Comportamento pró-social
O mais revolucionário princípio evolutivo, recentemente
assimilado pela Biologia evolucionária, admite a cooperação como
elemento presente na evolução humana. Assim, pode-se
considerar a existência de duas grandes forças
evolutivas contribuindo igualmente na sobrevivência da
nossa espécie: a competição, caracterizada pela
sobrevivência do mais apto e a cooperação entre
os indivíduos da espécie.
Kardec se valeu das expressões instinto do mal e instinto
do bem[i],
antecipando-se aos modernos conceitos da ciência
biológica. O Espírito humano traz em sua natureza íntima
duas forças antagônicas, construídas pela evolução
biológico/espiritual: uma força, que hoje responde por
grande parte de seus defeitos, mas que foi essencial na
sua sobrevivência e fazia parte do instinto de
conservação[ii].
Outra força, que o direciona na construção do bem em si
mesmo, que também resulta de um instinto – o instinto
humanitário/ cooperativo - que permitiu ao homem
primitivo a sobrevivência em um mundo extremamente
hostil.
Com o surgimento da cultura humana, há cerca de 50 mil
anos, normas culturais foram somando esforços em
benefício do desenvolvimento do impulso do bem,
denominado pela Psicologia social como comportamento
pró-social. As religiões, a escola e diferentes
organizações civis foram paulatinamente construindo e
reforçando ideias que promovem a solidariedade e o
espírito da fraternidade humana.
Três normas sociais, em particular, são consideradas
importantes para promover o comportamento de ajuda[iii]:
A norma da reciprocidadeprescreve que devemos
retribuir os benefícios e favores que recebemos dos
outros – a gratidão como uma virtude a ser cultivada. A
norma da justiça social promove o sentimento
nobre de concorrer para a redução das desigualdades
sociais, oferecendo oportunidades iguais a todos e a
norma da responsabilidade socialcultiva o
pensamento de que devemos ajudar as pessoas que são
incapazes de ajudarem a si próprias.
Apesar dos esforços da sociedade contemporânea, bem mais
proativa que a do passado, muitos de nós nos mantemos na
retaguarda espiritual, cristalizados no impulso
predatório da esperteza, da má índole e da exploração
alheia, muitas vezes, nos valendo de um hipotético (mas
falso) comportamento altruístico que, em verdade, só tem
a ver com o nosso próprio interesse.
Considerando com Emmanuel
que os grandes
sentimentos não povoam a alma de uma só vez[iv],
propomos (como um exercício reflexivo) uma escala de
variantes relacionadas ao comportamento de ajuda, que
parte de uma condição primária onde ele é movido por um
sentimento egoísta até o ápice da escala em que se
manifesta pelo amor, mais bela conquista das almas
nobres.
Primeira variante:
o comportamento de ajuda é interesseiro porque visa ao
bem próprio: receber de volta depois, ser considerada
uma pessoa especial ou levar algum tipo de vantagem
material. Os biólogos evolucionistas denominam esse tipo
de ação de altruísmo recíproco. La Rochefoucauld,
moralista francês do século XVII, citado por R. Simon,
escreveu: Muitas
vezes, teríamos vergonha de nossas melhores ações se o
mundo conhecesse o que as motivou.[v]
Kardec, comentando tal atitude, escreveu que o
interesse pessoal é o sinal mais característico de
imperfeição moral. Frequentemente, as qualidades morais
são como, num objeto de cobre, a douradura que não
resiste à pedra de toque. Pode um homem possuir
qualidades reais, que levem o mundo a considerá-lo homem
de bem. Mas, essas qualidades, conquanto assinalem um
progresso, nem sempre suportam certas provas e às vezes
basta que se fira a corda do interesse pessoal para que
o fundo fique a descoberto. O verdadeiro desinteresse é
coisa ainda tão rara na Terra que, quando se patenteia,
todos o admiram como se fora um fenômeno. O apego às
coisas materiais constitui sinal notório de
inferioridade, porque, quanto mais se aferrar aos bens
deste mundo, tanto menos compreende o homem o seu
destino. Pelo desinteresse, ao contrário, demonstra que
encara de um ponto mais elevado o futuro.[vi]
Segunda variante:
o ato de dar tem como objetivo vantagens espirituais: a
conquista do reino dos céus, uma acolhida feliz no
pós-morte, um carma positivo para o futuro, ou livrar-se
de um sentimento de culpa e desembaraçar-nos de quantos
se nos apresentam em penúria, cujas condições nos
alfinetam a consciência. Ainda se caracteriza por
interesse pessoal, mas denota um sentimento um pouco
mais avançado, pois se identifica com valores
espirituais.
Colocou Kardec que não merece aprovação aquele que
faz o bem esperando que lhe seja levado em conta na
outra vida e que lá venha a ser melhor a sua situação O
bem deve ser feito caritativamente, isto é, com
desinteresse. Aquele que faz o bem, sem ideia
preconcebida, pelo só prazer de ser agradável a Deus e
ao seu próximo que sofre, já se acha num certo grau de
progresso, que lhe permitirá alcançar a felicidade muito
mais depressa do que seu irmão que, mais positivo, faz o
bem por cálculo e não impelido pelo ardor natural do seu
coração.[vii]
Terceira variante: o
comportamento altruístico é movido pela compaixão.
