Especial

por José Passini

Amor aos inimigos

“Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e dos fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus.” (Mt., 5:20.)

 

A justiça dos escribas e dos fariseus, referida por Jesus, era a aplicação da Lei de Moisés, que preconizava: “Olho por olho, dente por dente; mão por mão, pé por pé”, e assim por diante. Em verdade, é uma lei de justiça, baseada, segundo alguns autores, no Código de Hamurabi, de alguns séculos antes de Moisés. Inegavelmente, foi um avanço na história humana, pois conscientizava o homem de que, ao cometer uma agressão a alguém, dava, ao agredido, o direito de retribuir a agressão na mesma medida.

Jesus, com a sua autoridade e o seu amor, veio inaugurar uma nova era na Humanidade, A Era da Misericórdia, conforme está no Sermão da Montanha: “Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam” (Mt., 5:43). Esses ensinamentos de Jesus foram transcritos e comentados por Allan Kardec em O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo 12.

Há pessoas que, ao ouvirem esse ensinamento maior de Jesus, exclamam: “Amor aos inimigos, isso é coisa para santos e eu não sou santo. Como vou orar por aqueles que me perseguem?” Outros não só se sentem incapacitados de orar, como pensam que se orassem estariam dando forças ao inimigo. Outros, ainda, argumentam que se não tomarem uma atitude punitiva, os ofensores nunca aprenderão que não devem prejudicar o próximo...

Entretanto, se analisado por quem tem “olhos de ver e ouvidos de ouvir”, será fácil verificar que o ensinamento de Jesus é para todos aqueles que se disponham a se tornar cristãos...

Amor aos que não nos querem bem é exatamente o que distingue o ensinamento de Jesus daquele secularmente conhecido dos Judeus:

“... amareis o vosso próximo, e odiareis os vossos inimigos.” (Mt., 5:43)

O Mestre é muito claro quando reforça o ensinamento, para que não fiquem dúvidas: “... se só amardes os que vos amam, qual será a vossa recompensa? Não procedem assim também os publicanos?” (Mt., 5:46)

E vai mais além: “Se apenas os vossos irmãos saudardes, que é que com isso fazeis mais do que os outros? Não fazem outro tanto os pagãos?” (Mt., 5:47) Os pagãos a que se refere Jesus não eram os não-batizados, conforme seria interpretado hoje. Pagãos, para os judeus, eram todos os que não partilhavam da sua religião.  No caso, os romanos, os sírios, os gregos. Jesus quis, com isso, evidenciar que mesmo os outros povos, que não acreditavam em Deus, amavam os seus amigos. Entretanto, para ser discípulo do Mestre, seria necessário um passo além...

Como se vê, Jesus não lança o ensinamento como uma máxima abstrata, ou um conceito teológico para ser repetido no interior dos templos como fórmula mágica, em meio a rituais, para agradar a Deus. O Mestre ensina que esse é o caminho daqueles que querem ser seus discípulos. E, para que fique claro, dá exemplos, usando pessoas da sua época, do convívio cotidiano.

Chamando sempre as criaturas à reflexão, Jesus lhes diz: “Se a vossa justiça não for mais abundante que a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no reino dos céus.” (Mt. 5:20). Nessa passagem, vemos que o Mestre concita o homem a transcender os simples limites da justiça, que até ali era válida: “olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe.”  (Ex, 21: 24 e 25)  Assim pensavam e agiam aqueles que se diziam seguidores de Moisés, que estavam presos unicamente à ideia de justiça.

Como a Natureza não dá saltos, devemos entender que o primeiro passo para o amor aos inimigos é não retribuir o mal com o mal. É necessário caminhar por etapas, conforme nos ensina O Evangelho segundo o Espiritismo, no capítulo 12: primeiramente aprendemos a não deixar que o espinho do rancor e da mágoa entre em nosso coração. Daí a necessidade da vigilância e da oração. Exercendo a vigilância sobre nós mesmos, podemos verificar o que estamos guardando em nosso íntimo. Através da oração, conseguimos, pouco a pouco, expelir o fel da mágoa, do desejo de vingança e da malquerença. Vamos, assim, procedendo a uma revisão naquilo que guardamos no coração. Essa limpeza interior é extremamente saudável, pois ao substituirmos os maus sentimentos por outros bons, estaremos melhorando nosso ânimo e até a nossa saúde física. Além do mais, não tendo mágoa, amargura, rancor, azedume dentro de nós, nosso relacionamento com o próximo será cada vez melhor, pois como nos ensina o Evangelho: “(...) porque da abundância do seu coração fala a boca.” (Lc., 6:45)

Assim é que aprendemos a retribuir o mal com o bem. É um processo vagaroso, a ser trabalhado dentro de nós ao longo dos séculos. Aquela extraordinária capacidade de perdoar, Gandhi não a recebeu como graça, nem a conseguiu de um dia para o outro. Ele a desenvolveu através do seu esforço, vida após vida, seguindo o que preceitua o Evangelho: “Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens (...)” (Mt., 5:16). Todos nós temos a luz divina como herança igualmente repartida entre todos os filhos de Deus. Evoluir significa o esforço do espírito para fazê-la resplandecer, conforme a recomendação de Jesus.

