O homem bom, do bom tesouro do seu coração tira o bem, e o homem mau, do mau
tesouro do seu coração tira o mal. (Lucas
6:45.)
Criminologistas em todo o mundo vêm procurando explicar o comportamento
antissocial através daTeoria biossocial, segundo a qual as causas da
criminalidade se encontram em uma conjunção de fatores biológicos e sociais. Do
lado biológico, existem três fatores de risco muito importantes para a
violência: trauma na cabeça, má nutrição e herança genética de seus pais
antissociais. Principais fatores de risco sociais: maus-tratos, negligência,
humilhação, rejeição materna, pobreza extrema, superlotação, vizinhança ruim,
indução ao alcoolismo e ausência completa de cuidado e sensação de
pertencimento. Nenhum desses fatores por si só poderia justificar o
comportamento criminoso, mas a soma deles está implicada na grande maioria dos
delinquentes, pelo menos no que se refere aos criminosos comuns, denominados de
criminosos do colarinho azul.
Estudos de
adoção mostram que crianças cujos pais biológicos eram criminosos tinham
propensão muito maior de se tornar criminosos, mesmo se os adotivos não fossem
criminosos. Gêmeos idênticos são muito mais semelhantes entre si em relação a
crime e agressão do que gêmeos fraternos. Gêmeos idênticos que foram separados
no nascimento são surpreendentemente semelhantes no que diz respeito à
personalidade antissocial, apesar de terem sido criados em ambientes muito
diferentes. Esses estudos com gêmeos e adoção nos dizem que há uma carga
genética significativa para a agressão, mas não nos informam quais genes
específicos estão envolvidos.
A Tecnologia de
imagens cerebrais vem se tornando um instrumento muito afiado para sondar a
anatomia da violência. Isso está fornecendo uma evidência visual concreta de que
há algo errado com o modo como o cérebro dos assassinos funciona. Adrian Reine,
da Universidade da Pensilvânia, realizou PET (tomografia por emissão de
pósitrons) em 41 criminosos que aguardavam no corredor da morte. Em contraste
com o controle normal, o assassino mostra uma notável falta de ativação do
córtex pré-frontal. No geral os 41 assassinos mostraram uma redução
significativa no metabolismo da glicose pré-frontal em comparação aos controles.
Por que o
funcionamento incipiente do pré-frontal predispõe à violência? Os
neurocientistas afirmam que esta pergunta pode ser respondida em diferentes
níveis conceituais.
1- No nível
emocional, a redução no funcionamento da região pré-frontal resulta em perda de
controle sobre as partes evolutivamente primitivas do cérebro – o sistema
límbico –, que geram emoções cruas, como a raiva. O pré-frontal, mais
sofisticado, mantém uma tampa sobre essas emoções límbicas. Retire essa tampa,
as emoções transbordarão.
2- No nível
comportamental as lesões no pré-frontal resultam em assunção de riscos,
irresponsabilidade e quebra de regras.
3- No nível da
personalidade, os danos frontais têm mostrado resultar em todo um conjunto de
alterações. Estas incluem impulsividade, perda do autocontrole e incapacidade de
modificar e inibir o comportamento de modo apropriado.
4- No nível
social, esses danos resultam em imaturidade, falta de tato e déficit de
julgamento social.
5- No nível
cognitivo, o prejuízo frontal resulta em perda de flexibilidade intelectual e
piores habilidades de resolução de problemas. Em decorrência disso: fracasso
escolar, desemprego e privação econômica.
No que concerne
às questões sociais, um estudo mostrou que se quatro dias antes do teste na
escola ocorreu um homicídio na quadra em que a criança mora, isso reduziu a sua
pontuação de leitura em quase 10 pontos. Estimou-se que cerca de 15% das
crianças afro-americanas gastam pelo menos um mês por ano indo mal na escola
puramente por causa dos homicídios em seus bairros. A liberação excessiva de
cortisol em resposta ao estresse é neurotóxica para as células piramidais do
hipocampo – uma região fundamental para o aprendizado, a memória e o controle
dos impulsos. Baixo desempenho escolar se relaciona com subemprego ou
desemprego, correlatos da criminalidade. O ambiente social é muito mais
importante do que se imaginava, pois as experiências sociais mudam o cérebro. Os
adultos que moravam perto dos edifícios do World Trade Center em 11 de setembro
de 2001 – e, portanto, foram expostos a um estresse ambiental muito
significativo – mostraram redução no volume de substância cinzenta no hipocampo
quando submetidos a um estudo de imagem cerebral três anos depois dos atentados.
