O retorno de Kardec à vida espiritual
Há 151 anos, no dia 31 de março de 1869, o codificador
do Espiritismo encerrava sua missão em nosso mundo
Nascido em 3 de outubro de 1804, Allan Kardec contava,
ao desencarnar, pouco mais de 64 anos de idade.
Como era o homem que codificou os ensinamentos
espíritas?
A jornalista Ana Blackwell, que traduziu para o inglês
suas principais obras, assim o descreveu:
"Kardec era de estatura média. Compleição forte, com uma
cabeça grande, redonda, maciça, feições bem marcadas,
olhos pardos, mais se assemelhando a um alemão do que a
um francês. Enérgico e perseverante, mas de temperamento
calmo, cauteloso e não imaginoso até a frieza, incrédulo
por natureza e por educação, pensador seguro e lógico e
eminentemente prático no pensamento e na ação, era
igualmente emancipado do misticismo e do entusiasmo...
"Grave, lento no olhar, modesto nas maneiras, embora
não lhe faltasse uma certa dignidade, resultante da
seriedade e da segurança mental, que eram traços
distintivos de seu caráter. Nem provocava nem evitava a
discussão, mas nunca fazia voluntariamente observações
sobre o assunto a que havia devotado toda a sua vida.
Recebia com afabilidade os inúmeros visitantes de todas
as partes do mundo que vinham conversar com ele a
respeito dos pontos de vista nos quais o reconheciam um
expoente, respondendo a perguntas e objeções, explanando
as dificuldades e dando informações a todos os
investigadores sérios, com os quais falava com liberdade
e animação, de rosto ocasionalmente iluminado por um
sorriso genial e agradável, conquanto tal fosse a sua
habitual seriedade de conduta, que nunca se lhe ouvia
uma gargalhada..." (Do livro "História do
Espiritismo", de Arthur Conan Doyle.)
Quem foi Kardec?
Nascido em Lyon, França, a 3 de outubro de 1804, Kardec
recebeu na pia batismal o nome de Hippolyte Léon
Denizard Rivail. No dia 6 de fevereiro de 1832, casou-se
com Amélie Gabrielle Boudet. Sua desencarnação ocorreu
em Paris em 31 de março de 1869.
Filho de tradicional família francesa que se destacara
na magistratura, Kardec nasceu em ambiente católico, mas
foi educado no protestantismo. Aluno e depois discípulo
de Pestalozzi, foi uma pessoa devotada à educação e um
entusiasta do sistema de ensino criado por seu mestre,
que exerceu grande influência na França e na Alemanha.
Falava fluentemente o alemão, o inglês, o italiano e o
espanhol, assim como o holandês. Tradutor das obras de
Fénelon para o alemão, verteu também para o francês
diversas obras inglesas e alemãs, mas foi no magistério
que estava a sua indiscutível vocação.
No período de 1835 a 1840, organizou em sua casa em
Paris cursos gratuitos de química, física, astronomia e
anatomia comparada, que eram muito frequentados. Aos 27
anos, em 1831, foi premiado em concurso pela
apresentação de um trabalho intitulado: "Qual o sistema
de estudo mais em harmonia com as necessidades da
época?" Nessa mesma época, ele preparava todos os cursos
de Levy-Alvares, frequentados por discípulos de ambos os
sexos do "fauborg" Saint-Germain.
Voltado para a educação, escreveu inúmeras obras
didáticas no período de 1824 a 1849, tais como: "Curso
prático e teórico de Aritmética", segundo o método de
Pestalozzi, para uso das mães e dos professores (ele
contava então 20 anos de idade); "Plano apresentado para
o melhoramento da instrução pública" (aos 24 anos);
"Gramática Francesa Clássica" (aos 27 anos); "Manual dos
exames para obtenção dos diplomas de capacidade,
soluções racionais das questões e problemas de
Aritmética e Geometria" (aos 42 anos); "Catecismo
gramatical da língua francesa" (aos 44 anos); "Ditados
normais dos exames na municipalidade e na Sorbonne" e
"Ditados especiais sobre as dificuldades ortográficas"
(aos 45 anos). Nessa época (1849), Kardec lecionava no
Liceu Polimático de Paris, regendo as cadeiras de
fisiologia, astronomia, física e química.
Uma carta consoladora
O primeiro contato do professor com os fenômenos
espíritas se deu em maio de 1855. Ele já era, então, aos
50 anos de idade, um indivíduo maduro e experimentado,
além de talhado para a tarefa de codificação da
Doutrina, cujo fato inicial marcante foi a publicação em
18 de abril de 1857 da conhecida obra a que deu o título
de O Livro dos Espíritos. A ela seguiram-se
outras obras, as palestras, as reuniões, a fundação da
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e as edições
mensais da Revista Espírita.
O bem que sua obra proporcionou a tanta gente é algo
difícil de avaliar. Eis, no entanto, uma pequena amostra
disso no relato que se segue.
“Numa manhã muito fria de abril de 1860, Kardec estava
triste e só, em seu escritório. Ideias de desânimo
perpassavam sua mente. Escasseavam os recursos
financeiros. Críticas ferinas, até de companheiros da
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, ele vinha
recebendo de todos os lados. Bem que os espíritos o
haviam alertado!
De repente, Amélie penetra o recinto e lhe entrega um
pacote que alguém havia remetido. Kardec o abre e vê que
dentro dele havia uma carta e um outro pacote fechado. O
codificador abre a carta e lê:
"Sr. Allan Kardec.
Respeitoso abraço.
Com a minha gratidão, remeto-lhe o livro anexo, bem como
a sua história, rogando-lhe, antes de tudo, prosseguir
em suas tarefas de esclarecimento da humanidade, pois
tenho fortes razões para isso.
Sou encadernador desde a meninice, trabalhando em grande
casa desta capital.
Há cerca de 2 anos, casei-me com aquela que se revelou
minha companheira ideal. Nossa vida corria normalmente e
tudo era alegria e esperança, quando, no início deste
ano, de modo inesperado, minha Antoniete partiu desta
vida, levada por sorrateira moléstia. Meu desespero foi
indescritível e julguei-me condenado ao desamparo
extremo. Sem confiança em Deus, sentindo as necessidades
do homem do mundo e vivendo com as dúvidas aflitivas de
nosso século, resolvera seguir o caminho de tantos
outros, ante a fatalidade...
A prova da separação vencera-me, e eu não passava,
agora, de trapo humano. Faltava ao trabalho e meu chefe,
reto e ríspido, ameaçava-me com a dispensa. Minhas
forças fugiam..."
O missivista relatou então que passou a acalentar a
ideia do suicídio, jogando-se no Sena, projeto que pôs
em execução em determinada madrugada, quando o desespero
lhe tomou por completo a alma. Buscou a ponte Marie e,
no momento em que colocou a mão sobre o parapeito da
ponte, um objeto caiu-lhe aos pés: era um livro. Ele
procurou a luz de um poste próximo, achou estranho o
título do livro e viu que na sua primeira página havia
uma nota: ESTA OBRA SALVOU-ME A VIDA. LEIA-A COM ATENÇÃO
E TENHA BOM PROVEITO. - A. Laurent.
"Li aquele livro com redobrada atenção: era O Livro
dos Espíritos, que encadernei e lhe envio, anexo,
como um presente."
Kardec desembrulhou o pacote anexo à carta e viu ali o
livro a que se referia o missivista, luxuosamente
encadernado, com o nome do autor e o título gravados a
ouro. O codificador, ao abri-lo, encontra a citação de
A. Laurent, mencionada na carta, e debaixo dela, uma
outra inscrição: SALVOU-ME TAMBÉM. DEUS ABENÇOE AS ALMAS
QUE COOPERARAM EM SUA PUBLICAÇÃO. - Joseph Perrier.
Kardec respirou a longos haustos e, antes de retomar o
serviço, levou o lenço aos olhos e limpou uma lágrima."
(Hilário Silva, cap. 52 d' "O Espírito da Verdade",
FEB.)
O reconhecimento de sua obra: Emmanuel fala sobre Kardec
Após 162 anos desde o lançamento d’ O Livro dos
Espíritos, Kardec é hoje conhecido e respeitado
mundialmente pelos espiritistas. A reverência à sua
obra, vencedora no tempo, está expressa nas seguintes
palavras de Emmanuel, a mesma entidade que recomendara a
Chico Xavier comparar seus escritos com o Evangelho de
Jesus e as obras de Kardec, antes de torná-los públicos:
"Antes de Kardec, embora não nos faltasse a crença em
Jesus, vivíamos na Terra atribulados por flagelos da
mente, quais o que expomos:
o combate recíproco e incessante entre os discípulos do
Evangelho;
o cárcere das interpretações literais;
o espírito de seita;
a intransigência delituosa;
a obsessão sem remédio;
o anátema nas áreas da filosofia e da ciência;
o cativeiro aos rituais;
a dependência quase absoluta dos templos de pedra para a
tarefa da edificação íntima;
a preocupação da hegemonia religiosa;
a tirania do medo, ante as sombrias perspectivas do
além-túmulo;
o pavor da morte, por suposto fim da vida.
Depois de Kardec, porém, com a fé raciocinada nos
ensinamentos de Jesus, o mundo encontra no Espiritismo
Evangélico benefícios incalculáveis, como sejam:
a libertação das consciências;
a luz para o caminho espiritual;
a dignificação do serviço ao próximo;
o discernimento;
o livre acesso ao estudo da lei de causa e efeito, com a
reencarnação explicando as origens do sofrimento e as
desigualdades sociais;
o esclarecimento da mediunidade e a cura dos processos
obsessivos;
a certeza da vida após a morte;
o intercâmbio com os entes queridos domiciliados no
Além;
a seara da esperança;
o clima da verdadeira compreensão humana;
o lar da fraternidade entre todas as criaturas;
a escola do Conhecimento Superior, desvendando as
trilhas da evolução e a multiplicidade das "moradas" nos
domínios do Universo.