O perdão, com o apagamento de qualquer resquício de mágoa, é essencial para o progresso das criaturas. Ensinando-nos isso, Jesus colocou o esforço de apaziguamento acima de um ponto alto do culto judeu, que se constituía numa oferenda do sangue de um animal sacrificado, guardado num vaso e levado solenemente ao altar como oferta a Deus pela remissão de um pecado cometido. Jesus não critica tal prática, mas aproveita-a recomendando: “(...) se trouxeres tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali, diante do altar, a tua oferta e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão, e depois vem e apresenta a tua oferta”. (Mt., 5:23 e 24)

O Espiritismo, como doutrina evolucionista, nos ensina que a santificação não se consegue com o esforço alheio, nem através de rezas, de promessas, nem de graças caídas do céu. O progresso, a espiritualização da criatura humana, é tarefa individual, constante, intransferível e consciente. E o Espírito que se detém a colecionar ofensas recebidas, desejos de revide, ou apenas mágoas, queda-se estacionado na senda do progresso espiritual.

Guardar mágoa é armazenar doença espiritual dentro de nós, doença que, na maioria das vezes, se transforma em doença física. Guardar mágoa é cultivar câncer na alma. Há pessoas que guardam mágoas como se fossem joias preciosas, conservadas em belos estojos que facilmente abrem para mostrar aos outros essas agressões recebidas e “perdoadas”. Essa prática não só lesa a saúde mental, como também a saúde física. Mágoa é câncer na alma, que, muitas vezes, se torna câncer no corpo físico. Quem age com sabedoria procura livrar-se da mágoa enquanto está encarnado, pois se o câncer físico fica na sepultura, o câncer da alma terá de ser resolvido na vida espiritual.

Outra grave moléstia espiritual é o remorso. O remorso, precursor do arrependimento, é um bom passo que deve ser aproveitado aqui na Terra, enquanto estamos encarnados. Mas há pessoas que pensam estar fadadas a zonas de sofrimento após a morte porque cometeram determinados erros e esperam resgatá-los em zonas de sofrimento, no Mundo Espiritual, depois da desencarnação. Na literatura mediúnica de Chico Xavier há, pelo menos, dois exemplos capazes de nos mostrar que nem sempre o destino daquele que errou é uma zona de sofrimento.

Na obra Voltei, do irmão Jacob, psicografada por Chico Xavier, há o relato de um espírito que estava sendo conduzido, por Bezerra de Menezes, num grupo de recém-desencarnados, a colônias espirituais organizadas no Bem. Em determinado momento, um desses espíritos, ao avistar a luz de uma colônia espiritual, começou a dizer: “Não mereço ir para a luz, pois matei um homem durante a minha vida na Terra”. Bezerra não se abalou. Apenas solicitou a Jacob que fizesse uma prece para reequilibrar a caravana.

No livro Falando à Terra, Abel Gomes (Espírito) diz o seguinte: “Além da sepultura, continuamos a obra encetada ou somos escravos do mal que praticamos na Terra”. Nesse longo capítulo intitulado “Notícias”, Abel Gomes relata algo que causa espanto àqueles que esperam encontrar depois da morte o Umbral descrito por André Luiz, numa interpretação errônea, uma versão espírita do Purgatório: “Velho conhecido de minhas relações particulares assassinou certo companheiro de luta, em deplorável momento de insânia, e, não obstante ver-se livre da justiça humana, que o restituiu à liberdade, experimentou longo martírio da consciência dilacerada, entregando-se, por mais de quatro decênios, à caridade com trabalho ativo pelo bem do próximo. Com semelhante procedimento, granjeou a admiração e o carinho de vários benfeitores da Espiritualidade Superior, que o acolheram solícitos, quando afastado da experiência física, situando-o em lugar respeitável a fim de que pudesse prosseguir na obra retificadora”. 

Muitas pessoas, ainda influenciadas pela ideia do Purgatório que, em verdade, não consta do Novo Testamento, mas que foi inventado por teólogos no século VI, acham que só o sofrimento é capaz de redimir o culpado. É um grave equívoco, pois contraria o ensinamento de Pedro: “O amor cobre a multidão dos pecados” (I Pedro, 4:8).

A Doutrina Espírita, ao reviver os ensinamentos libertadores de Jesus, traz-nos em sua literatura mensagens que nos fazem olhar a vida de modo diferente, conforme ensina Emmanuel na obra Perante Jesus: “toda vez que a Justiça Divina nos procura no endereço exato para execução das sentenças que lavramos contra nós próprios, segundo as leis de causa e efeito, se nos encontra em serviço ao próximo, manda a Divina Misericórdia que a execução seja suspensa, por tempo indeterminado”.

Jesus iniciou um novo ciclo da evolução humana, ensinando o caminho para a angelização do homem, no sentido de transcender os limites da justiça, alcançando aqueles da misericórdia.
 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita