Brasil
por Giovana Campos

Ano 14 - N° 679 - 19 de Julho de 2020

Pesquisa reforça a noção de que a mediunidade não é um fenômeno patológico


A relação entre a mediunidade e a glândula pineal sempre foi motivo de questionamentos na ciência espírita. Muito se pergunta se a glândula pineal tem alguma função durante as experiências espirituais de transes mediúnicos e, em caso positivo, o que acontece de fato. O Espírito André Luiz, por intermédio das psicografias de Chico Xavier, relatava essa possibilidade, porém na década de 1940, época em que as mensagens deram origem à série de livros psicografados, pouco se podia fazer para apontar evidências ou provas sobre o assunto.

Com o passar dos anos, a tecnologia nos trouxe possibilidades de aprofundar os estudos e conhecer mais sobre o funcionamento dessa glândula e suas ligações com a mediunidade. A revista Brain and Behavior publicou uma recente pesquisa que relata os resultados de um estudo sobre esse questionamento. Para acessar o artigo, clique aqui

Diante disso, entrevistamos o médico endocrinologista Marco Aurélio Vinhosa
Bastos Jr., um dos autores desse artigo, para que ele nos explique sobre a pesquisa realizada e a função da pineal nos episódios mediúnicos.

 

A seguir, a entrevista que ele nos concedeu:

Recentemente, foi publicada uma pesquisa sobre a estrutura e função da glândula pineal em mulheres que passam por experiências mediúnicas. Qual a importância da glândula pineal nos processos mediúnicos?

A suposta ligação da glândula pineal com assuntos espirituais é histórica, remontando aos escritos médicos de Cláudio Galeno, no segundo século da era cristã. O filósofo francês René Descartes, no século XVII, foi outra importante personalidade a defender essa tese. Na mesma linha, muitos escritos espíritas, por exemplo as obras do autor espiritual André Luiz, psicografadas por Chico Xavier, trazem afirmações de que a glândula pineal (utilizando o seu sinônimo: epífise) teria um papel importante nas experiências mediúnicas. Porém, em termos de evidências científicas, ainda não foi comprovada essa ligação, algo que pudesse indicar em que bases se daria essa atuação da glândula pineal durante o ato mediúnico.

No artigo recentemente publicado que você mencionou, relatamos os resultados de uma pesquisa em que analisamos o volume da pineal em 16 médiuns espíritas experientes (quase todas com mais de 10 anos de prática nos centros espíritas) em comparação com 16 pessoas não médiuns (no caso, quase todas católicas). Também foram analisados, em amostras de urina dessas pessoas, os níveis de sulfatoximelatonina – uma substância que reflete a função da pineal –, comparando-se entre os grupos. Foi um estudo com observações simples, mas utilizando método científico rigoroso, com controle adequado para outras variáveis que poderiam influenciar nas medidas (por exemplo, diferenças com relação à média de idade ou uso de medicamentos com ação sobre o cérebro entre os grupos – não ocorreu isso nesse estudo), o que dá confiabilidade quanto aos resultados encontrados.

A glândula pineal é parte do sistema endócrino, e há vários exemplos de glândulas desse sistema que apresentam aumento do seu volume em situações nas quais estão bastante ativas, produzindo grande quantidade de seus hormônios (por exemplo, aumento do volume da hipófise durante a gestação, em que há um aumento significativo na produção de prolactina; ou aumento no volume das adrenais durante períodos prolongados de estresse, em que há aumento persistente na produção de cortisol). Então, tendo em conta as teorias espíritas, quisemos testar a hipótese de que o volume da pineal nas médiuns seria maior, por estar mais ativa nessas pessoas. Quanto às substâncias produzidas pela glândula pineal, se considera que a única com importância fisiológica é a melatonina, um hormônio que cai na circulação sanguínea e age em todo o organismo, tendo importância reconhecida para a regulação do ciclo sono-vigília, além de ação antioxidante e neuroprotetora. A sulfatoximelatonina é o principal metabólito da melatonina, que é dosável na urina e que reflete diretamente as concentrações desta.

