Recuperando a
simplicidade das coisas
Ao adentrar-me na terceira idade há pouco tempo, dei-me
finalmente conta de que passei, entre outras coisas, a
também fazer parte do seleto grupo das “testemunhas da
história”. É indiscutível que muitas coisas aconteceram
ao longo da minha presente encarnação. Mas teria sido
diferente em outras existências? Obviamente não. Afinal,
se as águas do rio não param, então, o mesmo ocorre no
curso das nossas vidas. Ou seja, novos fatos, eventos,
experiências, desditas e alegrias nos atropelam, por
assim dizer, consoante as nossas necessidades
evolutivas. Resta-nos apenas ter discernimento e muita
força íntima para prosseguir mediante a vontade de Deus.
Posto isto, pessoas da minha geração (denominados como baby
boomers) já viram muitas coisas, mas nem todas
positivas ou de indubitável valor, infelizmente. Nas
últimas décadas, por exemplo, temos visto o inexorável e
igualmente assustador avanço do mundo digital. De fato,
as novas tecnologias trouxeram inúmeros benefícios sem
dúvida, mas também estranhas sensações, incertezas, sem
falar de insegurança, já que são altamente vulneráveis.
Desse modo, os cidadãos analógicos - quero dizer, a
minha turma e eu - foram forçados à uma brutal transição
para o universo digital, a fim de não se tornarem
completamente obsoletos. Na aluvião das mudanças
decorrentes do novo paradigma, as soluções e
iniciativas, paradoxalmente, nem sempre conseguem gerar
conforto ou segurança. Não raro, aliás, elas ocasionam
mais problemas e certa perplexidade.
Dou-lhes dois exemplos para ilustrar o meu raciocínio.
Ao conversar recentemente com uma atendente de
laboratório clínico, ela contou-me ter ido uma tarde de
sábado ao shopping com a neta. Esta pediu-lhe um
sanduiche de determinada lanchonete. Ao solicitar a um
funcionário da loja o pedido desejado, fora informada de
que só poderia atendê-la pelo App (aplicativo de
celular), pois ali operavam só por meio desse
dispositivo (sic). Como ela estava sem o celular, não
pôde realizar o desejo da neta. Comigo aconteceu algo
parecido numa enorme rede de farmácias. Ao solicitar
desconto para determinado remédio, o balconista
esclareceu-me que só poderia atender o meu pedido se o
tivesse feito pelo App. De minha parte, protestei
ironizando. Observei ainda que o referido dispositivo
digital tinha agora mais importância do que a negociação
livre entre o cliente e o balconista. Decepcionado,
acabei por concluir que estranhos são esses tempos em
que ora vivemos.
E as mudanças não param por aí, evidentemente. São
inúmeros os websites de relevantes organizações humanas
que “convidam” o usuário a, em caso de dúvida, recorrer
a um chat ou às respostas adrede preparadas pela
inteligência artificial, que quase nunca se encaixam
exatamente em nossas necessidades específicas.
Curiosamente, não raro essas mesmas empresas “escondem”
os seus números de telefones, deixando o pobre
consumidor em enormes apuros em busca de uma solução.
Pedindo perdão antecipado pela chacota, creio que elas
poderiam simplesmente escrever em suas páginas de
internet: “esse é o seu prêmio por nos escolher” ou
ainda “quem mandou comprar de nós?”.
A propósito, não faz muito tempo adquiri um novo pacote
de softwares – bem caro, aliás - daquela empresa cujo
principal acionista faz muita filantropia. No dia
seguinte à aquisição fui instalar os programas, e aí
começaram as minhas agruras, que, por sinal,
ultrapassaram o fim de semana. Em meio à inusitada
provação lembrei-me de Jesus: “No mundo tereis
aflições...” (João, 16: 33). Com efeito, a minha começou
– por incrível que pareça – por não conseguir enxergar
uma das letrinhas do código (chave) do produto, que me
dariam acesso ao download dos programas. De tão
pequenas que eram elas impressas no cupom fiscal do
revendedor, que acabei confundindo 2 por Z (aliás, outro
membro da minha família assim também leu). Depois de
horas desesperadoras, em que tive até de enviar à
empresa uma foto do cupom anexado a um link, finalmente
descobrimos a equivocada interpretação.
Lamentavelmente, horas haviam sido perdidas em inútil
tentame. Diante do inesperado infortúnio, sugeri-lhes
que retornassem ao antigo procedimento de colocar um
papel cartão impresso dentro da embalagem do produto a
fim de evitar tamanho dissabor. Perguntei ainda ao
analista que me atendeu a razão de não mais haver um CD
dentro da embalagem, que poderia dar um start em
todo o processo. O esclarecimento foi surpreendente, já
que frisou ser uma empresa de tecnologia onde as coisas
só funcionam agora com banda larga. Diante da
explicação, pensei nos nossos pobres brasileirinhos que
não dispõem de tais recursos – não raro, falta-lhes até
mesmo um PC - para estudar ou acessar os conteúdos das
matérias. Ao que tudo indica, portanto, nesse ambiente
altamente sofisticado, não há espaço para cogitações
dessa natureza.
