Naema, a Bruxa
A pena pujante e misteriosa de Rochester (Espírito), por
meio da médium russa Wera Krijanowsky, trouxe à baila a
obra “Naema, a Bruxa: lenda de feitiçaria do século
XV”. Graças à tradução primorosa de Eliseu Rigonatti,
fecundo trabalhador espírita, a obra chegou ao
conhecimento do público brasileiro.
Conforme o título indica, cumpre considerar que a trama
é uma lenda. Há, portanto, que se remover os aspectos
alegóricos e ir à essência.
A este respeito, aliás, o autor espiritual alerta o
leitor, inserindo no frontispício da obra a questão 550,
de O Livro do Espíritos, que tem a seguinte
redação:
Qual o sentido das lendas fantásticas em que figuram
indivíduos que teriam vendido suas almas a Satanás para
obterem certos favores?
“Todas as fábulas encerram um ensinamento e um sentido
moral. O vosso erro consiste em tomá-las ao pé da letra.
Isso a que te referes é uma alegoria, que se pode
explicar desta maneira: aquele que chama em seu auxílio
os Espíritos, para deles obter riquezas, ou qualquer
outro favor, rebela-se contra a Providência; renuncia à
missão que recebeu e às provas que lhe cumpre suportar
neste mundo. Sofrerá na vida futura as consequências
desse ato. Não quer isto dizer que sua alma fique para
sempre condenada à desgraça, mas, desde que, em lugar de
se desprender da matéria, nela cada vez se enterra mais,
não terá, no mundo dos Espíritos, a satisfação de que
haja gozado na Terra, até que tenha resgatado a sua
falta, por meio de novas provas, talvez maiores e mais
penosas. Coloca-se, por amor dos gozos materiais, na
dependência dos Espíritos impuros. Estabelece-se assim,
tacitamente, entre estes e ele, o Espírito delinquente,
um pacto que o leva à sua perda, mas que lhe será sempre
fácil romper, se o quiser firmemente, granjeando a
assistência dos bons Espíritos”.
Faz-se mister, portanto, que se tenha em mente este
preceito ao ler a obra espiritual, para não recair em
equívocos interpretativos.
Não darei todos os detalhes da obra, para que aqueles
que ainda não leram possam apreciá-la.
Em linhas gerais, o enredo envolve o romance das
personagens Leonor e Walter. Ela, pobre, bastante
religiosa e muito bonita! Ele, fidalgo, de família
tradicional. A clássica impossibilidade de não poderem
se relacionar por conta da diferença social é o primeiro
ensinamento de Rochester.
Triste imaginar que isso, ainda hoje, ocorre. Famílias
que não desejam a relação entre pessoas de níveis
sociais diferentes; de etnias diferentes, enfim, e que
causam embaraços pesadíssimos para impedir a união dos
enamorados...
É certo que tais comprometimentos têm reflexos no plano
existencial, já que não podemos forçar ou impedir o
livre-arbítrio das pessoas.
É neste cenário de amor sincero de duas almas, que a
inveja e o orgulho da mãe de Walter, a senhora de
Küssenberg, ganham força!
Ela, muito rica, arrola testemunhas, compra juízes,
forja provas, para acusar a família da jovem de
feitiçaria. Ora, não é difícil de imaginar que isso, no
século XV, sob o guante da Inquisição, representava a
morte.
E é esta visitante indesejada que se acerca de Leonor.
O primeiro capítulo, intitulado O pacto, já
começa com a bela jovem na prisão, após terríveis
torturas.
Seu pai, temendo o flagelo, havia se suicidado.
Sua tia estava a agonizar na frente da moça, após os
suplícios da estrapada.
A pobre Leonor, então, vê a própria tia a morrer na
prisão. Enquanto ela seria queimada no dia seguinte na
fogueira.
É neste quadro de desespero, que surge a velha
Gertrudes, “[...] uma velha mulher, tão magra,
enrugada e curvada, que era impossível dar-lhe uma idade
exata. Sessenta anos? Cem? Seu corpo confirmava essa
última suposição, mas seu olhar desmentia todas as
anteriores, porque os olhos esverdeados, de uma
expressão sinistra e cruel, cintilavam como o fogo e o
brilho da juventude” (ROCHESTER, 1999, p. 15). A
partir desse ponto, o destino de Leonor ganha novos
contornos.
A velha Gertrudes condoída do quadro da jovem e, ao
mesmo tempo, de modo sub-reptício, se acerca de Leonor e
lhe pergunta se deseja se salvar. Diante da afirmação da
moça, ela evoca a figura de Mestre Leonardo. E este
aparece dentro da prisão ante a evocação da velha.
Leonardo é de “[...] rosto duma palidez mate,
emoldurado de cabelos pretos e ondulados, era
impressionante em sua beleza sinistra e diabólica. O
nariz aquilino de narinas dilatadas denunciava paixões
ardentes. A boca se crispava num sorriso sardônico e
cruel; e os grandes olhos esverdeados, sombrios e
insondáveis como um abismo, dardejavam sobre Leonor um
olhar terrificante” (ROCHESTER, 1999, p. 17).
Ao se materializar na prisão, ele se encanta com a
beleza da jovem Leonor e lhe propõe um pacto fáustico.
Concede-lhe a possibilidade de se salvar, caso ela
aceite renegar toda a sua crença e a seguir um caminho
malévolo. O pacto seria selado mediante o sacrilégio de
pisar numa cruz que ela carregava e olvidar Jesus e toda
a sua fé.
A moça titubeia, mas, diante dos horrores da prisão e da
visualização do martírio diante da fogueira, ela acaba
por aceitar o pacto. E é salva da prisão de modo
inexplicável, bem como a velha Gertrudes.
Todos na cidadela ficaram estupefatos diante do
desaparecimento misterioso da moça e da velha Gertrudes
e aumentou ainda mais o burburinho de que a moça havia
estabelecido um pacto demoníaco.
Conforme assertiva do autor espiritual no início da
obra, é necessário desconstruir as alegorias e ir à
essência. Neste caso, o chamamento é de que, em momentos
de dificuldades, procuramos os caminhos mais fáceis e
que, toldados pela dor e irreflexão, não vislumbramos
que o tal “caminho fácil” constitui verdadeira armadilha
e maiores dores. É disso que se trata!
A mãe de Walter havia conseguido o seu intento. Mas ela
desconhecia a verdade insofismável de que “quando o
orgulho chega ao extremo, tem-se um indício de queda
próxima, porquanto Deus nunca deixa de castigar os
soberbos” (KARDEC, 2013, p. 120).
Após ser salva pelo mestre Leonardo, que descobrimos no
decurso da leitura, que se tratava de um agênere vinculado
às forças do mal, é que Leonor propõe se vingar de todos
que lhe fizeram mal.
Mestre Leonardo constrói, então, uma estátua de cera,
idêntica a Leonor, mas revestida de encantamentos
complexos que, ao influxo do perispírito e da vontade de
vingança da moça, a estátua ganha “vida”; tal qual um
ser agênere e recebe o nome de Naema.
Filipina e a senhora de Küssenberg, que estavam
mancomunadas, conseguiram convencer Walter de se casar.
E, no dia do matrimônio, ele ganha de presente a estátua
de cera, perfeita nos detalhes, e idêntica à Leonor.
Isto gera constrangimentos diante dos presentes, amigos
e murmurinho na cidade.
A partir disso, a estátua de cera (Naema), todas as
noites, é animada pela vontade de Leonor e tem encontros
com o fidalgo, Walter, em seu gabinete/escritório de
negócios. Ele se recusava a cumprir os deveres do
matrimônio com a senhora Filipina.
Vários episódios decorrem da presença de Naema na casa
de Walter: problemas de relacionamento com a esposa;
acidentes com terceiros; fenômenos estranhos... Tudo sob
o influxo da vingança de Leonor.
De tais episódios podemos compreender que a vingança “é
uma inspiração tanto mais funesta, quanto tem por
companheiras assíduas a falsidade e a baixeza.
Com efeito, aquele que se entrega a essa fatal e cega
paixão quase nunca se vinga a céu aberto. Quando é ele o
mais forte, cai qual fera sobre o outro a quem chama seu
inimigo, desde que a presença deste último lhe inflame a
paixão, a cólera, o ódio. Porém, as mais das vezes
assume aparências hipócritas, ocultando nas profundezas
do coração os maus sentimentos que o animam. Toma
caminhos escusos, segue na sombra o inimigo, que de nada
desconfia, e espera o momento azado para sem perigo
feri-lo. Esconde-se do outro, espreitando-o de contínuo,
prepara-lhe odiosas armadilhas e, sendo propícia a
ocasião, derrama-lhe no copo o veneno. Quando seu ódio
não chega a tais extremos, ataca-o então na honra e nas
afeições; não recua diante da calúnia, e suas pérfidas
insinuações, habilmente espalhadas a todos os ventos, se
vão avolumando pelo caminho” (KARDEC, 2013, pp.
170-171).
Muitas lágrimas e sofrimentos ocorrem quando se pratica
o mal pela vingança. É disso que se trata. Aqui, mais
uma vez, há que se retirar os acessórios e ir à
essência.
Por fim, acontece que Walter também é condenado por
feitiçaria e ela (Leonor) clama pela ajuda de Mestre
Leonardo para que também salve o rapaz. E paro por aqui,
a narrativa para que o(a) leitor(a) possa compulsar a
obra mencionada.
O fato é que para se desvencilhar dessa porta da
facilidade e dos prazeres materiais há que se ter muita
disciplina, esforço, determinação, fé e caridade ativa!
A prática do bem incessante para que se consiga romper
com os liames do mal. O final é surpreendente. E merece
atenção por parte do(a) leitor(a).
A questão que se coloca é que o bem vence. Mas há que se
ter um comportamento de querer o Cristo e, sobretudo,
vivenciar o que Ele ensinou.
O interessante de uma lenda é que ela suscita muitas
interpretações. Creio, porém, que a mensagem de
Rochester seja esta ao final. A de que o bem vale a pena
e que o Criador nunca desampara a nenhum de seus filhos
e filhas.
Recomendo a leitura com o cuidado de se retirar as
alegorias, pois se trata de uma lenda.
Referências:
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos:
filosofia espiritualista / recebidos e coordenados
por Allan Kardec; [tradução de Guillon Ribeiro]. – 93.
ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013.
_____________. O Evangelho segundo o
Espiritismo: com explicações das máximas morais do
Cristo em concordância com o Espiritismo e suas
aplicações às diversas circunstâncias da vida / Allan
Kardec; [tradução de Guillon Ribeiro da 3. ed. francesa,
revista, corrigida e modificada pelo autor em 1866]. –
131. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB,
2013.
ROCHESTER, John Wilmot, Conde de
(Espírito). Naema, a Bruxa: lenda de feitiçaria do
século XV. Wera Kryzhanovskaia. Tradução de Eliseu
Rigonatti – 9ª edição – São Paulo: LAKE, 1999.
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