Resumo:
“Mecanismos da mediunidade” é o título de obra espírita de natureza mediúnica,
muito conhecida no meio espírita. Utilizando conceitos de Física, Química e
Engenharia Elétrica, essa obra se propôs a apresentar uma explicação, com base
nesses conceitos, dos mecanismos do fenômeno mediúnico. Em vista dos conceitos
científicos utilizados não serem de fácil entendimento dos companheiros
espíritas em geral e do crescente interesse do movimento espírita em descrever
os fenômenos espíritas com base apenas na Doutrina Espírita, apresentamos um
estudo sobre os mecanismos da mediunidade segundo, apenas, as obras de Kardec.
Basicamente, os mecanismos da mediunidade segundo o Espiritismo decorrem dos
seguintes conceitos: i) os Espíritos modificam o FU através do pensamento e
vontade, impregnando-o de qualidades e informações que desejem; ii) o
perispírito é formado pela condensação do FU em torno do Espírito que é o foco
de inteligência, e as qualidades dos fluidos do perispírito dependem do grau de
evolução do Espírito; iii) o perispírito serve de transmissão ao pensamento,
como o fio elétrico; iv) os Espíritos se comunicam com os médiuns da mesma forma
que com os Espíritos propriamente ditos, tão só pela irradiação dos seus
pensamentos; v) para um Espírito desencarnado se comunicar com o do encarnado, o
fluido do médium, através da sua expansão perispiritual, se combina com o
perispírito do Espírito desencarnado; vi) os Espíritos tem mais facilidade para
responder, por efeito da afinidade existente entre o nosso perispírito e o do
médium que nos serve de intérprete. A explicação para esses itens e as devidas
citações em Kardec são apresentadas no artigo. Esse artigo pode ser usado como
base para preparação ou revisão de cursos sobre Espiritismo e mediunidade.
Introdução
Em
1959, A Federação Espírita Brasileira publicou a obra Mecanismos da
Mediunidade, de autoria espiritual de André Luiz e psicografada por XAVIER &
VIEIRA (1990). Emmanuel, mentor de Chico Xavier, e André Luiz prefaciaram a
obra. Enquanto Emmanuel classifica a obra acima como sendo um “livro que
estuda”, André Luiz afirma que a obra vale “por vestimenta necessária,
mas transitória, da explicação espírita da mediunidade”. Concordamos com
Emmanuel que a obra acima é de estudo, e concordamos com André Luiz sobre a
necessidade de termos uma explicação espírita da mediunidade. Mas a obra acaba
por usar como referência teórica, interpretações nem todas triviais de vários
conceitos da Física, da Química e da Engenharia Elétrica. Isto é, a obra usa
como vestimenta esses conceitos da Ciência. Não somos contrários à
tentativa de desenvolver o entendimento de um assunto por ângulos diversos. Mas,
para a obra atingir o propósito de ser de estudo, é necessário que
o movimento espírita domine muito bem o conteúdo da Doutrina Espírita para
poder, inclusive, analisa-la e avalia-la doutrinariamente.
Embora a intenção do autor espiritual de Mecanismos da Mediunidade, em
usar conceitos modernos da Ciência para desenvolver um entendimento para os
mecanismos do fenômeno mediúnico, seja nobre, o desconhecimento, por parte dos
espíritas, do significado desses conceitos científicos prejudicou o atingimento
desse propósito. Como um efeito colateral imprevisto, outros companheiros
espíritas e espiritualistas, embora bem intencionados, construíram sistemas,
teorias, propostas ou descrições de diversos fenômenos espiritualistas, seguindo
o exemplo de André Luiz, isto é, se utilizando igualmente de conceitos
científicos da Física, da Química e da Engenharia. Infelizmente, porém, algumas
dessas teorias foram demonstradas estarem incoerentes com a Doutrina Espírita
(DA FONSECA, 2012, 2013a, 2013b).
Tentativas de amenizar a dificuldade na conceituação científica de Mecanismos
da Mediunidade existem na literatura espírita. Esclarecimentos sobre os
conceitos e analogias científicas usadas por André Luiz nessa obra foram
apresentados por DA FONSECA (2016b, 2017). Além de mostrar que várias das
analogias realizadas por André Luiz são muito boas, desde que entendidas de modo
adequado, DA FONSECA (2016b, 2017) também esclarece a validade de algumas
interpretações importantes como achar que pensamento é uma onda eletromagnética.
Sugerimos o leitor interessado acessar os artigos acima.
Mas,
a questão que se apresenta aqui é outra. Mesmo havendo esclarecimentos sobre os
pontos técnicos/científicos da obra Mecanismos da Mediunidade, ainda
muitas pessoas não se sentem confortáveis com conceitos científicos que só se
compreende bem após anos de estudo em nível universitário. Seria, então possível
revisitar a obra de Kardec e descobrir com base somente nela, quais os
mecanismos da mediunidade? Será que a obra de Kardec é capaz de fornecer,
igualmente, uma explicação para os mecanismos da mediunidade?
Neste artigo, nós procuramos realizar isso. Isto é, revisitamos os conceitos
genuinamente doutrinários, ou seja, apenas aqueles contidos na obra de Allan
Kardec, em busca da identificação dos conceitos necessários à apresentação dos
mecanismos da mediunidade segundo, apenas e exclusivamente, o Espiritismo.
Na atualidade, percebe-se que o movimento espírita tem buscado incentivar um
maior comprometimento com a coerência doutrinária (MILANI, 2018, CARRARA, 2019).
Dessa forma, é de interesse do leitor e o pesquisador espírita descobrir como a
Doutrina Espírita descreveria os mecanismos da mediunidade. Isso seria
importante até mesmo para poder avaliar e valorizar a proposta de André Luiz ou
de outros autores em termos de coerência com a Doutrina Espírita. Aqui,
portanto, encontrar-se-á uma explicação formal dos mecanismos da mediunidade de
acordo com Kardec. Se houver interesse, esse material poderá ser usado na
preparação e/ou revisão de material de cursos de Espiritismo e/ou de mediunidade
segundo Kardec.
Na
literatura espírita, encontramos alguns trabalhos que buscam descrever os
fenômenos espíritas com base nas obras de Kardec. Jader SAMPAIO (1999), por
exemplo, identifica um aspecto comum nos mecanismos do fenômeno de sonambulismo
e clarividência, que é a emancipação da alma. Rubens P. MEIRA (2013) apresenta
as funções e propriedades do perispírito em termos das obras de Kardec,
discutindo a validade doutrinária de algumas afirmativas presentes no meio
espírita. Porém, uma descrição detalhada de como a mediunidade ocorre,
independentemente do tipo, em termos apenas dos conceitos contidos nas obras de
Kardec, ainda não existe até onde pudemos investigar.
Nas
seções seguintes, apresentamos, primeiro uma revisão dos conceitos fundamentais
de fluidos e perispírito. Em seguida usamos esses conceitos na construção de uma
explicação genuinamente espírita, dos mecanismos da mediunidade segundo a
Doutrina Espírita.
II.
Fluidos e perispírito
Nessa seção iremos apresentar as definições dos conceitos de fluidos e
perispírito conforme apresentados por Kardec e os Espíritos. Apresentaremos
esses conceitos numa ordem didática descrevendo de modo resumido, os dois
elementos gerais da criação, suas propriedades e como eles se relacionam.
II.1
Fluido universal e fluidos espirituais
Das
questões de 21 a 28 de O Livro dos Espíritos (LE) (KARDEC, 1995), Kardec
apresenta aos Espíritos perguntas sobre o que seriam a matéria e o espírito.
Começa fazendo perguntas sobre a matéria, que é algo que já conhecemos, e depois
pergunta “Que é o espírito?” (questão 23) para o que recebe a seguinte
resposta: “O princípio inteligente do Universo.”