Por outro lado, existem especulações de que o papel da pineal para o ato mediúnico poderia se dar através dos cristais e calcificações que são normalmente encontrados em seu interior, que estes poderiam ser responsáveis pela captação de campos eletromagnéticos (inclusive das eventuais fontes não locais de informações obtidas de forma mediúnica). Na nossa pesquisa, não foi feita avaliação quanto à eventual diferença na presença/ausência dessas calcificações entre os grupos médium e não médium porque a ressonância magnética (apesar de, em geral, proporcionar ótima resolução de imagem do sistema nervoso central) é um método que não permite distinguir bem entre calcificações e vasos sanguíneos. Para isso seria necessário utilizar o método de tomografia computadorizada, mas que teria o inconveniente da exposição à radiação. Outra especulação é a de que a pineal poderia produzir substâncias com ação alucinógena (alucinógenos endógenos), em doses ínfimas, mas suficientes para contribuir com a instalação do estado alterado de consciência que é observado durante o transe mediúnico. Mesmo que venha a ser comprovado que tenham importância fisiológica, a nível cerebral, é fato que tais alucinógenos endógenos sofrem rápida degradação enzimática e persistem bem pouco tempo na periferia, sendo de difícil avaliação laboratorial. Outro aspecto a ser explorado, e que de alguma forma poderia se demonstrar importante para o ato mediúnico, é a relação contígua da pineal com a habênula (ambas juntas constituindo o epitálamo), estrutura essa que também responde às informações quanto à luminosidade do ambiente e que tem sido considerada peça relevante do sistema límbico e do sistema de recompensa cerebral.

Na pesquisa foram selecionadas 32 mulheres, divididas em dois grupos: um grupo de médiuns e outro o grupo-controle. O grupo de médiuns pertencia a qual tipo de tarefa mediúnica? Por que essa tarefa foi a selecionada?

Todas as médiuns incluídas no estudo exerciam a mediunidade de psicofonia (fala sob influência de Espíritos), também denominada no meio espírita como mediunidade “de incorporação”. Não obstante, muitas delas também relataram apresentar outros tipos de mediunidade, por exemplo, psicografia, vidência, cura espiritual etc., mas o critério de inclusão foi exercer a atividade de médium psicofônico em reuniões de desobsessão em centros espíritas adesos à Federação Espírita de Mato Grosso do Sul, há pelo menos 3 anos (embora a média de tempo de trabalho mediúnico tenha sido bem superior [de 22 anos], com 70% delas exercendo a atividade há mais de 10 anos). Selecionamos esse critério por anteciparmos que seria o mais factível para encontrar médiuns aptas a participarem, por sabermos ser a reunião de desobsessão uma prática comum, realizada na maioria dos centros espíritas.

O tempo de exercício mediúnico ou idade das participantes tem alguma influência nos resultados?

A média de idade nos grupos ficou entre 51 e 55 anos, se tratando a maioria, portanto, de mulheres em idade madura, pós-menopáusicas. Na amostra do nosso estudo, não encontramos relação significativa da idade com volume ou função da pineal. Porém, com relação ao volume da glândula hipófise, que também foi avaliado, observamos relação inversa entre idade e volume dessa glândula no grupo das médiuns. Esse achado era previsível, pois no processo fisiológico de envelhecimento, observa-se redução do volume da hipófise.

O tempo de exercício mediúnico também não se relacionou com volume ou função da pineal. Entretanto, vale ressaltar que, em estudo anterior realizado por nosso grupo, observamos que o grau de excitação física (mensurado através de eletrocardiograma contínuo, minuto a minuto), durante a incorporação, se relacionou significativamente não com a idade, mas, sim, com o tempo de prática mediúnica, sendo maior naquelas médiuns menos experientes. Esse dado nos leva a acreditar que ocorre uma habituação (ou seja, uma atenuação da resposta de estresse desencadeada) à incorporação, com o decorrer dos anos de prática mediúnica. Ou seja, parece ocorrer uma maior adaptação física do médium para aquela prática.

Como foi a análise da glândula pineal nesse processo mediúnico?

A análise realizada das imagens da glândula pineal foi estrutural, e não funcional. Ou seja, o objetivo foi mensurar o volume estático da glândula, e não avaliar eventuais alterações dinâmicas no fluxo sanguíneo daquele órgão durante a realização de determinado comportamento ou tarefa, como é feito nos exames funcionais. Assim, a aquisição das imagens das médiuns foi obtida em situação normal, fora de transe. As participantes do grupo-controle também realizaram esse exame.

Já quanto à parte funcional, fizemos a mensuração dos níveis urinários de sulfatoximelatonina. Esta foi realizada nas médiuns em três situações: em resposta à prática mediúnica, e em resposta a duas tarefas-controles – uma estressora (geradora de estresse) e outra não estressora. As participantes do grupo-controle tiveram os seus níveis urinários de sulfatoximelatonina avaliados apenas em resposta à tarefa não estressora, para comparação com o grupo médium.

Houve diferença significativa nos resultados entre os dois grupos?

Apesar de o número de experiências anômalas ter sido significativamente maior nas médiuns, não encontramos diferenças significativas entre os grupos quanto ao volume da glândula pineal, volume da glândula hipófise ou níveis urinários de sulfatoximelatonina. Os escores de saúde mental e de qualidade do sono também foram similares nos dois grupos.

Também quanto à comparação dos níveis urinários de sulfatoximelatonina nas três diferentes condições (experiência mediúnica, tarefa-controle estressora e tarefa controle não estressora), não observamos diferenças significativas.