Jesus - o amor. Kardec - o raciocínio.
Jesus - o Mestre. Kardec - o apóstolo.
Seguir o Cristo de Deus, com a luz que Kardec acende em
nossos corações, é a norma renovadora que nos fará
alcançar a sublimação do próprio espírito, em louvor da
Vida Maior.” (Mensagem psicografada por Chico Xavier em
24/1/1969.)
O retorno à pátria espiritual
"Ele morreu esta manhã, entre 11 e 12 horas,
subitamente, ao entregar um número da "Revista Espírita"
a um caixeiro de livraria que acabava de comprá-lo; ele
se curvou sobre si mesmo, sem proferir uma única
palavra: estava morto.
Sozinho em sua casa (rua de Sant'Anna), Kardec punha em
ordem seus livros e papéis para a mudança que se vinha
processando e que deveria terminar amanhã. Seu
empregado, aos gritos da criada e do caixeiro, acorreu
ao local, ergueu-o... nada, nada mais. Delanne acudiu
com toda presteza, friccionou-o, magnetizou-o, mas em
vão. Tudo estava acabado.
Venho de vê-lo. Penetrando a casa, com móveis e
utensílios diversos atravancando a entrada, pude ver,
pela porta aberta da grande sala de sessões, a desordem
que acompanha os preparativos para uma mudança de
domicílio; introduzido numa pequena sala de visitas, que
conheceis bem, com seu tapete encarnado, e seus móveis
antigos, encontrei a sra. Kardec assentada no canapé
(espécie de sofá com costas e braços), de face para a
lareira; ao seu lado, o sr. Delanne; diante deles, sobre
dois colchões colocados no chão, junto à porta da
pequena sala de jantar, jazia o corpo, restos inanimados
daquele que todos amamos. Sua cabeça, envolta em parte
por um lenço branco atado sob o queixo, deixava ver toda
a face, que parecia repousar docemente e experimentar a
suave e serena satisfação do dever cumprido.
Nada de tétrico marcara a passagem de sua morte; se não
fosse a parada de respiração, dir-se-ia que ele estava
dormindo.
Cobria-lhe o corpo uma coberta de lã branca, que, junto
aos ombros dele, deixava perceber a gola do "robe de
chambre", a roupa que ele vestia quando fora fulminado;
a seus pés, como que abandonadas, suas chinelas e meias
pareciam possuir ainda o calor do corpo dele.
Tudo isto era triste e, entretanto, um sentimento de
doce quietude penetrava-nos a alma; tudo na casa era
desordem, caos, morte, mas tudo aí parecia calmo,
risonho e doce e, diante daqueles restos, forçosamente
meditamos no futuro." (Trecho da carta escrita por E.
Muller ao sr. Finet, em 31/3/1869, logo após o
falecimento de Kardec.)
Conta-se que logo após a sua desencarnação, quando o
corpo ainda não havia baixado ao Cemitério de Montmartre
(a trasladação dos despojos para o dólmen do
Père-Lachaise ocorreu um ano depois), uma multidão de
Espíritos veio saudar o mestre no limiar do sepulcro.
Eram antigos homens do povo, seres infelizes que ele
havia consolado e redimido com as suas ações
prestigiosas e, quando se entregavam às mais santas
expansões afetivas, uma lâmpada maravilhosa caiu do céu
sobre a grande assembleia dos humildes, iluminando-a com
uma luz que, por sua vez, era formada de expressões do
seu "Evangelho segundo o Espiritismo", ao mesmo tempo
que uma voz poderosa e suave dizia do Infinito:
"Kardec, regozija-te com a tua obra! A luz que acendeste
com os teus sacrifícios na estrada escura das descrenças
humanas vem felicitar-te nos pórticos misteriosos da
Imortalidade... O mel suave da esperança e da fé que
derramaste nos corações sofredores da Terra,
reconduzindo-os para a confiança na minha misericórdia,
hoje se entorna em tua própria alma, fortificando-te
para a claridade maravilhosa do futuro.
"No Céu estão guardados todos os prantos que choraste e
todos os sacrifícios que empreendeste... Alegra-te no
Senhor, pois teus labores não ficaram perdidos. Tua
palavra será uma bênção para os infelizes e
desafortunados do mundo, e ao influxo de tuas obras a
Terra conhecerá o Evangelho no seu novo dia!..." (Trecho
do cap. 21 do livro "Crônicas de Além-Túmulo", por
Humberto de Campos, por meio de Chico Xavier.)
Conta-se, ainda, que grandes legiões de Espíritos
entoaram na imensidade um hino de hosanas ao homem que
organizara as primícias do Consolador para o planeta
terreno e que, escoltado pelas multidões de seres
agradecidos e felizes, foi o mestre, em demanda das
esferas luminosas, receber a nova palavra de Jesus.