Sentir piedade do que sofre e colocar-se no lugar dele;
movido por esse sentimento nobre, socorrê-lo. Alguns
denominam essa reação de altruísmo empático. Trata-se de
um belo sentimento, mas, segundo André Conte-Sponville[viii],
não traduz a sublimidade da virtude, pois está a reboque
da infelicidade alheia, ou seja, ele se manifesta diante
do sofrimento de outro e não naturalmente por todos os
seres, independentemente de sua condição de cuidado
presente.
Quarta variante:
agir solidariamente por dever. Difere do sentimento de
compaixão, pois não depende dele. O comportamento de
ajuda se dá pela consciência do dever, porque se
acredita que é o certo a ser feito. Segundo Emmanuel[ix], o
dever define a submissão que nos cabe a certos
princípios estabelecidos como leis pela Sabedoria
Divina, para o desenvolvimento de nossas faculdades.
Assim, pode-se simbolizar o dever no pensamento de
Emmanuel como sendo a faixa de ação no bem que o
Supremo Senhor nos traça à responsabilidade, para a
sustentação da ordem e da evolução em Sua Obra Divina,
no encalço de nosso próprio aperfeiçoamento. Aquele
que age pelo dever demonstra boa vontade, amadurecimento
e desejo sincero de se tornar uma pessoa melhor, mas,
ainda assim, tem o que avançar espiritualmente para se
identificar com o serviço espontâneo do amor. Apesar de
nobre, o dever, de acordo com Immanuel Kant, é uma
coerção tendo em vista um fim que não é desejado de bom
grado[x],
portanto, se vale de obrigações morais, regras
estabelecidas sobre como se deve agir certamente.
Quinta variante: servir
por amor. Segundo Emmanuel, a abnegação começa onde
termina o dever.[xi] Para
o homem verdadeiramente generoso, o dom ou a
beneficência cessarão de ser coerções e, portanto,
deveres. Comenta Sponville que o amor não se comanda e
não poderia, em consequência, ser um dever. Virtude e
dever são duas coisas diferentes (o dever é uma coerção;
a virtude, uma liberdade), ambas necessárias, solidárias
uma da outra. Quanto mais somos generosos, lembra o
pensador francês, menos a beneficência aparece como
dever, isto é, como coerção. O dever é uma coerção, um
jugo, enquanto o amor é uma espontaneidade alegre. O
que fazemos por coerção, não fazemos por amor. Isso se
inverte: o que fazemos por amor não fazemos por coerção,
nem, portanto, por dever. Quando o amor existe, para que
o dever?
Só necessitamos de obrigações morais em falta de amor, e
é por isso que temos tanta necessidade de moral! O dever
nos constrange a fazer aquilo que o amor, se estivesse
presente, bastaria para suscitar, sem coerção. O homem
virtuoso não precisa mais agir como se o fosse. O amor
nos liberta do dever; dispensa-o. Somente quem ama não
precisa mais agir como se amasse. Trata-se, então, de um
servir espontâneo e gratuito, sem motivo, sem interesse,
até mesmo sem justificação. Só precisamos de moral em
falta de amor.
Kardec a tal respeito comentou que toda virtude tem
seu mérito próprio, porque todas indicam progresso na
senda do bem. Há virtude sempre que há resistência
voluntária ao arrastamento dos maus pendores. A
sublimidade da virtude, porém, está no sacrifício do
interesse pessoal, pelo bem do próximo, sem pensamento
oculto. A mais meritória de todas as virtudes é a que
assenta na mais desinteressada caridade.[xii]
E ainda Kardec: há pessoas que fazem o bem
espontaneamente, sem que precisem vencer quaisquer
sentimentos que lhes sejam opostos. Outras se veem na
contingência de lutar contra a natureza que lhes é
própria. Só não têm que lutar aqueles em quem já há
progresso realizado. Esses lutaram outrora e triunfaram.
Por isso é que os bons sentimentos nenhum esforço lhes
custa e suas ações lhes parecem simplíssimas. O bem se
lhes tornou um hábito. O sentimento do bem é espontâneo. [xiii]
Alternamos em nossos atos diários reações dos diferentes
níveis, mas, conscientes dos esforços que devemos
empreender na construção de uma personalidade mais bela,
nobre e justa, quanto mais o bem estiver identificado em
nós, sem segundas intenções, mais próximos
estaremos da verdadeira virtude, conforme nos lembra o
benfeitor André Luiz, nas seguintes palavras:
Normalmente o impulso de quem beneficia a alguém inclui
o troco da gratidão. Servir, contudo, no câmbio espírita
que revive o exemplo de Jesus, o Mestre e Servidor, não
espera o menor laivo de agradecimento. Apenas nesse
molde aproximar-nos-emos da Providência Divina, através
do Amor Que Ama Sem Nome, compreendendo, por fim, que a
felicidade é servir e passar.[xiv]
[i] O
Livro dos Espíritos, item 993.
[ii] Obras
Póstumas e A Gênese, cap. 3
[iii] Psicologia
social: Rodrigues, Assmar e Jablonski
[iv] Paulo
e Estêvão.
[v] Homens
maus fazem o que homens bons sonham - R. Simon
[vi] O
Livro dos Espíritos, item 895
[vii] O
Livro dos Espíritos, item 897
[viii] Pequeno
tratado das grandes virtudes, cap. 18
[ix] Pensamento
e vida, cap. 21
[x] Pequeno
tratado das grandes virtudes, Sponville - Nota,
pag. 356
[xi] Pensamento
e vida, cap. 17
[xii] O
Livro dos Espíritos, item 893
[xiii] O
Livro dos Espíritos, item 896
[xiv] Sol
nas almas, cap.16.
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