Verdade e mentira
Considerando a hipocrisia
como a imperfeição moral que faz com que o
indivíduo aparente ser o que não é de verdade, a
virtude que se opõe a ela é a sinceridade. A
sinceridade é a virtude que rege nossas relações
com a verdade, ou o respeito à verdade com a
exclusão da mentira. A pessoa sincera identifica
seus atos e palavras com sua vida interior e não
mente a outrem; preocupa-se mais com a verdade
do que com a opinião pública, fala e age
abertamente. Ela nos mostra tais como somos sem
disfarce. Trata-se, enfim, de amar a verdade
mais que a si mesmo.
Uma discussão filosófico-moral em torno da
sinceridade, e que, ocasionalmente, travamos em
nossos estudos espíritas, é a de que até aonde
vamos levar a verdade.
A verdade sempre e acima de tudo,
dizem alguns. A
verdade será sempre a meta e o ideal, mas a
inverdade pode ser o mal menor,
garantem outros.
Quem mais aguerridamente defendeu a ideia da
verdade em qualquer circunstância, independente
de suas possíveis consequências, foi o filósofo
alemão do século XVIII, Immanuel Kant. Segundo
ele, a mentira não apenas nunca é uma virtude,
como é sempre uma falta, sempre um crime, sempre
uma indignidade. Como a verdade é um dever
absoluto, ela vale em todas as circunstâncias,
não tolera a menor exceção. A intenção aqui não
entra em jogo. Não há mentira piedosa, nem
generosa; toda mentira é condenável.
Os estoicos pensavam de forma equivalente. Marco
Aurélio, em suas Meditações diz:
Verdade não é senão um outro nome da Natureza, a
criadora original de todas as coisas
verdadeiras. Assim, uma mentira propositada é
pecado porque a fraude é um ato de injustiça,
uma mentira involuntária é também pecado porque
é uma nota dissonante na harmonia da Natureza e
cria a desordem sediciosa num universo
organizado.[i]
Kant encontrou discordâncias em sua própria
época, antes dele e depois dele. Aristóteles, na
antiguidade grega, Baruch Espinoza (século
XVII), Benjamin Constant (século XVIII) e no
século XX, Vladimir Jankélévitch, professor da
Sorbonne, morto em 1985, não proibiam em
absoluto a mentira.
André Comte-Sponville, reproduzindo a forma de
pensar dos três autores citados, comenta que se
for necessário mentir para resistir à barbárie,
para salvar a quem se ama, ou a um inocente, não
há a menor dúvida de que se deva mentir, quando
não há outro meio, ou quando todos os outros
meios seriam piores. Às vezes, é preciso se
contentar com o mal menor, e a mentira pode
sê-lo.[ii]
Se assassinos lhe perguntassem se seu amigo, ou
um inocente que eles perseguem, está refugiado
em sua casa, a verdade seria a opção adequada?
Ou se um moribundo que nunca soube lidar com
situações difíceis desejasse saber seu real
estado de saúde, dizer-lhe que a morte se
aproxima, seria o mais desejado?
Prossegue Sponville: é dar muita importância a
si mesmo, tão preocupado com sua integridade,
com sua dignidade, que, para se preservar, está
disposto a entregar um inocente a um assassino,
ou um doente terminal ao desespero.
Na literatura espírita temos a considerar o
pensamento de Emmanuel, exposto no livro O
consolador.
O benfeitor define a mentira como a ação
capciosa que visa ao proveito imediato de si
mesmo, em detrimento dos interesses alheios em
sua feição legítima e sagrada.[iii]
Na proposta conceitual de Emmanuel, a mentira se
identifica com a ação interesseira, maldosa, de
quem falseia uma dada situação com objetivos
escusos. A mentira seria a deturpação da verdade
para conseguir-se algo, prejudicando alguém. Se
negocio um veículo várias vezes abalroado,
afirmando ao comprador que se trata de um carro
que nunca se acidentou, isso é mentir, segundo a
definição de Emmanuel.
Assegura ainda Emmanuel que deixar a verdade
para mais tarde, ou matizá-la, não é mentir: a
mentira não é ato de guardar a verdade para o
momento oportuno [...] é imprescindível o
melhor critério amoroso na distribuição dos bens
da verdade, porquanto esses bens devem ser
fornecidos de acordo com a capacidade de
compreensão do Espírito a que se destina o
ensinamento, de maneira que o esforço não se
faça acompanhar de resultados contraproducentes.[iv]
A posição de Emmanuel ante a inverdade caridosa
se explicita no livro Renúncia, quando
Alcíone, o personagem principal da obra,
Espírito de alta condição evolutiva, engana a
mãezinha para evitar que ela sofra. Coloca o
autor: [...] amparada por uma força invisível
que jamais conseguiria definir, abraçando a
mãezinha doente, sentiu que era indispensável
mentir para confortar; esconder a verdade dura,
de modo a não abrir chagas mais cruéis.
Sentindo-se forte e bem-disposta ao influxo das
forças desconhecidas que a amparavam, beijou a
enferma com muito carinho, enquanto esta a
interrogava com um sorriso de confiança [...]
Joanna de Ângelis, por sua vez, coloca que a verdade
reflete luz mirífica, aclaradora de incógnitas,
que jamais fere ou aflige. É como pão, que deve
ser ingerido sem exagero, ou como linfa, que
merece ser sorvida na quantidade exata. À medida
que nutre e dessedenta, acalma e felicita,
enriquecendo de compreensão e afabilidade aquele
que a penetra. Jamais a apliques com dureza,
qual se fosse uma arma para destruir os outros,
pois que, assim tornada, perde a finalidade
precípua que é a de libertar.[v]
E ainda, Joanna: sê
amigo da verdade, sem a transformares numa arma
de destruição ou de ofensa [...] Ademais, a tua
pode não ser a verdade real, senão, um reflexo
dela. E mesmo que o fosse, não estás autorizado
a esgrimi-la com finalidades perturbadoras.[vi]
Concluindo, talvez possamos relacionar o mal
menor de certas inverdades com a violência em
situações em que a não violência não é eficaz. A
não violência, levada ao extremo, em
determinadas situações, poderia deixar o
campo livre para o delinquente, além do que
deixaria pessoas inocentes nas mãos dos
criminosos. [vii]
Quem não lutaria para salvar uma criança nas
mãos de um malfeitor? Como agir, por exemplo, se
uma mulher é atacada por um estuprador? Se não
for possível evitar o mal de outra forma, a
violência se impõe.
E talvez possamos, também, relacionar uma
possível inverdade com a necessidade de tornar
pública a imperfeição e os erros alheios. Kardec
admite que existem situações em que tal atitude
possa se justificar, quando tem por objetivo
reprimir o mal ou evitar um mal maior.[viii]
Mentir, valer-se de violência ou tornar pública
a imperfeição alheia são atitudes que nunca
serão as ideais, que nunca devem ser
comemoradas, mas em um mundo em que predominam o
mal e a ignorância, algumas vezes, são as únicas
opções que nos restam. Kardec admite que, embora
o mal nunca deixe de ser um mal, às vezes
torna-se necessário.[ix]
[i] Meditações,
livro 9, item 1.
[ii] Pequeno
tratado das grandes virtudes.
[iii] O
consolador, item 192.
[iv] O
consolador, item 193.
[v] Vida
feliz, cap. 139.
[vi] Vida
feliz, cap.143.
[vii] O
Evangelho segundo o Espiritismo,
cap. 12, item 8.
[viii] O
Evangelho segundo o Espiritismo,
cap. 10, item 21.
[ix] O
Livro dos Espíritos, item 638.