Daí,
na questão 27 do LE, Kardec pergunta se espírito e matéria seriam os elementos
gerais do Universo, ao que os Espíritos responderam que sim mas que: “ao
elemento material se tem que juntar o fluido universal, que desempenha o papel
de intermediário entre o espírito e a matéria propriamente dita, por demais
grosseira para que o espírito possa exercer ação sobre ela.”
Nessa parte da resposta, identificamos um conceito distinto: o fluido universal.
O que seria o fluido universal? No capítulo XIV de A Gênese (GE) (KARDEC,
2010), Kardec apresenta um importante estudo sobre os fluidos. No item 2 deste
capítulo ele apresenta a definição de fluido cósmico universal ou fluido
universal (abreviaremos por FU de agora em diante):
“(...) o fluido cósmico universal é a matéria elementar primitiva, cujas
modificações e transformações constituem a inumerável variedade dos corpos da
Natureza. Como princípio elementar universal, ele apresenta dois estados
distintos: o de eterização ou de imponderabilidade, que se pode
considerar como o estado normal primitivo, e o de materialização ou de
ponderabilidade, que, de certa maneira, é apenas consecutivo àquele outro. O
ponto intermediário é o da transformação do fluido em matéria tangível, mas,
ainda aí, não ocorre uma transição brusca, uma vez que podemos considerar nossos
fluidos imponderáveis como um ponto intermediário entre os dois estados.”
(Grifos em negrito, nossos).
O FU
é, portanto, a matéria prima de tudo o que é material na natureza. Nas palavras
de Kardec acima, as transformações do FU “constituem a inumerável variedade
dos corpos da Natureza.” Mas isso diz respeito às coisas materiais que
formam o universo visível e conhecido. E com relação aos chamados fluidos
espirituais? Primeiro, vamos compreender dois conceitos presentes na citação
acima: ponderabilidade e imponderabilidade.
Ponderável é uma qualidade de algo que é passível de ser pesado. Em outras
palavras, ponderabilidade é uma propriedade de objetos materiais que são
sensíveis às forças de atração gravitacional do nosso planeta e, portanto, podem
ser pesadas. Não confundir isso com a propriedade da massa de um objeto. Por
exemplo, o gás hélio é tido como imponderável, mas ele tem massa. Segundo a
Doutrina Espírita, tanto a matéria “etérea” ou imponderável quanto a matéria
densa, tangível e ponderável são formadas pelo FU.
À
época de Kardec, acreditava-se que, por serem fenômenos invisíveis e
impalpáveis, o calor, o magnetismo e a eletricidade eram formados por fluidos
imponderáveis. Hoje, embora a ciência descreva esses mesmos fenômenos de
outra maneira, o conceito de fluidos e sua imponderabilidade encontraram
grande coerência com os ensinamentos dos Espíritos, de modo que do ponto de
vista filosófico, fluido é uma palavra presente na Doutrina Espírita que
não requer atualização. DA FONSECA (2016a) apresentou explicações sobre a
atualidade do termo “fluidos” no Espiritismo.
Mas
o que são, então, os fluidos, ou os fluidos espirituais?
Para
chegar à resposta, citamos Kardec que, logo depois de definir o FU, apresentou
uma correspondência entre a matéria ponderável e os fenômenos
materiais, conhecidos e estudados pela nossa Ciência, e a matéria
imponderável (os fluidos) e os fenômenos espirituais ou
psíquicos. No item 3 do capítulo XIV de GE, Kardec diz:
“No
estado de eterização, o fluido cósmico não é uniforme. Sem deixar de ser etéreo,
ele sofre modificações também variadas no seu gênero, talvez mais numerosas do
que no estado de matéria tangível. Essas modificações constituem fluidos
distintos que, embora procedendo do mesmo princípio, são dotados de
propriedades especiais e dão lugar aos fenômenos particulares do mundo
invisível.” (Grifos em negrito, nossos).
