mais seguro e mais
firme.
O conselheiro invisível esquecia que martelos também entortam
pregos. Chico sentia os golpes e andava pela cidade arqueado,
sob o peso da desconfiança alheia.
Em dezembro de 1934, o rapaz fechou os olhos e fincou o lápis no
papel. As frases apareceram velozes e nada evangélicas. Eram
endereçadas a ele mesmo:
“Meu amigo, há mais de um decênio que não me preocupo com as
parvoíces da Terra. Nem presumia a possibilidade de enviar
novamente para aí a minha futilíssima correspondência, quando
alguém me insinuou a ideia de vir ditar-te as minhas sandices.
Acometeu-me o desejo incoercível de atirar um dos meus petardos
de troça ao gênero bípede e estalar uma boa gargalhada, sonora e
sã. Foi o que fiz. Tentei a prova. Focalizei no meu pensamento a
ideia de vir ter contigo e bastou isso para que as minhas raras
faculdades de fantasma me conduzissem a esse maravilhoso recanto
sertanejo em que vives, esplendor de canto agreste, quase
selvagem... Busquei aproximar-me de tua individualidade. Vi-te
finalmente. Lá surgias ao fim de uma rua bem cuidada, onde se
alinhavam casas brancas e arejadas, brasileiríssimas,
abarrotadas de ar, de saúde, de sol; vinhas com o passo cansado,
pele suarenta a derreter-se dentro de roupas quase ensebadas,
com os pés metidos em legítimos socos do Porto, obrigando-me a
evocar o cais de Lisboa... Sem que pudesses observar-me,
submeti-te a demorado exame. Procurei a tua bagagem de
pensamento, encontrando na tua mocidade tudo quanto a tristeza
criou de mais sombrio; em tua alma amargurada, vi apenas porções
de sofrimentos, pedaços de angústia esterilizadora, recordações
tristonhas, lágrimas cristalizadas... Vi-te e ri-me. Não de ti.
Ri-me da estultice do cérebro desequilibrado do asno humano, com
o seu volumoso e pesado arquivo de baboseiras”.
Cansado das lamúrias de Chico Xavier, o remetente da carta
recomendava o bom humor como arma: “Convence-te de que se comete
um ato desarrazoado, uma inqualificável imprudência, em chorar
tolamente, em derreter-se inutilmente. Abandona essa exótica
preocupação aos mais parvos do que tu. Ri-se o mundo de nós?
Riamo-nos dele. Achincalhemos os seus arremedos aos gorilas,
ridicularizemos as suas intuições, onde predominam a
bandalheira, os seus pulos de cabra-cega; traduzamos a admiração
que tudo isso nos desperta com o riso bom, que sempre apavorou
os tímidos e insuficientes”.
O recado tinha a assinatura de Eça de Queiroz, escritor
português.
Do livro As vidas de
Chico Xavier, de Marcel Souto Maior.
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