Alçados ao desgoverno da ambição
Todo o saber é renovável e transformável
“(...) Dai, pois, a César o que é de César, e a
Deus o que é de Deus.” Jesus. (Mt., 22:21.)
Nada pode explicar com maior e mais peregrina
clareza o aspecto dicotômico da vida como essas
palavras de Jesus registradas por Mateus, vez
que existe a vida material e a vida espiritual,
ambas solidárias e interdependentes.
Durante a encarnação, consoante os alvitres da
Justiça Divina, as perspectivas espirituais
ficam toldadas e o Espírito calceta, atordoado e
anestesiado pelos apetites grosseiros,
desgoverna-se nos meandros dos instintos
primitivos, perdendo o contato com os mananciais
superiores da vida Espiritual; e, na
voluptuosidade de um rio que arrebenta os diques
que o barravam, corre em incontrolável carreira,
esfaimado e violento, atrás de nonadas que
venham suprir as suas ilimitadas e insaciáveis
ambições...
Afirma Xavier de Maistre que há duas
individualidades no homem: são o “Eu” e
a “Besta” ou Alma e Matéria dos
espiritualistas.
Segundo Eça de
Queiroz:
“é inegável essa duplicidade na mesma
organização; sucedendo na maioria dos casos que
vivem em permanente desacordo, ou em eternas
recriminações, como dois cúmplices do mesmo
crime, presos pela mesma grilheta martirizadora.
Havendo, pois,
essa dualidade, e cada uma delas com gostos e
necessidades naturalmente desiguais, é inútil
que cada pessoa veja para qual dos lados deve
propender; ou, quando melhor, diligenciar e
harmonizar ambas. Parece que, como Deus ao
colocar o homem na Terra, lhe teria dito
também: ‘escolhe’.
O homem possui na Alma os germens dos mais
variados e antagônicos sentimentos e a faculdade
arbitrária de escolher, cultivar e desenvolver,
em si próprio, os que melhor aprecie, os que
mais ame ou aqueles que lhe pareçam mais úteis
ou mais belos.
Para conhecer e escolher tem o homem a
inteligência, a razão e a vontade.
Que é preciso ao homem para que faça a escolha
acertada? Evidentemente uma aspiração que o
norteie, como bússola pela qual se guie. Ora,
essa aspiração deve ser a meta a alcançar.
Para o perfeito cumprimento de sua missão na
Terra, deverá o homem seguir o conselho que
Jesus deu aos fariseus: ‘a Deus o que é de
Deus e a César o que é de César’.
Na vida terrena, deve procurar aproximar-se do
tipo ideal de homem completo. E só é assim
aquele que norteia a sua vida pelo culto ao
trabalho, à honradez e à virtude. Na virtude
reside toda a manifestação de lealdade, de
honestidade, de brio, de dignidade própria e
respeito pela dignidade alheia.
No amor ao próximo, no uso da humildade
espiritual, da modéstia, da simplicidade, na
prática, e até na intenção do bem, está todo o
serviço a Deus, e todo o caminho direito e liso,
amplo e luminoso como uma tarde de verão, para a
vida na Terra.
No metódico equilíbrio entre as exigências do
Espírito e as da matéria, e na sua salutar e
comedida satisfação a elas, está a mais difícil
ciência de todas as que na Terra devem preocupar
o cérebro humano: a ciência de saber viver. É
complexa!...
As multíplices facetas da existência exigem
infinitos cuidados para que sejam conservadas
sempre puras, sempre brilhantes, sempre
imaculadas... É absolutamente impossível haver
quem atravesse o charco desse mundo,
conservando-se completamente limpo das impurezas
que aí tentam manchar e corromper tudo.
Entretanto, o homem deve procurar fazê-lo... Em
cada tentativa de aperfeiçoamento, conquistará
sempre alguma coisa aproveitável que,
insensivelmente, capitalizará. Não deve
escravizar-se nunca a preconceitos, nem
deixar-se subjugar por hesitações ou fraquezas.
Deve ter a sua aspiração sempre aberta ao saber,
como uma página em branco. À proporção que se
lhe depare o desconhecido e novo, estude,
medite, aprofunde; e, depois de convencido,
escreva na página branca da sua aspiração os
sinais da sua conquista.
Não cristalizar nunca... Todo o saber é
renovável e transformável, e o seu cérebro deve
acompanhar todas as fases evolutivas do
progresso humano. Nada há imóvel na Natureza.
O homem que num calmo momento de meditação olhar
para o seu passado verá, assombrado, as
transformações profundas, maravilhosas, operadas
insensivelmente à sua atenção desprevenida; e se
olhar para a vida do mundo, abismar-se-á ao ver
como dia a dia, minuto a minuto, o tempo –
supremo iconoclasta – vem destruindo as mais
basilares teorias, as mais incontroversas
ideias, os mais sólidos monumentos, as mais
inatacáveis fortalezas naturais do mundo: tudo
que parecia estável, indestrutível e eterno,
soçobra...
O impossível de ontem é a realidade de hoje; o
inconcebível hoje será o vulgarizado amanhã.
Sendo assim, não é, pois, legítimo, não é
decente, não é honesto haver quem, apegando-se ‘a
priori’, negue por capricho e por
inconsciência aquilo que se afirma como produto
honrado e lídimo de laboriosas pesquisas, de
excepcionais trabalhos, persistentemente feitos,
sinceramente elaborados. Pode admitir-se a
dúvida antes de estudar-se; a negativa depois de
estudar-se; mas a negativa simples, isolada de
estudo e provas, é vazia de senso de
respeitabilidade.
Quem não estudar não pode dizer,
conscienciosamente, senão que ignora. Avançando
à negativa formal, com pretensões a
superioridades dogmáticas, envolvendo as suas
opiniões em chispas de ironia, em repelões de
insultos, nuns escarninhos assomos de magíster, não
faz outra coisa, na quadra evolutiva e
transformadora que a humanidade atravessa, que
demonstrar a suprema satisfação da mais bela e
da mais orgulhosa imbecilidade”.