Retomando as minhas cogitações, senti grande saudade dos
tempos em que as coisas eram mais simples e objetivas.
Não desfrutávamos, evidentemente, do avanço tecnológico
disponível na atualidade. Todavia, havia muito mais
calor humano e interação social. As nossas dúvidas e
inquietações eram tratadas, mesmo remotamente, por
pessoas, que tinham certo grau de empatia. Tudo era
muito diferente da frieza e impessoalidade da gravação
dos SACs modernos, que dificultam sobremaneira o contato
com um ser real, particularmente nas horas mais
aflitivas e indispensáveis.
Seria tal solução empresarial advinda da excessiva
preocupação com as reduções de custos e despesas fixas?
Provavelmente sim. Atualmente há uma indisfarçável
indiferença ao fator humano, apesar de todo discurso
contrário. Por isso, sou levado a crer que, a despeito
do progresso material obtido em nosso mundo, a vida
hodierna fica muito a dever em relação ao passado
recente. Faço tal afirmação baseado no que já vi e no
que vejo presentemente. Apesar de termos tudo para dar
um verdadeiro salto para um futuro pleno e radiante de
oportunidades e alegrias, faltou-nos algo essencial: a
simplicidade.
Tornamo-nos muito sofisticados, é verdade, mas nem
sempre práticos ou, pior ainda, empáticos. É deveras
decepcionante constatar que adotamos a complicação e
insensibilidade como normas gerais. Desse modo, creio
que só recuperando a sábia capacidade de simplificar as
coisas poderemos tornar a vida humana menos áspera do
que já é. Não se trata, cumpre esclarecer, de abdicar de
importantes conquistas do conhecimento. Isso não seria
inteligente e muito menos apropriado. No entanto, penso
que a solução poderia ser a incorporação de meios mais
amigáveis ao elemento humano, o principal agente deste
mundo de Deus. Em resumo, entendo que vale a pena
refletir sobre essa problemática através da literatura
espírita (especialmente as obras psicografadas pelo
inolvidável médium Francisco Cândido Xavier). Esta pode
nos oferecer inspirações para que busquemos sempre fins
mais nobres em nossas intervenções, independentemente de
onde estivermos situados.
A propósito, o Espírito André
Luiz, na obra Agenda
Cristã, recomenda-nos
com acerto ao cultivo da simplicidade. Em sua percepção,
só ela poderá solucionar os problemas que afligem muitas
pessoas. Note que há aqui implícito um salutar convite.
Ademais, às vezes, até inconscientemente, ajudamos no
estabelecimento e fixação de regras e obrigações que só
prejudicam as pessoas. Como pouco se medita na aplicação
dos ensinos evangélicos, é pertinente recordar trechos
do livro Caminho, Verdade e Vida, de autoria do Espírito
Emmanuel: “...
o Evangelho é portador de todos os ensinamentos
essenciais e necessários, sem nos impor a necessidade de
recorrer a nomenclaturas difíceis, distantes da
simplicidade com que o Mestre nos legou a carta de
redenção, na qual nos pede atenção amorosa e não teorias
complicadas”. Mas o que poderia ter o Evangelho a ver
com esse assunto? Simplesmente tudo, já que diante de
tantas mazelas seria conveniente recorrermos mais ao
Mestre dos Mestres, que, com simplicidade e clareza, nos
apontou o caminho a ser percorrido: cuidai do próximo
como gostaria de ser cuidado.
Numa outra obra espírita extraordinária, Dicionário
da Alma, encontramos dois edificantes conselhos a
respeito que também valem a pena ressaltar. Por exemplo,
para o Espírito Casimiro Cunha, “Simplicidade
é um dever”. Infelizmente, como acima observei, esse
dever tem sido amplamente negligenciado. No entanto,
tenhamos em mente que “A simplicidade improvisa raios de
alegria”, como igualmente assevera o Espírito André
Luiz. Afinal, a simplicidade beneficia e espalha
satisfação. Em síntese, a simplicidade torna as coisas
mais fáceis.
Por essa razão, recomenda ainda André Luiz, na obra O
Espírito da Verdade (psicografia de Francisco
Cândido Xavier e Waldo Vieira), “Estime
a simplicidade”. Ao que sabemos, trata-se de poderoso
remédio sem contraindicação ou efeitos colaterais. Mais
ainda, é recurso tão valioso que, ainda segundo o
Espírito Emmanuel, conforme consta no citado livro Dicionário
da Alma, “No futuro, todas as filosofias terrestres
estarão irmanadas, em sua lição de simplicidade e amor.
O que se faz imprescindível é a demonstração viva de
cada discípulo, dentro do conceito profundo de
sinceridade, confirmando a firmeza de sua fé e a nobreza
de legítima compreensão”.
Por fim, pergunte a si mesmo se você está ajudando a
tornar a vida geral mais simples ou difícil.
|