Assistência social em
quatro perspectivas
A assistência social é uma prática recorrente nos
centros espíritas no Brasil. Estimativas, a partir do
estado de Santa Catarina, indicam que praticamente 80%
das instituições espíritas promovem algum tipo de
trabalho assistencial (Simões, 2015). Os mais simples se
resumem à entrega de roupas e alimentos à população
assistida ou à entrega de enxovais às gestantes em
centros que, as mais das vezes, não dispõem de um
“departamento de assistência social”. Os mais
estruturados, por outro lado, além da entrega de
donativos, ainda prestam serviços à população, agregam
formas de evangelização, evangelho no lar, trabalhos de
convivência, entre outros.
A partir destas experiências quero apresentar aqui três
perspectivas de assistência social que fazem parte do
ideário espírita, além de sugerir uma quarta. Com isso,
não se quer afirmar aqui que existam umas mais corretas
que outras, mas tão somente que elas são possíveis
dentro de leituras e entendimentos diversos da
codificação. As quatro podem ser assim denominadas:
assistência social espírita; espaço de convivência;
assistência social realizada por espíritas; e caridade.
Vejamos cada uma delas resumidamente.
A concepção de assistência social espírita é, sem
dúvida, a mais recorrente nas práticas espíritas. Essa
perspectiva é derivada da observação das práticas
desenvolvidas pelos espíritas. Ela parte da concepção
baseada no lema “Fora da Caridade não há Salvação”. Nela
há uma centralidade no trabalhador espírita que tem o
trabalho assistencial como um “dever moral” e que
emprega todos seus esforços para atender à população
assistida em suas necessidades, de acordo com os seus
próprios valores [do trabalhador]. Esse atendimento aos
assistidos, em geral, não é visto somente como material,
mas também espiritual. Por isso, trata-se de uma
“assistência social espírita”, ou seja, a forma de fazer
assistência agrega, necessariamente, valores e
concepções espíritas que, de algum modo, devem ser
passados aos assistidos como forma de atendimento de
suas necessidades espirituais. O fundamento dessa
perspectiva são a Parábola do Bom Samaritano e a do
Semeador.
O espaço de convivência é uma metodologia
inspirada nas ideias de Mario Barbosa e desenvolvidas no
livro Conviver para Amar e Servir(Sarmento,
Pontes e Perolin, 2013). Inicialmente, a metodologia foi
pensada para evangelização. Ela pressupõe a construção
de um espaço de diálogo, de partilha com o outro, de
encontro, de modo a que se estabeleça um vínculo, uma
proximidade entre educador-educando. É nesse espaço que
se pode transmitir aos educandos valores e
conhecimentos, a partir daquilo que eles tragam de suas
vivências. Nesse processo, ambos aprendem e crescem
conjuntamente. Seu fundamento está, sobretudo, na
passagem do capítulo XVI, item 11, Emprego da Riqueza,
de O Evangelho segundo o Espiritismo (ESE):
“Alivia, primeiro; em seguida, informa-te, e vê se o
trabalho, os conselhos, mesmo a afeição não serão mais
eficazes do que a tua esmola”. Dessa forma, a proposta
do espaço de convivência busca criar espaços de
trabalho, de atividade lúdica, de conversa (como as
rodas de conversa), que aproximem assistente-assistido,
diminuindo a distância entre eles. Sua base também é a
Parábola do Samaritano.
Por outro lado, essa proposta não se distingue muito da
anterior, já que ela permanece sendo uma “assistência
social espírita”, ou seja, ela também reforça a ideia de
que, através desses espaços, o assistente terá a
oportunidade de caminhar com o assistido e de lhe
mostrar “quem é o Cristo”. Assim, há centros que se
utilizam da metodologia dos espaços de convivência no
trabalho de doação de alimentos, de artesanato, no
trabalho com pessoas em situação de rua, entre outros,
de modo a viabilizar um meio de transmissão dos valores
e concepções espíritas aos assistidos. O que não
significa, necessariamente, uma imposição do
Espiritismo, mas a manutenção de um pressuposto espírita
na abordagem e naquilo que é repassado ao assistido.