Kardec, então, afirma que algumas das modificações do FU são tais que estão
presentes apenas nos fenômenos particulares do mundo invisível. O FU assim
modificado, dá origem aos fluidos espirituais. Isto é, fluidos
espirituais são modificações do FU que estão presentes nos fenômenos
espirituais. Kardec faz uma ressalva de natureza filosófica, ao comentar o
seguinte no item 5 do cap. XIV da GE:
“A
classificação de fluidos espirituais não é rigorosamente exata, uma vez
que, definitivamente, eles são sempre matéria mais ou menos
quintessenciada. De espiritual, realmente, só a alma ou princípio inteligente.
Essa denominação é adotada apenas por comparação e, sobretudo, pela
afinidade que esses fluidos têm com os Espíritos. Pode-se dizer que são a
matéria do mundo espiritual, razão pela qual são chamados fluidos espirituais.”
(Grifos em negrito, nossos).
Essa
ressalva ressalta a correspondência entre os fluidos espirituais e o fato de que
é com eles ou através deles que ocorrem os “fenômenos particulares do mundo
invisível”.
Resta agora, esclarecer como os Espíritos sentem, percebem ou usam os fluidos.
Kardec afirmou (item 3 do cap. XIV da GE):
“Tudo sendo relativo, esses fluidos têm para os Espíritos - que também são
fluídicos - uma aparência tão material quanto a dos objetos tangíveis para os
encarnados, sendo para eles o que são para nós as substâncias do mundo
terrestre. Eles os elaboram, os combinam para produzir determinados efeitos,
assim como os homens fazem com os seus materiais, embora por processos
diferentes.” (Grifos em negrito, nossos).
Da
transcrição acima, dois conceitos importantes podem ser destacados: a) para os
Espíritos, os fluidos tem aparência material, semelhante às nossas
substâncias e objetos; e b) são os Espíritos que os elaboram ou os combinam para
produzir determinados efeitos. A letra b) representa um dos fundamentos dos
mecanismos da mediunidade como veremos mais adiante. Em outras palavras, a
mediunidade vai depender de algum tipo de combinação de fluidos para
ocorrer. Entenderemos isso até o final do artigo.
Precisamos entender o que a Doutrina Espírita ensina sobre como os
Espíritos podem “elaborar” ou “combinar” fluidos para produzir ou
realizar algum fenômeno. Kardec explica isso no item 14 do capítulo XIV de GE:
“Os
Espíritos agem sobre os fluidos espirituais, não os manipulando como os
homens manipulam os gases, mas com a ajuda do pensamento e da vontade.
O pensamento e a vontade são para os Espíritos o que a mão é para o homem. Pelo
pensamento, eles imprimem aos fluidos espirituais esta ou aquela direção; eles
os aglomeram, combinam ou dispersam; com eles formam conjuntos tendo uma
aparência, uma forma e uma cor determinadas; mudam as suas propriedades, como um
químico muda a dos gases ou de outras substâncias, combinando-as segundo certas
leis. É a grande oficina ou laboratório da vida espiritual.” (Grifos em negrito,
nossos).
O
entendimento do processo, agora, se torna mais claro. Não tendo corpo físico
material, os Espíritos não podem agir sobre os fluidos da mesma forma que
encarnados agem sobre a matéria. Os Espíritos agem sobre os fluidos
através do pensamento e da vontade. Ou, em termos simples, pensando e tendo
vontade. Esse é um dos princípios mais importantes do Espiritismo! O pensamento
e a vontade são atributos que todo Espírito tem, com e/ou através dos
quais é capaz de modificar o FU presente ao nosso redor, gerando neles forma,
cor e, mais importante, qualidades associadas à qualidade do
pensamento. Se um pensamento é bom, os fluidos ao redor do
Espírito se modificarão de acordo e de modo a adquirirem qualidades boas.
Se um pensamento é mau, os fluidos ao redor do Espírito se
modificarão de modo a adquirirem qualidades más (ver item 15 do cap. XIV
de GE). Essas modificações podem ocorrer por intenção ou por pensamentos
inconscientes, e ocorrem de modo até mesmo instantâneo, isto é, basta pensar
e/ou sentir, que o FU ao redor do Espírito, encarnado ou desencarnado, se
modifica e adquire as qualidades do pensamento (ver item 14 do cap. XIV de GE).