Para que perdoar?
Todos nós, espíritas cristãos, estamos acostumados a
ouvir e a falar em perdão. Desde as sábias e
imorredouras palavras do Mestre Nazareno, das quais
destacamos a oração do Pai Nosso, o tema vem sendo
martelado em nossas mentes, mas, curiosamente, fazemos
questão de não refletir maduramente sobre ele, a fim de
extrair as lições preciosas para as nossas vidas: “Pai,
perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a
quem nos tenha ofendido”.
Aqui, na análise deste pequeno trecho, ressalta a
excelência da Pedagogia Crística, profunda e sintética,
ao mesmo tempo. Em primeiro lugar, Jesus nos coloca como
o ofensor, ou seja, devemos reconhecer que, muitas
vezes, somos nós aquele que agride, que fere, que magoa
e este é um sinal de humildade e de humanidade, porque
nos enxergamos como alguém falível, capaz, como todos os
outros, de errar, de se equivocar.
Quanto é mais cômodo nos situarmos na posição de
vítimas, impolutas e quase santas, incompreendidas e
atacadas pela incompreensão alheia, no entanto, tal
atitude não favorece o avanço, ao contrário, faz com que
estacionemos, chorosos e preocupados em angariar a
compaixão dos que nos cercam. Então, é interessante nos
vermos como pessoas que também precisam receber o
bálsamo do perdão, o que resta claro na segunda parte da
sentença: alcançaremos o perdão na exata medida em que
perdoamos as agressões que nos são dirigidas.
Da Judeia dos tempos apostólicos saltamos para a Toscana
da Idade Média, onde, nos idos do século 15,
encontraremos o discípulo bem-amado, João, envergando o
burel surrado dos franciscanos, a cantar, dos campos
felizes da região da cidade de Assis, ecoando a Boa
Nova: “É perdoando que se é perdoado”.
A bordo dessa maravilhosa máquina do tempo que é a nossa
memória, retornamos ao Oriente Médio a tempo de flagrar
o mais humano dos Apóstolos (e por isso mesmo escolhido
pelo Rabi da Galileia para ser o líder dos demais
seguidores) num diálogo íntimo, o qual foi registrado
pelo evangelista Mateus, no capítulo 18 de seus
registros e preservado para o nosso deleite:
“- Senhor, quantas vezes devo perdoar a meu irmão,
quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?
Respondeu Jesus: Não te digo até sete vezes, mas até
setenta vezes sete”.
De lá, avancemos até o século 20, em Pedro Leopoldo, nas
Minas Gerais, a tempo de captarmos um trecho do “dedo de
prosa” entre Emmanuel e uma senhora que permaneceu
anônima, representante das agruras de todos nós,
terrícolas, diálogo este intermediado pelo inesquecível
e Cândido, Francisco Xavier:
“- Chico, eu vivo com um homem alcoólatra e dois filhos
problemáticos, andei fazendo umas contas e percebi que
já perdoei mais de 490 vezes...”
Ao que o médium excelente rebateu:
“- O nosso irmão Emmanuel, aqui presente, me pede para
lembrar que quando Nosso Senhor disse isso, ele se
referia a perdoar 490 vezes cada ofensa”.
Ou seja, é o perdão incondicional, ilimitado; o que
Jesus nos convida é a vivenciarmos o perdão, dia após
dia, é para adotarmos o perdão como um estilo de vida.
Lembramo-nos aqui do Messias crucificado, mirando a
multidão que o cercava e visualizando além, os
equivocados perseguidores desencarnados, para afirmar,
com toda a nobreza de sua alma: “- Pai, perdoa-lhes,
porque não sabem o que fazem”.
Mas o Caminho para a Verdade e a Vida não se deteve aí,
o que já seria uma enormidade e retorna do sepulcro,
prosseguindo na didática divinal, dialogando,
orientando, deixando-se tocar, na demonstração clara de
que nos perdoava a deserção, a covardia, a insensatez,
por conhecer-nos e saber das nossas fragilidades,
apegados às aparências e às falsas sensações de
segurança.
Ainda não aprendemos a nos desataviar de tudo isso para
prosseguirmos leves, quais crianças, as quais, aliás,
têm muito para ensinar a quem tem “olhos de ver!”.
Observemos o quadro de alguns pequenos brincando entre
eles: daí a alguns instantes pode ser que surja alguma
altercação, alguma disputa em razão de uma boneca, de um
carrinho ou de outro brinquedo qualquer. Pode ser até
que partam para agressão física, com tapas e empurrões.
Se nos contivermos e não interferirmos de maneira
enganosa, dali a minutos estarão brincando juntos
novamente, como se nada demais tivesse acontecido. O
problema é que muitas vezes a nossa intervenção é
danosa, quando gritamos, raivosamente, frases do tipo:
“- Não seja bobo(a), não deixe que faça isso com você!”,
ou “- Dá nele, ou nela, não apanha, não”.
Para fecharmos com a pérola:
“- Filho meu não leva desaforo para casa!”. Pior é que a
criaturinha pode introjetar isso e, de futuro, tornar-se
uma pessoa intragável, que por não saber relevar nada,
pode acabar levando o desaforo, não para casa, é
verdade, mas para o hospital ou para a cadeia!
Mais uma vez, recorremos ao santificado Mateus, agora no
capítulo 3 de suas anotações: “- Eu lhes asseguro que, a
não ser que vocês se convertam e se tornem como
crianças, jamais entrarão no Reino dos Céus”.
Não basta nos tornarmos crianças em idas e vindas
sucessivas, nas diversas reencarnações, se não nos
esforçarmos por nos despir do nosso orgulho e nos
assemelharmos aos pequenos, na sua delicadeza e na sua
brandura, na capacidade que trazem consigo de passar por
cima das ofensas e das desavenças.
Perdoar é preciso, é imprescindível até, para quê?
É preciso, urgentemente, que desenvolvamos a capacidade
de perdoar, para que não retornemos daqui a alguns anos
em reuniões mediúnicas, nesse Brasil imenso, rangendo os
dentes e chorando em meio às trevas em que nos
mergulhamos, por não havermos sabido nos reconciliar com
os nossos adversários, enquanto estávamos a caminho com
eles.
Para não nos transformarmos em vingadores, em agentes de
cobrança, como se as Leis de Deus precisassem disso!
É necessário perdoar, para não nos tornarmos obsessores!
Quantas perseguições duradouras, atravessando décadas e
até mesmo séculos, por falta da habilidade em perdoar?
O perdão faz bem para a saúde: as investigações
científicas comprovaram que ataques de raiva causam
distúrbios em nosso aparelho circulatório e nos sistemas
respiratório e imunológico, os quais podem levar a
doenças cardiovasculares como hipertensão, além de
enfartos do miocárdio e AVC’s; dentre esses estudos,
podemos citar entre muitos outros, Williams et al.
(1991), Chesney et al. (1990) e Van Egeren e Sparrow
(1990), Engebretson e Matthews (1992), além de Lahad et
al., (1997), Chapud et al., (2002), Barefoot et al.,
(1995) e Gloria et al., (1996).
Portanto, nem que seja para preservarmos a saúde do
corpo, para que possamos prolongar, ao invés de diminuir
a estadia na escola planetária, como encarnados, é
preciso aprender a perdoar.
Perdoar é característico das almas enobrecidas,
temperadas e retemperadas no cadinho de tarefas
evolutivas, como fica claro no caso trazido por Hilário
Silva em “A vida escreve”:
“À doente que se queixava em desespero, perguntou a
senhora que lhe velava o leito:
— Permite que eu leia para seu reconforto algum pequeno
trecho de Allan Kardec?
— Deus me livre! — gritou a enferma, cuspindo-lhe aos
pés.
2 Ainda
assim, as mãos abnegadas da companheira continuaram
ajeitando-lhe os lençóis…
— Quero água! — exigiu a doente.
A amiga trouxe-lhe água pura e fresca.
3 De
copo às mãos, a enferma, num ímpeto, atirou-lhe todo o
líquido à face, vociferando:
— Água imunda!… Como se atreve a tanto? Quero outra!
4 Paciente
e humilde, a senhora enxugou o rosto molhado e, em
seguida, trouxe mais água.
— Quero chá.
E o chá surgiu logo.
— Chá malfeito! Chá frio!
5 O
conteúdo da taça foi projetado ao peito da outra,
ensopando-lhe a blusa.
— Traga chá quente!
Foi a ordem obedecida.
— Você aceita agora o remédio? — indagou a assistente.
— Que venha depressa.
6 Ao
tomar, contudo, a poção, a dama inconformada agarra a
colher e vibra um golpe no braço da amiga. Surge pequeno
ferimento, mostrando sangue.
E a enferma cai em crise de lágrimas. Chora, chora e
depois diz:
— Anália, se a religião espírita que você abraçou é o
que lhe ensina a me suportar com tanta calma, leia o que
quiser.
7 A
interpelada sentou-se. Tomou “O
Evangelho segundo o Espiritismo” e leu a
formosa página intitulada A paciência, no
capítulo IX, que começa afirmando: “A dor é uma bênção
que Deus envia a seus eleitos…”
8 Acalmou-se
a doente, que acabou aceitando o socorro do passe e o
benefício da água fluída.
Conversaram ambas. A enferma, asserenada, ouviu da
companheira os planos que arquitetava para o futuro, em
benefício dos meninos abandonados à rua.
9 No
dia seguinte, ao despedir-se, a obsidiada em
reequilíbrio beijava-lhe as mãos e dava-lhe os primeiros
dois contos de réis para começar a grande obra.
10 Essa
enfermeira admirável de carinho e devotamento era Anália
Franco, a heroína da seara espírita paulista,
que se fez sublime benfeitora das criancinhas
desamparadas.” (Psicografia de Francisco Cândido
Xavier.)
Aqueles eram os dias da Lei do Ventre Livre, em que os
filhos dos escravos, por não terem mais serventia para
os fazendeiros, eram expulsos, e o número de crianças
desamparadas, “ao Deus dará”, crescia, dia a dia.
Ante o quadro doloroso, Anália Franco Bastos não se
manteve à parte, omissa, como se aquilo não fosse
problema dela e foi à luta.
E tanto pelejou, tanto batalhou, em meio a um período
turbulento, com a abolição da escravatura, a proclamação
da República e uma Guerra de proporções mundiais, numa
época em que as mulheres não tinham vez nem voz, que
pôde chegar ao término de sua vida missionária, abatida
pela Gripe Espanhola, deixando os rastros luminosos de
mais de 70 escolas fundadas e de mais de 20
instituições, como asilos, creches e orfanatos!
Que o seu lema possa ser o lema de nossas vidas: “- Não
basta conhecer o Bem; é preciso fazê-lo frutificar”.
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