De olhos e coração abertos para a questão
racial
O país está registrando mais um aniversário da
assinatura da Lei Áurea que, na teoria, aboliu a
escravidão. Digo na teoria porque, na prática, o negro
(e também o branco pobre) é até hoje visto como mão de
obra barata ou descartável pelas classes dominantes.
Leia-se elite e classe média otária que pensa que é
elite só porque tem plano de saúde e financiou carro e
casa própria. Ou então, porque acha que tem o mesmo
poder de fogo de um megaempresário só porque possui uma
microempresa.
A ética escravagista ainda predomina no país. Motivo-me
a escrever a respeito porque uma matéria que li há
alguns dias sobre homens negros que estão sendo ainda
mais discriminados por estarem usando máscara (exigência
em tempos de covid-19) me deixou triste e estarrecido.
Se eles já eram vistos como bandidos simplesmente por
serem negros, a máscara potencializou a suspeita, o
preconceito e, por conseguinte, o risco de sofrerem
algum tipo de violência.
Quando li a respeito, pensei sobre o meu comportamento
na rua e respirei aliviado. Decerto já passei por
inúmeros homens negros mascarados e não enxerguei neles
qualquer tipo de suspeição. Como sei que passei por
eles? Simples; estamos num país miscigenado. Portanto,
já passei por negros da mesma forma que passei por
morenos, brancos, loiros, ruivos, homens, mulheres,
crianças, idosos, jovens... Todos devidamente mascarados
e protegidos, tal qual eu. Se alguém me chamou atenção
nesses dias, foi pelo fato estar sem máscara.
Felizmente, não fui educado a enxergar os homens negros
como potenciais suspeitos. O que enxergo é o preconceito
embutido no cotidiano e do qual muita gente não se dá
conta.
Nesse quesito, houve um episódio que me tocou
profundamente. Foi em dezembro de 2018. Tarde de sol,
depois do expediente. Ruas cheias devido às compras de
Natal. Andava eu pela Rua 16 de Março, badalada via
cheia de lojas bem apessoadas e cafés charmosos aqui de
Petrópolis, quando avistei um rapaz negro, à beira do
meio-fio, conduzindo um carrinho cheio de caixas. Ele
estava com uma camiseta que o identificava como
funcionário de transportadora. Tal qual a época dos
senhores de engenho, lá ia o negro musculoso e suado
puxando uma carroça. Pelas calçadas, a elite branca (ou
seu arremedo), que não tem olhos de ver a escravidão
perpetuada naquela cena banal do cotidiano de um país
que ainda não se livrou do ranço escravagista. Um país
onde justiça social e educação de qualidade para todos
ainda são sonhos distantes.
Em dado momento, uma das caixas caiu. Era uma caixa
menor que as demais, que tinham o mesmo tamanho. E
estava sozinha, por cima de tudo. Fiquei imaginando o
peso de toda aquela carga, potencializada pelo calor e
pelo horário de verão de um fim de tarde de dezembro. O
bravo herói travou o carrinho, largou os puxadores e
colocou a caixa novamente em cima da pilha. Isso foi na
altura da Rua Alencar Lima. Tanto eu como ele íamos no
sentido Praça D. Pedro – quem é de Petrópolis terá uma
ideia da distância que irei narrar. Eu pelo lado
esquerdo da via, na calçada; ele, pelo direito, rente ao
meio-fio. Não demorou muito para a caixa cair da pilha
novamente. Lá foi ele outra vez interromper o percurso
para colocar a caixa em cima da pilha. Foi a partir
desse momento que passei a prestar atenção de forma mais
acurada e pensei: – Se a caixa caiu duas vezes, cairá
uma terceira. E notei que só eu havia atentado para a
dificuldade do rapaz, que suava muito, em ter de parar o
carrinho de novo para colocar a caixa no lugar. Os
demais transeuntes – brancos, em sua maioria – não
enxergavam os apuros do trabalhador braçal.
Ele não deu dez passos. Adivinhem o que aconteceu? A
caixa foi ao chão novamente. Antes que ele parasse tudo
pela terceira vez, atravessei a rua, peguei a caixa e
lhe disse: – Não se preocupe. Eu levo ela para você!
Ele, entre surpreso e exausto, disse que não era
necessário, pegou a caixa da minha mão e colocou-a no
lugar. Decerto não estava acostumado com esse tipo de
atenção. Ou então, temeu pela carga. Afinal, eu poderia
ser o bandido da situação!
Só que, pouco antes da loja de roupas infantis Pirulito,
a caixa despencou mais uma vez. Apanhei-a novamente e
disse: – Eu vou levar essa caixa para você! Pode
confiar, estou caminhando aqui do teu lado! E lá fomos
nós dois até a galeria do Edifício Marchese, destino da
entrega de toda a mercadoria. Decerto, o conteúdo
abasteceria alguma boutique do local. Só então a caixa
rebelde voltou para a mão do carregador, que me
agradeceu, ainda sem acreditar muito na ajuda inesperada
que havia aparecido. Pelo que depreendi, a turma que é
sempre tratada como invisível acaba se acostumando a
sê-lo. Meu gesto havia lhe dado visibilidade e, mais
ainda, dignidade.
Eu poderia dizer que fui feliz para casa. Sim, estava
feliz por tê-lo ajudado. Ao mesmo tempo, no entanto, uma
profunda tristeza me invadiu por eu ter testemunhado a
invisibilidade social que já estudei e debati algumas
vezes. Sua presença não havia sido registrada pelos
transeuntes. Ninguém atentou para o absurdo que era um
rapaz puxando uma carga decerto pesada, apesar de sua
excelente forma física, muito menos os apuros pelos
quais ele passava devido à caixa rebelde. Fiquei triste
também porque, decerto, aquele homem negro não tinha
noção de que ele era vítima de um racismo estrutural
secular que o confinava àquele tipo de função. E fiquei
ainda mais triste de ver como ainda não nos libertamos
da escravidão, que infelizmente ainda dita as regras do
nosso ir e vir social.
Tenho olhos de ver e coração para sentir. Dói muito
testemunhar essa perpetuação da qual o Brasil dá sinais
de não querer se libertar. Mas também tenho olhos de
vislumbrar! Por isso, dia virá em que transitarei por
entre ruas, praças e avenidas repletas de pessoas sem
qualquer resquício de escravagismo, preconceito,
exclusão social e afins que já não aguentamos mais.
BATISTA, Fabiana – Homens negros relatam
casos de racismo ao utilizar máscaras na rua. 08/05/2020
– Disponível em https://www.uol.com.br/universa
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