Embora a Teoria
Biossocial seja muito recente, vamos identificar na obra de Kardec elementos que
nos permitem uma reflexão espírita a respeito dessa proposta. Não se pode negar
o papel dos genes, do cérebro e das influências do ambiente na construção da
personalidade humana. Kardec admitiu que o Espírito encarnado está sob a
influência da matéria (LE, introdução, item VI) e que há casos em que o físico
influi evidentemente sobre o moral, tais como quando um estado mórbido ou
anormal é determinado por causa externa, acidental, independente do Espírito,
como sejam a temperatura, o clima, os defeitos físicos congênitos, uma doença
passageira etc. (O céu e o inferno, parte I, cap. VII). Admitiu igualmente o
nosso codificador que o meio vicioso pode ter grande responsabilidade na conduta
antissocial (LE, item 644), enfatizando o papel dos genitores na construção da
personalidade (LE, item 385). No entanto, acreditar que genes e ambiente possam
ser os únicos responsáveis pela ação criminosa é, no mínimo, ingenuidade e a
experiência prova isso: o homem é, sobretudo, um Espírito encarnado, que traz
sua história, a soma de suas experiências transatas, facilidades e dificuldades,
virtudes e defeitos.
Na Revista
espírita, outubro 1858, Kardec se reporta a um fato lamentável publicado por um
jornal da época. Um crime apavorante acabara de ser cometido por um menino de
doze anos. O jovem H..., conhecido por seu mau caráter, associou-se a cinco
coleguinhas de pequena idade e os persuadiu a entrarem num baú, guardado numa
casinha do jardim. As cinco crianças mal cabiam ali dentro, mas se comprimiram e
se acomodaram, aos risos, umas sobre as outras. Tão logo haviam entrado, o
garoto fechou o baú, sentou-se em cima e ficou três quartos de hora a ouvir,
primeiro os seus gritos, depois os seus gemidos. Finalmente, quando cessaram os
estertores e ele os supôs mortos, abriu o baú; as crianças ainda respiravam.
Tornou a fechá-lo, fechou com cadeado e foi brincar com papagaio de papel. Foi
visto por uma menina quando saía do jardim. Denunciado pela garota que o vira
sair do jardim, os pais desesperados lá chegaram e encontraram as cinco vítimas
- um menino e quatro meninas de quatro a nove anos de idade. O jovem H...
confessou o crime com o maior sangue-frio e sem manifestar qualquer
arrependimento.
Kardec leva o
fato à discussão na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e segue o seguinte
diálogo:
- Ouvistes o
relato que acabamos de ler, do assassinato de cinco crianças, cometido por um
menino de doze anos?
Resposta:
Sim; minha pena ainda exige que eu ouça as abominações da Terra.
- Como
explicar tal atitude em uma criança?
Resposta:
Trata-se de um Espírito mau. É seu próprio espírito que o domina e o impele à
perversidade.
Esse princípio
fundamental - de que ninguém há predestinado ao crime e que todo crime, como
qualquer outro ato, resulta sempre da vontade e do livre-arbítrio (LE, item
861), é recorrente na obra de Kardec. O homem de bem é a encarnação de um
Espírito bom e o homem vicioso é a encarnação de um Espírito imperfeito. Tendo
alguém o instinto do assassínio, é seu próprio Espírito que tem esse instinto.
Em suma: o
Espírito encarnado herda tendências e não qualidades. As tendências o acompanham
desde cedo na vida e se identificam com o corpo construído pelos genes herdados
dos pais e de uma infinidade de influências do ambiente. São apenas tendências,
inclinações, predisposições, mas não qualidades, pois as qualidades são os
valores morais e esses pertencem ao Espírito.
Emmy Werner, psicóloga da Universidade da Califórnia, desencarnada em 2017,
ganhou fama internacional por seu estudo longitudinal de 698 crianças na ilha
havaiana de Kauai.
Em meados do século passado, ela se fez a seguinte pergunta: todas as crianças
criadas no pior ambiente possível, com uma grande variedade de fatores de risco
para a criminalidade se tornarão bandidos? Para examinar isso ela selecionou
cerca de 700 crianças que possuíam diferentes fatores de risco para a
criminalidade e as acompanhou por trinta anos. Ao final, ela verificou que um
terço dessas crianças se tornaram homens de bem.
De todas as evidências que mostram que a Teoria biossocial é insuficiente para
explicar a criminalidade, a mais notável á a que se refere ao crime do colarinho
branco, onde o delinquentenão
suja suas mãos de sangue como os do colarinho azul. Não existem fatores de risco
– biológicos ou sociais – relacionados a este tipo de crime. Talvez seja
surpreendente que não tenha sido desenvolvida nenhuma teoria biológica ou
psicológica para o crime cometido nos escritórios luxuosos, nas salas do poder
executivo e no Congresso, ou nas grandes empreiteiras. Não há teorias de
diferença individual para esse comportamento, mesmo em um nível social – teorias
que tentem explicar em que esses criminosos diferem do restante de nós.
Ao perguntar
aos Espíritos, no item 645 de O Livro dos Espíritos, se quando o homem se
acha, de certo modo, mergulhado na atmosfera do vício, o mal não se lhe torna um
arrastamento quase irresistível, Kardec ouviu deles a seguinte resposta:
Arrastamento, sim; irresistível, não; porquanto, mesmo dentro da atmosfera do
vício, com grandes virtudes às vezes deparas. São Espíritos que tiveram a força
de resistir e que, ao mesmo tempo, receberam a missão de exercer boa influência
sobre os seus semelhantes.