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por Marcos Paulo de Oliveira Santos

 

Naema, a Bruxa

 
A pena pujante e misteriosa de Rochester (Espírito), por meio da médium russa Wera Krijanowsky, trouxe à baila a obra “Naema, a Bruxa: lenda de feitiçaria do século XV”. Graças à tradução primorosa de Eliseu Rigonatti, fecundo trabalhador espírita, a obra chegou ao conhecimento do público brasileiro.  

Conforme o título indica, cumpre considerar que a trama é uma lenda. Há, portanto, que se remover os aspectos alegóricos e ir à essência.

A este respeito, aliás, o autor espiritual alerta o leitor, inserindo no frontispício da obra a questão 550, de O Livro do Espíritos, que tem a seguinte redação:

Qual o sentido das lendas fantásticas em que figuram indivíduos que teriam vendido suas almas a Satanás para obterem certos favores?

“Todas as fábulas encerram um ensinamento e um sentido moral. O vosso erro consiste em tomá-las ao pé da letra. Isso a que te referes é uma alegoria, que se pode explicar desta maneira: aquele que chama em seu auxílio os Espíritos, para deles obter riquezas, ou qualquer outro favor, rebela-se contra a Providência; renuncia à missão que recebeu e às provas que lhe cumpre suportar neste mundo. Sofrerá na vida futura as consequências desse ato. Não quer isto dizer que sua alma fique para sempre condenada à desgraça, mas, desde que, em lugar de se desprender da matéria, nela cada vez se enterra mais, não terá, no mundo dos Espíritos, a satisfação de que haja gozado na Terra, até que tenha resgatado a sua falta, por meio de novas provas, talvez maiores e mais penosas. Coloca-se, por amor dos gozos materiais, na dependência dos Espíritos impuros. Estabelece-se assim, tacitamente, entre estes e ele, o Espírito delinquente, um pacto que o leva à sua perda, mas que lhe será sempre fácil romper, se o quiser firmemente, granjeando a assistência dos bons Espíritos”.

Faz-se mister, portanto, que se tenha em mente este preceito ao ler a obra espiritual, para não recair em equívocos interpretativos.

Não darei todos os detalhes da obra, para que aqueles que ainda não leram possam apreciá-la.

Em linhas gerais, o enredo envolve o romance das personagens Leonor e Walter. Ela, pobre, bastante religiosa e muito bonita! Ele, fidalgo, de família tradicional. A clássica impossibilidade de não poderem se relacionar por conta da diferença social é o primeiro ensinamento de Rochester.

Triste imaginar que isso, ainda hoje, ocorre. Famílias que não desejam a relação entre pessoas de níveis sociais diferentes; de etnias diferentes, enfim, e que causam embaraços pesadíssimos para impedir a união dos enamorados...

É certo que tais comprometimentos têm reflexos no plano existencial, já que não podemos forçar ou impedir o livre-arbítrio das pessoas.

É neste cenário de amor sincero de duas almas, que a inveja e o orgulho da mãe de Walter, a senhora de Küssenberg, ganham força!

Ela, muito rica, arrola testemunhas, compra juízes, forja provas, para acusar a família da jovem de feitiçaria. Ora, não é difícil de imaginar que isso, no século XV, sob o guante da Inquisição, representava a morte.

E é esta visitante indesejada que se acerca de Leonor.

O primeiro capítulo, intitulado O pacto, já começa com a bela jovem na prisão, após terríveis torturas.

Seu pai, temendo o flagelo, havia se suicidado.

Sua tia estava a agonizar na frente da moça, após os suplícios da estrapada.

A pobre Leonor, então, vê a própria tia a morrer na prisão. Enquanto ela seria queimada no dia seguinte na fogueira.

É neste quadro de desespero, que surge a velha Gertrudes, “[...] uma velha mulher, tão magra, enrugada e curvada, que era impossível dar-lhe uma idade exata. Sessenta anos? Cem? Seu corpo confirmava essa última suposição, mas seu olhar desmentia todas as anteriores, porque os olhos esverdeados, de uma expressão sinistra e cruel, cintilavam como o fogo e o brilho da juventude” (ROCHESTER, 1999, p. 15). A partir desse ponto, o destino de Leonor ganha novos contornos.

A velha Gertrudes condoída do quadro da jovem e, ao mesmo tempo, de modo sub-reptício, se acerca de Leonor e lhe pergunta se deseja se salvar. Diante da afirmação da moça, ela evoca a figura de Mestre Leonardo. E este aparece dentro da prisão ante a evocação da velha.

Leonardo é de “[...] rosto duma palidez mate, emoldurado de cabelos pretos e ondulados, era impressionante em sua beleza sinistra e diabólica. O nariz aquilino de narinas dilatadas denunciava paixões ardentes. A boca se crispava num sorriso sardônico e cruel; e os grandes olhos esverdeados, sombrios e insondáveis como um abismo, dardejavam sobre Leonor um olhar terrificante” (ROCHESTER, 1999, p. 17).

Ao se materializar na prisão, ele se encanta com a beleza da jovem Leonor e lhe propõe um pacto fáustico. Concede-lhe a possibilidade de se salvar, caso ela aceite renegar toda a sua crença e a seguir um caminho malévolo. O pacto seria selado mediante o sacrilégio de pisar numa cruz que ela carregava e olvidar Jesus e toda a sua fé.

A moça titubeia, mas, diante dos horrores da prisão e da visualização do martírio diante da fogueira, ela acaba por aceitar o pacto. E é salva da prisão de modo inexplicável, bem como a velha Gertrudes.

Todos na cidadela ficaram estupefatos diante do desaparecimento misterioso da moça e da velha Gertrudes e aumentou ainda mais o burburinho de que a moça havia estabelecido um pacto demoníaco.   

Conforme assertiva do autor espiritual no início da obra, é necessário desconstruir as alegorias e ir à essência. Neste caso, o chamamento é de que, em momentos de dificuldades, procuramos os caminhos mais fáceis e que, toldados pela dor e irreflexão, não vislumbramos que o tal “caminho fácil” constitui verdadeira armadilha e maiores dores. É disso que se trata!

A mãe de Walter havia conseguido o seu intento. Mas ela desconhecia a verdade insofismável de que “quando o orgulho chega ao extremo, tem-se um indício de queda próxima, porquanto Deus nunca deixa de castigar os soberbos” (KARDEC, 2013, p. 120).

Após ser salva pelo mestre Leonardo, que descobrimos no decurso da leitura, que se tratava de um agênere vinculado às forças do mal, é que Leonor propõe se vingar de todos que lhe fizeram mal.

Mestre Leonardo constrói, então, uma estátua de cera, idêntica a Leonor, mas revestida de encantamentos complexos que, ao influxo do perispírito e da vontade de vingança da moça, a estátua ganha “vida”; tal qual um ser agênere e recebe o nome de Naema.

Filipina e a senhora de Küssenberg, que estavam mancomunadas, conseguiram convencer Walter de se casar. E, no dia do matrimônio, ele ganha de presente a estátua de cera, perfeita nos detalhes, e idêntica à Leonor. Isto gera constrangimentos diante dos presentes, amigos e murmurinho na cidade.

A partir disso, a estátua de cera (Naema), todas as noites, é animada pela vontade de Leonor e tem encontros com o fidalgo, Walter, em seu gabinete/escritório de negócios. Ele se recusava a cumprir os deveres do matrimônio com a senhora Filipina.

Vários episódios decorrem da presença de Naema na casa de Walter: problemas de relacionamento com a esposa; acidentes com terceiros; fenômenos estranhos... Tudo sob o influxo da vingança de Leonor. 

De tais episódios podemos compreender que a vingança “é uma inspiração tanto mais funesta, quanto tem por companheiras assíduas a falsidade e a baixeza. Com efeito, aquele que se entrega a essa fatal e cega paixão quase nunca se vinga a céu aberto. Quando é ele o mais forte, cai qual fera sobre o outro a quem chama seu inimigo, desde que a presença deste último lhe inflame a paixão, a cólera, o ódio. Porém, as mais das vezes assume aparências hipócritas, ocultando nas profundezas do coração os maus sentimentos que o animam. Toma caminhos escusos, segue na sombra o inimigo, que de nada desconfia, e espera o momento azado para sem perigo feri-lo. Esconde-se do outro, espreitando-o de contínuo, prepara-lhe odiosas armadilhas e, sendo propícia a ocasião, derrama-lhe no copo o veneno. Quando seu ódio não chega a tais extremos, ataca-o então na honra e nas afeições; não recua diante da calúnia, e suas pérfidas insinuações, habilmente espalhadas a todos os ventos, se vão avolumando pelo caminho” (KARDEC, 2013, pp. 170-171).

Muitas lágrimas e sofrimentos ocorrem quando se pratica o mal pela vingança. É disso que se trata. Aqui, mais uma vez, há que se retirar os acessórios e ir à essência.

Por fim, acontece que Walter também é condenado por feitiçaria e ela (Leonor) clama pela ajuda de Mestre Leonardo para que também salve o rapaz. E paro por aqui, a narrativa para que o(a) leitor(a) possa compulsar a obra mencionada.

O fato é que para se desvencilhar dessa porta da facilidade e dos prazeres materiais há que se ter muita disciplina, esforço, determinação, fé e caridade ativa! A prática do bem incessante para que se consiga romper com os liames do mal. O final é surpreendente. E merece atenção por parte do(a) leitor(a).

A questão que se coloca é que o bem vence. Mas há que se ter um comportamento de querer o Cristo e, sobretudo, vivenciar o que Ele ensinou.

O interessante de uma lenda é que ela suscita muitas interpretações. Creio, porém, que a mensagem de Rochester seja esta ao final. A de que o bem vale a pena e que o Criador nunca desampara a nenhum de seus filhos e filhas.

Recomendo a leitura com o cuidado de se retirar as alegorias, pois se trata de uma lenda.

 

Referências:

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos: filosofia espiritualista / recebidos e coordenados por Allan Kardec; [tradução de Guillon Ribeiro]. – 93. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013.

_____________. O Evangelho segundo o Espiritismo: com explicações das máximas morais do Cristo em concordância com o Espiritismo e suas aplicações às diversas circunstâncias da vida / Allan Kardec; [tradução de Guillon Ribeiro da 3. ed. francesa, revista, corrigida e modificada pelo autor em 1866]. – 131. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013.

ROCHESTER, John Wilmot, Conde de (Espírito). Naema, a Bruxa: lenda de feitiçaria do século XV. Wera Kryzhanovskaia. Tradução de Eliseu Rigonatti – 9ª edição – São Paulo: LAKE, 1999.


 

 

     
     

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