A perspectiva da assistência social realizada por
espíritas rompe com as duas perspectivas anteriores.
Ela pressupõe que a assistência social é uma atividade
que exige qualificação profissional. Desse modo, ela
requer trabalhadores com expertise na atuação social que
entendam o que são as políticas assistenciais, as formas
de atuação em rede, a formação da rede socioassistencial
públicas e privada, entre outras. Portanto, a
assistência não seria um espaço para boa vontade ou para
transmissão de valores religiosos, mas de atendimento às
necessidades da população, ou seja, de cidadania. Para
esta perspectiva, a associação entre assistência e
religião é uma forma de assistencialismo que dificulta o
reconhecimento dos trabalhos realizados pelos espíritas
por parte de outras instituições. A associação
mencionada termina sendo compreendida como uma forma de
atuação confessional pelas outras instituições e,
principalmente, pelo estado.
Assim, nesta perspectiva, a assistência social deve ser
laica, sem pretensão de transmissão de valores e
concepções religiosos. Os espíritas podem também fazer
assistência, se esta forma for direcionada por
profissionais que integrem o trabalho assistencial
realizado na instituição espírita com a rede
socioassistencial.
Essa concepção não é menos espírita que as demais. Mas
ela compreende a necessidade de qualificação do trabalho
assistencial, que se igualaria ao trabalho médico ou o
de um advogado, ou seja, exigindo competência para tal,
e considera que não é a “transmissão do Espiritismo” ao
assistido que torna a prática assistencial espírita, mas
o atender qualificado de sua demanda. É nesse sentido
que a concepção de que não é “fora da Igreja” [ou
Espiritismo] que não há salvação, mas é “da caridade”,
neste caso, do atendimento assistencial que ganha
sentido. Essa perspectiva foi identificada na proposta
apresentada por Losangelis Gregório, diretora de
assistência social da Federação Espírita do Distrito
Federal. Aqui foi retratado o meu entendimento desta
perspectiva, não tendo a referida trabalhadora qualquer
responsabilidade sobre o que foi aqui apontado.
Por fim, a perspectiva da caridade. Ela se
distingue também com todas as demais. Ela endossa a
anterior, mas entende, ao mesmo tempo, que não há uma
perspectiva assistencial do Espiritismo, mas da
caridade. O fundamento dessa abordagem está na questão
888 de O Livro dos Espíritos (LE), onde se
encontra: “[uma sociedade que se baseia na Lei de Deus]
deve assegurar a existência dos que não podem trabalhar,
sem lhes deixar a vida à mercê do acaso e da boa
vontade de alguns”.
Nas duas primeiras perspectivas apresentadas, a
assistência está ainda baseada na boa vontade dos
espíritas que compreendem a ação assistencial como um
“dever moral”, como dito anteriormente. Portanto,
considerando essa questão, seria necessário superar este
modo de assistir.
Além disso, na questão 888a da mesma obra, há a
indicação que o problema não está em “dar a esmola”, mas
na “maneira por que habitualmente é dada”. Essa maneira coloca
o assistido em uma posição de inferioridade que o
humilha, pois o institui como incapaz socialmente e
moralmente (precisando de assistência e conselhos
religiosos). Para se contrapor a essas formas de
assistir há duas possibilidades não excludentes: a
primeira é que afirma a assistência como um direito
social e está representada na perspectiva da
“assistência social realizada pelos espíritas”. No
entanto, esta não é uma proposta religiosa, cristã ou
espírita, mas secular. Em última instância ela pode
conter um sentido religioso, mas sua prática não o é.
A segunda é a caridade, expressa como alternativa à
“esmola”, na mesma questão 888a: “o homem de bem, que
compreende a caridade de acordo com Jesus, vai ao
encontro do desgraçado, sem esperar que este lhe estenda
a mão”. É na questão 886 (LE) que a caridade, “de acordo
com Jesus”, ou, “como a entendia Jesus” é definida como
“perdão das ofensas”. Embora a esmola e o perdão pareçam
temas distantes, na nota de Kardec a esta pergunta, o
codificador aproxima as temáticas afirmando: “o homem
verdadeiramente bom procura elevar, aos seus próprios
olhos, aquele que lhe é inferior, diminuindo a distância
que os separa”.
Esta assertiva pode ser complementada com a passagem,
contida no capítulo XIII de ESE, item 3, quando
encontramos: “a verdadeira generosidade adquire toda a
sublimidade, quando o benfeitor, invertendo os papéis,
acha meios de figurar como beneficiado diante daquele a
quem presta serviço”. Portanto, a caridade é uma forma
de relacionar-se com o outro que, não só “eleva aquele
que lhe é inferior”, mas também inverte a relação entre
benfeitor (assistente) - beneficiado (assistido). Assim,
aquele que ajudaria é o que se torna ajudado, invertendo
as posições.
A questão 888a (LE) ainda se reporta aos conceitos do
“fazer o bem sem ostentação” (ESE, XIII, 1), do
“infortúnio oculto” (ESE, XIII, 4), e do óbolo da viúva
(ESE, XIII, 5). Portanto, é nestas referências que se
deve buscar compreender a forma de fazer caridade.
Além da inversão de papéis, há ainda outro elemento na
caridade: não há nenhuma referência nas passagens de
Jesus à indicação de que o “assistir o outro” incluiria
uma atitude de evangelização ou de esclarecimento moral.
Não existe sequer diálogo entre o homem caído e o
samaritano, assim também na parábola dos “Bodes e das
Ovelhas”. Na mensagem referente aos “infortúnios
ocultos”, quando se menciona a atitude da mulher rica,
encontra-se a seguinte passagem: “à noite, um concerto
de bênçãos se eleva em seu favor ao Pai celestial:
católicos, judeus, protestantes, todos a bendizem”.
Portanto, está claro que ela esteve com eles sem
qualquer propósito de alterar suas crenças particulares.
A partir dessas referências, elimina-se a ideia da
assistência que contém a concepção de um assistente que
detém algo a ser passado ou transmitido ao assistido,
independente se se trata de assistência material, moral
ou religiosa. Retira-se também o vínculo religioso
atribuído a essas práticas.
O desafio, então, é pensar o que fazer nesta nova
perspectiva. Uma proposta, que se aproxima dos ideais de
uma “economia solidária”, encontra-se na proposta
apresentada por Paulo de Tarso a Pedro diante das
contingências e dificuldades enfrentadas pela Casa do
Caminho (Souza, 2019). Complementando a plantação de
subsistência que Pedro já havia estabelecido lá, Paulo
propõe algo maior:
Os órfãos, os velhos e os homens aproveitáveis poderão
encontrar atividades além dos trabalhos agrícolas e
produzir alguma coisa para a renda indispensável. Cada
qual trabalharia de conformidade com as próprias forças,
sob a direção dos irmãos mais experimentados. A produção
do serviço garantiria a manutenção geral. Como sabemos,
onde há trabalho, há riqueza, e onde há cooperação, há
paz.
Será que um dia conseguiremos tirar aqueles que chegam à
casa espírita com dificuldades materiais da posição de
assistidos? Será que conseguiremos não impor mais nossas
crenças àqueles que vêm à instituição espírita na busca
do pão e que já possuem suas próprias fés? Será que
conseguiremos retirar os “assistidos” da posição de
dependentes e garantirmos a eles trabalho útil, que
assegure o que eles necessitem, sem que precisem
humilhar-se? A proposta de Paulo é ainda hoje
desafiadora para todos nós.
Referências:
Kardec, A. O Livro dos Espíritos,
várias edições.
Kardec, A. O Evangelho segundo o
Espiritismo, várias edições.
Sarmento, H. B., Pontes, R. N. e Parolin,
S. R. Conviver para Amar e Servir. Brasília: Feb,
2013.
Simões, P. Dá-me de Comer. São
Paulo: CCDPE-ECM / LIHPE, 2015.
Souza, A. R. “A economia solidária no
principal livro oriundo de Chico Xavier”. In.
Simões, P. e Souza, A. R. As dimensões institucionais e
assistenciais do Espiritismo. Curitiba: Appris, 2019.
[No prelo].
Xavier, F. C. Paulo e Estêvão.
Brasília: FEB, 2010. [pelo espírito Emmanuel].
|