Esses achados estão em linha com estudo anterior realizado por nosso grupo, em que avaliamos as concentrações plasmáticas de melatonina em resposta à vivência mediúnica, comparando 20 médiuns espíritas experientes com 20 praticantes do Espiritismo não médiuns (avaliadas simultaneamente, aos pares, nas mesmas reuniões de desobsessão), e no qual não observamos diferenças significativas entre os grupos quanto aos níveis basais ou quanto ao delta (diferença pré-pós-comunicação mediúnica) dessa substância.

O bom método científico recomenda a replicação desses experimentos por outros grupos de pesquisadores. Até o momento, esses resultados indicam que a conjecturada relação da pineal com a mediunidade, se existir, deve se fazer em outras bases (ainda inexploradas), que não através da produção de melatonina.

Outros fatores psicofisiológicos como estado ansioso, frequência cardíaca e cortisol também foram avaliados na pesquisa. Quais os motivos de análise e quais os resultados obtidos?

Nosso plano ao analisar esses parâmetros na pesquisa foi caracterizar com maior precisão o grau de estresse que as médiuns apresentavam em resposta ao transe de incorporação. Alguns estudos disponíveis na literatura (por exemplo: estudo de Noriel Kawai e colaboradores, 2001; de Joan Hageman e colaboradores, 2010, de Arnaud Delorme e colaboradores, 2013 etc.) relataram a presença de uma resposta de excitação mental e física nos médiuns durante o transe, o que também ficou evidenciado em estudo anterior realizado por nosso grupo (em que as médiuns foram estudadas através de dosagem de catecolaminas plasmáticas, eletroencefalograma e eletrocardiograma/Holter cardíaco).

O cortisol é um hormônio produzido pelas glândulas adrenais que responde a estressores físicos e psicossociais e pode ser dosado na saliva, de forma repetida e não invasiva. A mensuração da frequência cardíaca e o uso de questionários breves validados para avaliação do estado de ansiedade também são de fácil utilização e contribuem para a interpretação adequada do estado subjetivo do indivíduo. Como mencionamos antes, na pesquisa recentemente publicada, analisamos esses parâmetros na noite em que as médiuns apresentavam o transe de incorporação (reunião de desobsessão) e durante tarefa-controle estressora (Teste de Trier) e tarefa-controle não estressora (situação de leitura em grupo), para comparação. O grau encontrado de elevação da ansiedade e da frequência cardíaca em resposta à prática mediúnica foi intermediário entre a situação de leitura e a tarefa-controle estressora. O padrão observado de reatividade ao estresse durante o Teste de Trier foi normal (apenas com a observação de que a resposta do cortisol salivar foi atenuada). Ficou, portanto, demonstrado que as médiuns da nossa amostra apresentavam eficiente regulação da emoção.

É possível afirmar que as experiências mediúnicas são fenômenos não patológicos?

É necessária certa cautela ao afirmar isso, pois, ao mesmo tempo que é preciso evitar o risco de “patologizar” experiências religiosas normais, também temos que evitar classificar condições clínicas potencialmente perigosas como experiências religiosas/espirituais comuns.

Para a ciência tradicional, o fenômeno mediúnico tem sido incluído no grupo das experiências dissociativas. A dissociação consistiria em uma falta de integração entre os sistemas de ideias e funções que constituem a personalidade e existiria um espectro contínuo de dissociação, indo desde simples episódios de distração (absorção introspectiva) até experiências prolongadas e muito aflitivas, como, por exemplo, transtorno de múltiplas personalidades.

Assim, os médiuns seriam indivíduos com maior tendência à dissociação. Quando as vivências dissociativas ocorrem de maneira frequente e descontrolada, em locais e momentos socialmente inadequados, desencadeadas por qualquer estresse agudo trivial presente na vida diária, causam sofrimento. Diversas evidências indicam que certos contextos culturais e tradições religiosas (entre eles o Espiritismo), através de treinamento, suporte social e conferência de significado, ajudam a moldar essas ocorrências dissociativas, contribuindo para a integração desses eventos na personalidade dos indivíduos que as apresentam, de maneira saudável.

As médiuns espíritas estudadas em nossa amostra são experientes, bem integradas a um contexto religioso e, apesar de seus escores elevados de experiências anômalas e dissociativas, têm boa saúde mental. Contrastando com estudos relatados na literatura com indivíduos com transtornos dissociativos e psicóticos, que apresentam anormalidades na pineal, na hipófise e na reatividade ao estresse, as médiuns que estudamos apresentaram normalidade em todos esses parâmetros. Portanto, nossos resultados de fato reforçam a noção de que a mediunidade pode ser um fenômeno não patológico, tanto em termos mentais como físicos.

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita