Limitações
ao
autoconhecimento
O Livro dos Espíritos,
primeira obra da codificação kardequiana, coloca que o
conhecimento de si mesmo é o meio prático mais eficaz
para se melhorar já nesta vida e resistir à atração do
mal.[i]
Assim, tem sido proposto que a dinâmica da reforma
íntima se inicie pelo autoconhecimento, ou seja, a
identificação em nossa personalidade de traços dos
defeitos morais.
De acordo com estudiosos
da Psicologia social [ii] o
autoconceito consiste na representação mental que
construímos acerca de nosso eu. Formamos uma imagem de
nós mesmos basicamente da mesma maneira que formamos uma
impressão acerca de outras pessoas. A partir da
percepção de nós mesmos (nosso sexo, as características
de nossa família, nossas preferências, nossos valores,
os grupos aos quais nos associamos) e da percepção de
como nos relacionamos e nos comparamos com os outros,
que nosso autoconceito se forma.
O autoconhecimento, em realidade, transcende a
identificação de nossas más inclinações, e se importa
igualmente com a revelação de todos os traços de nossa
personalidade, incluindo nossas boas qualidades, nossas
habilidades úteis, além do reconhecimento de nossas
potencialidades e limitações cognitivas, revelando a
cada um até aonde pode ir, e como chegar lá. O
autoconhecimento se identifica, enfim, com o
desenvolvimento pleno de nossa humanidade e se relaciona
com diferentes formas de conhecimento.
O autoconhecimento é uma ferramenta necessária e
extraordinária no processo da transformação moral, no
entanto, particularmente ao que se refere à
identificação das más inclinações, se acompanha de
dificuldades que, poucas vezes, são examinadas.
O processo em si mesmo, tal como proposto por Santo
Agostinho, nas conhecidas questões 919 e 919-a de O
Livro dos Espíritos, exige do sujeito envolvido um
discernimento de razoável magnitude, que só será visto
em personalidade dotada de certo desenvolvimento
intelecto moral. Desenvolvimento intelectual será
necessário para avaliar adequadamente cada ação pessoal,
qualificando-a quanto à sua condição de benignidade ou
não, de utilidade ou não, de superioridade ou não.
Desenvolvimento moral igualmente será necessário,
particularmente, boa dose de humildade, permitindo ao
indivíduo reconhecer-se como um ser imperfeito. Grande
parte dos avarentos se considera apenas prevenido, e
parte significativa das personalidades arrogantes dirá
que não se trata de orgulho e sim de dignidade humana.
Necessário considerar também questões afeitas aos
mecanismos psicológicos de defesa do ego. O processo de
introspecção está sempre sujeito a interferências não
conscientes. Segundo os psicólogos, a crítica mais
frequente apresentada à introspecção como meio de
autoconhecimento deriva da existência de um mecanismo
psicológico denominado repressão. Tendemos a
manter fora de nossa consciência, por meio desse
mecanismo, tudo aquilo que nos provoca ansiedade e nos
ameaça. Por isso, permanece o fato de não nos ser
possível atingir certas características de nosso eu,
seja porque existe uma motivação inconsciente de
reprimir conteúdos psíquicos indesejáveis, seja porque a
arquitetura da mente inclui partes que nos são
inacessíveis a partir de esforço consciente.
Importante acrescentar que, segundo estudos da
Psicologia social, agimos quase sempre tendendo proteger
nossa autoestima. A autoestima é a autoavaliação que
fazemos de nosso autoconceito. Quando essa avaliação é
positiva, dizemos que a pessoa tem alta autoestima, e
quando nossa avaliação de nós mesmos é negativa, dizemos
que a autoestima é baixa. No processo de auto-observação
de nosso comportamento muitas vezes contrapomos nosso
comportamento atual ao de modelos ideais internalizados.
Possuímos um eu real e um eu ideal. O
primeiro consiste no conhecimento de como somos; o
segundo refere-se ao que gostaríamos de ser. Quanto
maior a discrepância entre o eu real e o eu ideal,
menor a nossa autoestima.
Todos temos uma tendência
de manter uma imagem positiva de nós mesmos. Nosso ego
funciona como um ditador que censura tudo aquilo que nos
é indesejável acerca de nós. Mantemos ilusões positivas
a fim de nos sentirmos bem e continuarmos tendo uma
autoimagem positiva. Ao analisarmos a realidade, ao
invés de encontrarmos um cientista em genuína procura da
verdade, nós nos deparamos com a constrangedora figura
de um charlatão procurando fazer com que os dados
apareçam da forma mais vantajosa possível para a
confirmação de suas teorias. Assim agimos também quando
processamos os dados relativos ao nosso autoconceito. A
partir de negação da realidade e de ilusões positivas,
fortalecemos uma visão favorável de nosso autoconceito e
de nossa autoestima. Essa tendência é tão arraigada em
nós que frequentemente nos recusamos a reconhecer nossos
erros, recorrendo a racionalizações, negação e outros
mecanismos de defesa a fim de justificar nossos erros e
manter intacta nossa autoestima.[iii]
Mas que outro processo pode nos oferecer elementos para
a transformação pessoal? Especificamente ao que se
relaciona à busca das virtudes morais, além do
autoconhecimento, se impõe o conhecimento do bem,
ou seja, o reconhecimento de como as virtudes se
manifestam, e de como agem as pessoas virtuosas, e
isso pode ser obtido com o estudo continuado da Doutrina
espírita.
Lembra-nos Kardec que à
medida que os homens se instruem acerca das coisas
espirituais, menos valor dão às coisas materiais [iv] e
que o egoísmo se enfraquecerá, sobretudo, com a
compreensão que o Espiritismo nos faculta do nosso
estado futuro, real e não desfigurado por ficções
alegóricas. Quando bem compreendido, acrescenta
nosso codificador, quando se houver identificado com os
costumes e as crenças, o Espiritismo transformará os
hábitos, os usos, as relações sociais.[v]
Referindo-se ainda à
educação como chave fundamental no melhoramento moral,
Kardec acrescenta que ela o fará
utilmente quando se basear no estudo aprofundado da
natureza moral do homem. Pelo conhecimento das leis que
regem essa natureza moral, chegar-se-á a modificá-la,
como se modifica a inteligência pela instrução e o
temperamento pela higiene.[vi]
O conhecimento do bem nos identificará com o repositório
dos defeitos e virtudes humanos, onde se estabelecem os
vícios e as más e boas inclinações, e nos apresentará as
medidas que devem ser tomadas nas mudanças de hábitos,
costumes e reações perante o outro. Sabemos,
independentemente do conhecimento específico de nosso
mundo íntimo, que somos ainda detentores de traços e
comportamentos infelizes. No estágio evolutivo em que
nos encontramos, possuímos, mais ou menos, os mesmos
defeitos. Quem, em sã consciência, dirá a si mesmo ter
vencido a soberba, a inveja, o ciúme, ou se reconhecerá
infinitamente paciente e inclusivo?
O que fará de nós pessoas melhores é, sobretudo, o
conhecimento aprofundado das virtudes e a sequência de
ações que podem nos aproximar delas. Compreender como o
bem se manifesta e, a partir daí, canalizarmos nossos
pensamentos e ações em conformidade com o bem
perfeitamente compreendido.
Assim, torna-se eficaz:
Reconhecer-se invejoso e entender como agem os não
invejosos.
Saber-se ciumento e examinar como se comportam os não
ciumentos.
Reconhecer o hábito da preguiça mental e ver-se diante
das ações de um diligente.
Admitir-se autoritário e saber identificar como se
manifesta o não autoritarismo.
Façamos uma analogia. Temos um balde cheio de água suja
e desejamos trocá-lo por outro com água limpa, mas não
podemos, simplesmente, jogar a água fora. O que fazer?
Colocá-lo embaixo de uma torneira onde corre água limpa.
Com o tempo a água suja transbordará do balde, sendo,
paulatinamente, substituída pela limpa. Pouco vale
indagar sobre o tipo de sujeira, quem sujou a água ou há
quanto tempo encontra-se suja. Importa a ação que a
torne limpa!
Emmanuel admite que a sabedoria
começa na aquisição do conhecimento,[vii] e
que para desatar as algemas do mal que nós mesmos
forjamos em detrimento de nossas almas nos compete buscar
o bem, senti-lo, mentalizá-lo e plasmá-lo com todos os
potenciais de realização ao nosso alcance.[viii]
Conhecer e amar, instruir-se e servir, esclarecer-se e
cultivar o espírito da boa vontade: esse o caminho!
[i] O
Livro dos Espíritos, item 919.
[ii] Psicologia
social (Aroldo Rodrigues, Eveline Assmar e
Bernardo Jablonski, cap. 4.)
[iii] Psicologia
social (Aroldo Rodrigues, Eveline Assmar e
Bernardo Jablonski cap. 4: Conhecendo-nos a nós
mesmos.)
[iv] O
Livro dos Espíritos, item 914.
[v] O
Livro dos Espíritos, item 917.
[vi] O
Livro dos Espíritos, item 872.
[vii] Pensamento
e vida, Emmanuel, cap. 4.
[viii] Pensamento
e vida, Emmanuel, cap. 10.